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O contribuinte e a Administração Tributária: uma relação jurídica de cooperação

O contribuinte tem direitos que, muitas vezes, em direito fiscal, são entendidos como, garantias do contribuinte. Essas garantias são enunciadas, de uma forma geral, na nossa Constituição, tal como em legislação fiscal.

A este respeito o n.º2 do artigo 266.º da CRP refere que os órgãos e agentes administrativos devem, aquando do exercício das suas funções, respeitar certos

92 Cfr. Mendes, Paulo de Sousa, O efeito – à – distância das proibições de prova, in Revista do

Ministério Público do RS, Porto Alegre, n.º74, jul. 2013, p.220

93 Neste sentido, confira-se sobre este assunto, o Acórdão da Relação do Porto, Processo

n.º290/07.8GNPRT.P1, de 17/06/2009, Relator: Olga Maurício, in www.dgsi.pt, aborda a importância de não valorar prova proibida. Essa valoração de prova que não poderia ter sido apreciada contamina inevitavelmente toda a sentença, dado que a prova recolhida para fundamentar a sentença, não tem qualquer valor.

94 Cfr. Milheiro, Tiago Caiado, Breve excurso pela prova penal na jurisprudência nacional, in

JULGAR, n.º18, 2012, Coimbra Editora, p.55

95 Esta possibilidade de sanação foi explicada pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Évora,

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princípios, como por exemplo, o princípio da proporcionalidade, justiça, igualdade e da boa fé. Como consequência disso, no n.º1 do artigo 266.º da CRP, há uma obrigação de respeitar os direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos. Servindo esta norma como um comando normativo que não pode ser desrespeitado, o contribuinte tem aqui uma garantia.

Para além desta norma, no âmbito da legislação fiscal, temos uma norma muito especial que pensamos que atribui uma grande amplitude às garantias que o contribuinte possui. Essa norma é o artigo 54.º da LGT.

O artigo 54.º da LGT, ao enunciar no seu n.º1, que os atos dirigidos à declaração de direitos tributários que fazem parte do procedimento tributário, refere simultaneamente, no n.º 2, que estes, assim como os atos de autoliquidação, retenção na fonte ou de repercussão legal a terceiros de dívida tributária, são atos em relação aos quais se aplicam as garantias dos contribuintes. Assim, o n.º 2 amplifica, de certa forma, a aplicação das garantias dos contribuintes.

A existência dessas garantias do contribuinte, fazem com que a Administração Tributária, mediante o respeito ao princípio da colaboração, se transforme numa “administração

aberta, que atua em diálogo com os cidadãos/contribuintes, e não uma administração tributária, todo-poderosa, que impõe as suas decisões a súbditos”96.

Esse diálogo vai ser essencial para se chegar a uma justiça ou verdade material. Assim, segundo o n.º 3 do artigo 59.º da LGT, a Administração, por forma a colaborar com o contribuinte, tem, essencialmente, o dever de informar o contribuinte sobre os seus direitos e obrigações, de notificar o sujeito passivo para esclarecimento das dúvidas sobre as suas declarações ou documentos, ou sobre a interpretação e aplicação das normas tributárias e a comunicação antecipada do início da inspeção tributária.

Todavia, sob o obrigado fiscal, não recaem apenas direitos. O contribuinte tem o dever de cooperar com a Administração para que seja mais simples o apuramento do imposto. Assim, este dever de arrecadar receita para a maior eficácia de prossecução de interesse público, é instrumental face a um dever principal: pagamento do imposto. Na aceção de alguns autores97, o dever de colaboração surge como uma prestação pessoal de natureza

96 Cfr. Morais, Rui Duarte, Manual de Procedimento e Processo Tributário, Almedina, 2012, p.21 97 Rodríguez, Rafael Luna, El derecho a no autoincriminarse em el âmbito sancionador tributario

costarricense, Comentário al Voto n.º 2000-I I 403 de 20 de deciembre de 2000 de la Sala Constitucional, Revista de Derecho Publico, n.º 3, 2006, p.5 (disponível em http://afc.cr/downloads/Publications/No_autoincriminarse.pdf); Também, Martínez, Juan Lopez,

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pública, que é imposto a todos aqueles obrigados tributários que se encontrem em posição de cooperar, prestar assistência, entre outras tarefas que visam garantir o efetivo cumprimento do dever de contribuir.

