• Nenhum resultado encontrado

1. O Estado Autoritário

1.2 O controle sobre os meios de comunicação e a linguagem

O Estado autoritário tende a exercer o monopólio sobre a informação, tanto pela apropriação dos meios técnicos de mídia como pela pretensão de estabelecer aquilo que deve ser considerado a informação legítima, factual e relevante. Se ele não for plenamente capaz de controlar a produção e difusão de informações passará então a perseguir aqueles que disseminam informações contrárias aos interesses do regime, seja pela violência ou pela deslegitimação desses discursos. A produção e veiculação de outros discursos que não o oficial devem ser mais ameaçadoras àqueles que a realizam do que ao próprio Estado.

Através do domínio dos meios de comunicação o Estado pode divulgar o que quiser e como quiser a respeito de sua atuação. Seja quanto ao gerenciamento da produção econômica interna ou quanto a atuação das tropas nacionais nos períodos de guerra, a propaganda apresentada como fato deve construir a imagem de um administrador preciso e eficiente. O poder do Estado sobre a comunicação é de fato um poder sobre a própria informação, uma vez que o controle sobre os meios de comunicação garante o poder de produção do conteúdo informativo e de sua distribuição bem como a legitimidade deste conteúdo. O Estado dispõe assim ao mesmo tempo de um instrumento de legitimação de seu discurso e de justificação da ordem existente.

Como consequência, se a palavra de quem exerce a autoridade é aquela que vale e a ela todos devem se submeter, os indivíduos distanciam-se um dos outros. Não há razão para

ouvir o outro. O Estado autoritário atinge a esfera da interação entre os cidadãos e bloqueia a possiblidade de que haja no campo político uma pluralidade de vozes. Esta integração comunicativa sobre os indivíduos se identifica no âmbito político pelo monopólio sobre a legitimidade da informação, pelo bloqueio à participação dos indivíduos não ligados aos grupos dominantes dos processos e instâncias de decisão e pelo afastamento dos indivíduos entre si.

Tal como reza a regra autoritária, as diferenças entre cargos - seja de trabalhos qualificados ou não qualificados ou entre raças - devem ser sistematicamente promovidas por todos os meios de comunicação – jornais, rádio, filmes – para isolar os indivíduos uns dos outros. Eles devem ouvir a todos, do Führer ao chefe local, mas não uns aos outros. Eles devem ser informados de tudo, das políticas de paz da nação ao uso de lâmpadas para blecaute, mas não devem informar a si mesmos. Eles devem por as mãos em qualquer coisa, mas não na liderança. Deste modo a humanidade é educada e mutilada. [...] Enquanto a fome e o perigo de guerra são necessários, resultados incontroláveis e inevitáveis de uma economia de mercado, eles podem ser utilizados de modo construtivo pelo Estado autoritário.41

O controle estatal sobre os meios de comunicação e sobre a informação exerce de fato um papel educativo sobre os indivíduos. Horkheimer voltará a este tema - apenas enunciado em Estado Autoritário - dois anos mais tarde em seu texto Arte e Cultura de

Massa. Ao discutir a transformação do papel da arte na sociedade contemporânea e a

emergência da cultura de massa (categoria ainda ausente em Estado Autoritário) Horkheimer expandirá seu diagnóstico e verá esta como substituta da família no processo de formação dos indivíduos, tendo como finalidade última o “ajuste” destes à sociedade. Em O Estado

Autoritário ainda lhe resta, entretanto, uma confiança no papel da linguagem e da

comunicação como formas possíveis de resistência à integração na medida em que se possa articular discursivamente a contestação à ordem vigente.

A mídia de massa assimila a revolução absorvendo seus líderes em sua lista de celebridades. O indivíduo isolado, que não é indicado ou protegido por qualquer poder não pode esperar pela fama. Ainda assim, ele é um poder porque todos estão isolados. Sua única arma é a palavra. Quanto mais ela é dita à toa por aí pelos bárbaros e pelos sofisticados da cultura mais seu poder é restabelecido. As proposições impotentes são mais perigosas que as mais impressionantes proclamações [party proclamations] sob Guilherme II. Toda vez que um jargão se coloca entre os intelectuais alemães e seus leitores pagantes, não demora muito para que eles aprendam a usá-lo. A linguagem sempre lhes foi de maior uso na luta pela existência do que na expressão da verdade. [...] Mas se a palavra puder ser uma faísca ela deve ainda incendiar algo. Não se trata de modo algum de propaganda e

41 Ibid., p. 103.

dificilmente de um chamado à ação. Ela deve buscar dizer aquilo que todos sabem, mas que proíbem a si mesmos de saberem.42

É notável o fato de Horkheimer reconhecer na linguagem um meio que não deve ser voltado apenas para a expressão da verdade, mas também como forma de “luta pela existência”. Ainda que seu comentário possa trazer uma carga irônica em relação a seus pares – os intelectuais alemães – ele considera que através da palavra é possível dizer “aquilo que todos sabem, mas que proíbem a si mesmos de saberem”. Se o momento presente não apresenta um horizonte para a superação do autoritarismo e para a formação de uma outra sociedade - que Horkheimer prefere chamar de “democracia sem classes” - deve ser resguardada ao menos a possibilidade de denúncia das formas de opressão sofridas pelos indivíduos e da destruição de ideais emancipatórios. A possibilidade da denúncia será uma espécie de refúgio ao qual Horkheimer recorrerá ainda outras vezes na década de 1940: será este o único papel ainda possível à realização de uma teoria crítica.

