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Capítulo 3 – O Cooperativismo e a Economia Solidária: as tramas e as

3.4 O Cooperativismo e a Economia Solidária no Brasil

As experiências autogestionárias e o conceito Economia Solidária aparecem, pela primeira vez, no Brasil em um texto do autor chileno Luis Razeto (1993, p. 40) que a concebe como:

[...] uma formulação teórica de nível científico, elaborada a partir e para dar conta de conjuntos significativos de experiências econômicas [...], que compartilham alguns traços constitutivos e essenciais de solidariedade, mutualismo, cooperação e autogestão comunitária, que definem uma racionalidade especial, diferente de outras racionalidades econômicas.

As experiências cooperativadas surgem, no Brasil, no início do século XX com as cooperativas de crédito no Rio Grande do Sul e cooperativas de consumo em São Paulo. Posteriormente o modelo cooperativado passa a abranger o ramo agropecuário com leite, carne e grãos objetivando atender às necessidades dos produtores em enfrentar a intermediação comercial dos produtos gerados nos sítios, terras agrícolas e nas pequenas propriedades.

Os grandes produtores contavam/contam com recursos para armazenar e transportar, realizar vendas diretas aos grandes compradores situados em centros de comércio ou até mesmo para exportar. O desafio de juntar-se em Cooperativas de vinho, carnes e derivados, leite impulsionou um cooperativismo de pequenos produtores, mas carecendo de um projeto político que resultou na adaptação às regras do mercado culminando na separação do produtor de seus dirigentes que assumiram a administração sem oferecer alternativas de gestão ou de apresentar um projeto político que pudesse dar conta da emancipação do trabalho em relação ao capital. Teve-se, assim, apenas uma forma diferente de apropriação da riqueza que superou somente o primeiro estágio da luta por uma democracia econômica, política e social.

Quem seria esse sujeito produtor que ao emancipar-se apresentava um projeto de emancipação social? Sem uma base teórica, conhecimento, interesse e um projeto político, as boas iniciativas responderam, no nível local, a uma comunidade de interesses destituída de um horizonte de futuro além das ‘assembleias’ e decisões coletivas. Anton Pannekoek (1975), um dos autores da

corrente Conselhista, afirma que a autonomia não é apenas de aparência, pois se ela não superar a ‘alienação’ pode tornar-se uma troca de novos senhores transformando-se em um simulacro de libertação.

Em momentos agudos da luta de classes, como no maio de 1968 na França, os enfrentamentos com greves, ocupações nas fábricas e até o controle do acesso aos bairros superaram a participação ordinal em momentos de lutas pontuais. Parece ficar claro que a ausência de elementos constituidores daquilo que se denomina movimento social – que é a matéria (a produção) e a consciência política de que é preciso ir além do horizonte local e regional, e a prática social que dirigentes de um movimento se colocam para conquista de uma nova ontologia – fez com que o cooperativismo mais tradicional ficasse confinado à reprodução e não a produção de outra sociabilidade.

Somente no ano de 1971, em plena ditadura militar, é que surge, no Brasil, a base legal de organização de cooperativas com a Lei 5764. Um significativo número de cooperativas verticalizava sua produção em plantas agroindustriais, em formas empresariais celetistas que reproduziram as práticas heterogestionárias e adaptaram-se a um modelo econômico que subordinou sob outro rótulo o trabalho ao capital.

No entanto, o cenário político e econômico das crises cíclicas do sistema do capital proporcionou o surgimento de experiências de autogestão em que os trabalhadores, antes competidores entre si, passavam a lutar para garantir seus postos de trabalho quando as empresas em que trabalhavam foram à falência. Esta nova realidade fez com que estes trabalhadores tivessem que enfrentar a resistência patronal dissimulada em um sistema legal e judiciário para criarem formas autogestionárias e cooperativadas que lhes assegurassem o direito ao trabalho.