Daí que se pode dizer que existe uma relação jurídica tributária obrigacional complexa, em que, de um lado, temos um devedor (sujeito passivo) e um credor (sujeito ativo ou Administração tributária). A complexidade desta relação demonstra-se pelo surgimento de várias prestações acessórias entre as partes envolvidas.

Contudo não basta que exista por si só esse dever geral para que o sujeito passivo se sinta obrigado. Na aferição do que é mais importante para a efetivação desse dever, acolhemos as palavras de LUÍS VELOSO, quando refere que tem que existir “uma norma de

incidência real e de sujeição pessoal contendo tipos normativos de vínculos previstos que só se concretizam em relação aos factos, quando eles ocorrerem; e em relação às pessoas, quando possuam as qualidades ou as características de imputabilidade previstas no referido tipo legal”98.

Este dever é criado quando o contribuinte, seja ele uma pessoa jurídica ou pessoa singular, atua no interior do espaço tributário. Ao entrar nesse espaço que mencionámos desenvolve-se um dever geral de colaborar com a administração fiscal que está previsto no artigo 59º. LGT. Neste prisma, o que sobressai não é um princípio do dispositivo mas antes um princípio do inquisitório.

O princípio do inquisitório surge como uma expressão da positivação do direito, isto é, de uma vontade de o legislador definir a obrigatoriedade de algumas regras ou condutas para uma satisfação de um determinado fim.

Este último princípio demonstra que, muito embora exista uma colaboração por parte do contribuinte, é a Administração fiscal que assume a responsabilidade da recolha do

“material fáctico relevante para a decisão”99.Para tal, forma-se na esfera do contribuinte vários deveres que, por sua vez, compreendem várias atuações por parte do obrigado e da própria administração. Tal como refere o número 2 do artigo 59.º da LGT “Presume-se a

boa fé da actuação dos contribuintes e da administração tributária”.

Los deberes de información tributaria, Editorial Marcial Pons e Instituto de Estudios Fiscales,

1992, p.37

98 Veloso, Luís Miguel Braga, Considerações sobre os deveres de cooperação e os respectivos

instrumentos reactivos em sede fiscal, Dissertação de Mestrado em Direito Judiciário, Trabalho

realizado sob a orientação do Professor Doutor Joaquim Freitas da Rocha e co-orientação do Professor Doutor Mário Ferreira Monte, Universidade do Minho, 6 de Setembro de 2012, p.17

99 Matos, Pedro Vidal, O Princípio Inquisitório no Procedimento Tributário, Coimbra Editora,

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Nesta sequência, teremos que questionar como é possível darmos ao contribuinte a possibilidade de cooperar, se a mesma entidade que exige essa cooperação pode, independentemente disso, realizar tudo o que for possível para satisfazer o interesse público e para chegar à verdade material, segundo o disposto no artigo 58.º LGT.

Na análise desta problemática, não podemos deixar de admitir a existência de uma necessidade normativa de chegar àquela verdade e, portanto, existe, inevitavelmente um dever de inquirir perfeitamente legitimado pela própria LGT.

No entanto, é notório que desse dever jurídico de inquirir pode surtir vantagens tanto para o lado da Administração como no lado do contribuinte. A atuação por parte da Administração tem em vista a boa aplicação da lei e a boa distribuição de encargos financeiros, e a atuação do contribuinte, obrigado a colaborar com aquela autoridade, resulta de um implícito “interesse na correta aplicação da lei fiscal substantiva”100. Encontramo-nos assim num entrave. Por um lado é dado um direito ao contribuinte. Por outro lado esse direito pode ser fortemente limitado.

Sem hesitações, arriscamo-nos a dizer que o Princípio do inquisitório vem demonstrar que a autonomia dada ao obrigado fiscal não pode ser demasiado ampla101. Aliás essa perda de autonomia por parte do contribuinte leva a um ganho de autonomia por parte da Autoridade Tributária, pois na atividade instrutória que desenvolver pode escolher o conteúdo dos atos a adotar.

Esse ganho de autonomia chega a ser maior do que no direito administrativo, visto que, neste último, o órgão administrativo apenas “pode” proceder às diligências necessárias para o apuramento da verdade, e não “deve”. Deste modo, se no direito tributário, existe uma obrigação de atuar para a descoberta da verdade, no direito administrativo, essa tomada de diligências só é vista como uma mera faculdade102.