Pensar quais parâmetros deveriam estruturar uma sociedade verdadeiramente democrática é, ao mesmo tempo, um exercício de oposição e negação ao momento presente e uma forma de crítica à resignação; como Horkheimer não deixa de alertar: “o falatório atual sobre condições inadequadas [para a ocorrência de um processo revolucionário] encobre a tolerância em relação à opressão”43. Por mais que as possibilidades de transformação da realidade não estejam em vista no momento, trata-se então de tornar clara a distância que o momento presente representa em relação a uma sociedade mais livre. É isto o que Horkheimer procura mostrar quando fala sobre a impossibilidade que os Estados autoritários criam de se chegar a acordos sobre os rumos políticos e administrativos através do livre acordo. Isto se constrói pelo bloqueio às formas de participação política, pelo recurso à violência e pelo controle sobre a informação e uso dos meios de propaganda, o que interfere no processo de formação da vontade política dos indivíduos.

Se a sociedade no futuro realmente funcionar através do livre acordo ao invés da força direta ou indireta, o resultado de tal acordo não pode ser antecipado teoricamente. [...] A reflexão contemporânea a serviço de uma sociedade transformada não deve desconsiderar o fato de que em uma democracia sem classes os planos não podem ser forçados aos outros através do poder ou da rotina, mas devem ser alcançados através do livre acordo. Tal consciência não impediria

42 Ibid., p. 113. 43 Ibid., p. 106.

ninguém que aceita a possibilidade de um mundo mudado de considerar como as pessoas poderiam viver sem o policiamento da população e a autoridade penal, sem fábricas modelo e minorias reprimidas.44

O enfraquecimento da possibilidade de transformação da ordem existente se faz notar com clareza no fechamento do texto de Horkheimer, quando este reflete sobre um último aspecto do poder do Estado autoritário, sua capacidade de apropriação de ideais emancipatórios. Não é casual que Horkheimer se volte à ideia de liberdade como peça fundamental da construção ideológica da realidade. O Estado autoritário é capaz de produzir discursos em que surja como o realizador dos interesses dos indivíduos quando na verdade estes se encontram completamente determinados por este mesmo Estado. A integração social sob o Estado autoritário mostra-se então não só como uma falsa realização da liberdade na vida cotidiana, mas como sua destruição enquanto ideal.

O curso do progresso aparece às vítimas como se a liberdade, ou a falta dela, não importasse para seu bem-estar. A liberdade sofre do mesmo destino que a concepção de virtude de Valery. Ela não é mais disputada, mas esquecida e, em todo caso, embalsamada como o falatório da democracia no pós-guerra. Todos concordam que a palavra ‘liberdade’ deve ser usada apenas como sentença; leva-la a sério é utópico. Certa vez a crítica da utopia auxiliou a manter o pensamento sobre a liberdade como o pensamento de sua realização. Hoje a utopia é amaldiçoada pois ninguém quer

mesmo ver sua realização. [...] O fato de que até mesmo os inimigos do Estado

autoritário não possam mais conceber a liberdade destrói a comunicação. A linguagem é estranha na medida em que não se reconhece o próprio impulso, ou que este não é desencadeado. [...] Com razão o pensamento que é difícil de se fazer útil e de ser rotulado, traz à tona fortes desconfianças nas instâncias da ciência e da literatura, tal como a própria profissão da doutrina marxista.45

É, em última instância, a capacidade de questionamento e de percepção das formas de dominação a que os indivíduos estão sujeitos que se perde sob o Estado autoritário. A capacidade deste de produzir formas não racionais de justificação da ordem existente reside em seu poder de construir formas de aceitação da realidade pela determinação das formas de entendimento e interpretação dos indivíduos sobre esta mesma realidade. O aparato simbólico do Estado tem, portanto, uma função formadora sobre os indivíduos. Se a ordem existente é inquestionável não é só devido ao esgotamento das possibilidades de se questioná-la, mas também pelo fato de se eliminarem as razões e a necessidade deste questionamento. Como os teóricos críticos notam é preciso compreender que a ordem existente não é simplesmente imposta, mas é tornada objeto de desejo dos indivíduos. Para compreender melhor esta

44 Ibid., p. 113–114. 45 Ibid., p. 115–116.

problemática da construção da aceitação da realidade Horkheimer procurará investigar mais de perto o papel da cultura de massa e do entretenimento nas sociedades de seu tempo em

Arte e Cultura de Massa. A cultura de massa terá um papel formativo sobre os indivíduos na

medida em que ganha a dimensão do tempo livre de sua esfera privada de vida e substitui o papel que outrora era da família. Trata-se de ver então em que medida este processo formativo diz respeito à integração dos indivíduos à sociedade e quais suas consequências.