Contudo, esta diferença entre os dois direitos, em termos práticos, não tem grande relevância, dado que, tanto o órgão administrativo como o órgão tributário estão adstritos

100 Cfr. Matos, Pedro Vidal, O Princípio Inquisitório…, ob. cit., p.68-69

101 Cfr. Rocha, Joaquim Freitas da, (in Lições de Procedimento e Processo Tributário, 5.ªEdição,

Outubro 2014, Coimbra Editora, pp.122-123), quando o mesmo autor indica que a alargada disponibilidade conferida ao contribuinte no procedimento tributário, pode levar as duas interpretações. O autor inclusivamente refere que a o não fazer, por parte do obrigado fiscal pode funcionar em desfavor para o mesmo porque pode funcionar como uma confissão dos factos, e o fazer, pode levar a ocultação de factos importantes para a investigação.

102 Veja-se que o artigo 56.º CPA, apenas refere que os órgão administrativos responsáveis para a

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aos requerimentos ou pretensões dos interessados. Só assim se pode garantir uma satisfação do interesse público103.

Tendo em conta o que foi, por nós, referido, e apesar de fazermos notar a posição mais frágil do contribuinte durante o decorrer de um processo administrativo, reitera-se que o direito da Administração Tributária em exigir uma cooperação do contribuinte, não é absoluto.

Tem que haver, neste âmbito, uma coordenação entre os dois princípios e essa coordenação tem que estar presente, dado que a Administração Fiscal não pode abusar do seu poder-dever, até porque, são proibidas diligências descabidas ou desnecessárias104. Se olharmos para o princípio da verdade material, como princípio que está impreterivelmente ligado a um dever de cooperação geral ou recíproco, podemos afirmar que tanto as atuações dos particulares contribuintes, como as atuações da Administração, enquanto entidade pública, devem estar coordenadas de modo a que haja uma tributação devida, legal, e assente em declarações verdadeiras. Como nos diz FREITAS DA ROCHA, a “verdade material em matéria tributária implica o conhecimento e aceitação

total do princípio da igualdade (justiça) na tributação, na sua dimensão estruturante de respeito pela efetiva capacidade contributiva dos sujeitos, pois apenas o conhecimento desta permite atingir aquela”105.

Partindo da situação em que há uma ultrapassagem dos limites do dever de inquirir, todo o procedimento é considerado como ilegal, podendo ainda haver um direito por parte do contribuinte em receber uma indemnização. Como nos diz PEDRO VIDAL106, existem limites intrínsecos à atividade que foi desenvolvida a partir de um dever geral de inquirição da Administração Fiscal.

Dos limites à inquirição, podemos destacar a necessidade de a Administração Fiscal investigar factos que sejam tidos como essenciais para a descoberta da verdade material,

103 Cfr. Matos, Pedro Vidal, O Princípio Inquisitório…, ob.cit., pp.51

104 Neste sentido pensamos ser relevante o comentário feito ao 59.º da LGT, por Campos, Diogo

Leite de/Rodrigues, Benjamim Silva/Sousa, Jorge Lopes de (in Lei Geral Tributária, Comentada

e Anotada, VISLIS Editores, setembro 2003, p.278), em que se explica que o pedido de

colaboração deve ter implícito um esclarecimento de factos que sejam importantes para o procedimento, que diga respeito a factos do conhecimento da pessoa a quem foi pedida a colaboração e que não pode haver forma menos onerosa para obter o esclarecimento sobre os factos.

105 Cfr. Rocha, Joaquim Freitas da, Lições de Procedimento…, ob. cit., p. 112 106 Cfr. Matos, Pedro Vidal, O Princípio Inquisitório…, ob.cit., p.72-99

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a necessidade desses mesmos factos serem desconhecidos107, e necessidade da Administração Fiscal definir se existem os meios adequados para proceder a investigação de determinados factos. No que diz respeito a este último, não faria sentido iniciar-se um procedimento de investigação ou de averiguação da veracidade dos rendimentos declarados, quando inexistissem meios adequados para o desenvolvimento dessa mesma investigação108.

Pelo referido, podemos então concluir que existe uma cooperação recíproca, visto que ambas as partes têm deveres de atuação, apesar de no presente trabalho não podermos deixar de notar uma maior relevância dos deveres do contribuinte para que o procedimento administrativo de apuramento de rendimentos chegue a um bom porto. Para que se concretize esse objetivo, segundo o n.º 2 do artigo 48.º do CPPT, o contribuinte terá de “cooperar de boa fé na instrução do procedimento, esclarecendo de modo

completo e verdadeiro os factos de que tenha conhecimento e oferecendo os meios de prova a que tenha acesso”.

2. O dever de colaboração do contribuinte enquanto obrigação