É neste cenário que se forma em 1993 a Associação Nacional dos Trabalhadores em Empresas Autogestionárias – ANTEAG – com o intuito de dar conta da discussão e promover a instrumentalização dos trabalhadores com as ferramentas de gestão. Era fundamental que os trabalhadores que assumiriam as massas falidas tivessem a compreensão de que a lógica heterogestionária não produziria rupturas no processo de falência e, para tanto, era essencial o aprendizado sobre a lógica da organização cooperativista com fundamento na autogestão.

É justamente esta forma de organização da produção em outro modo de

produzir que nutre a Economia Social e Solidária do componente essencial à

democratização da gestão em formas participativas, associativas e cooperativadas. O princípio de autogestão, mesmo que recente no Brasil, já apresentava indícios em algumas experiências desenvolvidas por grupos, associações, organizações cooperativistas, sindicais e mutualidades, com práticas solidárias, desde meados dos anos de 1980 quando a crise de estagnação se impôs ao sistema do capital produzindo desemprego, fechamento de postos de trabalho e fábricas. Iniciaram-se a busca de alternativas face à redução de demanda causada pela superprodução e um processo recessivo, forçando redução de lucros, inflação controlada e uma crise prolongada até os anos 1990.

É importante salientar que o processo de aprendizado em um projeto autogestionário está intimamente ligado às experiências que investiram no apoio às organizações sociais como as Políticas Alternativas no Cone Sul (PACS), o programa de apoio da Federação de Órgãos para a Assessoria Técnica e Educacional (FASE), da Cáritas, do Centro de Apoio aos Movimentos Populares (CAMP), da CAPINA do Instituto Brasileiro de Análises Econômicas e Sociais (IBASE) e de outras organizações não governamentais. Tais instituições compartilham as experiências de Economia Social e Solidária e cooperativista com o objetivo de construir alternativas que ultrapassem a perspectiva meramente econômica, apontando para um horizonte de autonomia, emancipação, autogestão, democracia econômica e valores igualitários inseridos em um projeto societal antitético ao modo de produzir do sistema do capital. É a lógica dialética da Economia Social e Solidária e do cooperativismo de valores humanos contraposta à lógica formal do sistema sociometabólico do capital (LEFEBVRE, 1983)32

32 A fim de elucidar o argumento de que a Economia Social e Solidária se movimenta a partir da

lógica dialética e que o sistema sociometabólico do capital se movimenta a partir da lógica formal, vale a pena definir, mesmo que sucintamente, as duas concepções de lógica analisadas por Lefebvre (1983). Segundo o autor (1983, p. 132) a lógica formal “[...] pode ser considerada como um dos sistemas de redução do conteúdo através do qual o entendimento chega a ‘formas’ sem conteúdo, a formas mais puras e rigorosas, nas quais o pensamento lida apenas consigo mesmo, isto é com ‘nada’ de substancial”. Já a lógica dialética caracteriza-se por “[...] a) dirigir-se à própria coisa [...] b) apreender o conjunto das conexões internas da coisa; [...] c) apreender os aspectos e momentos contraditórias; a coisa como totalidade e unidade dos contraditórios [...] d) analisar a luta, o conflito interno das contradições, o movimento, a tendência (o que tende a ser e o que tende a cair no nada); e) não esquecer – é preciso repeti-lo sempre [...] que tudo está ligado á tudo; e que uma interação insignificante, negligenciável por que essencial em determinado momento, pode tornar-se essencial num outro momento ou sobre um outro aspecto [...] f) não esquecer de captar as transições [...]

Neste cenário de recessão surgem na cena histórica, em fins dos anos 70 e início dos anos 1980, dois fatos relevantes: o neoliberalismo e o subsequente esvaziamento do papel do Estado. O neoliberalismo, com políticas fiscais restritivas e estratégias monetaristas baseadas no chamado Consenso de Washington33, acompanhado de uma revolução informacional, gerou o desemprego estrutural, com a supressão dos postos de trabalho acompanhada pela automação de unidades produzindo a drástica redução de trabalhadores. O esvaziamento do papel do Estado foi propalado a partir da queda do Muro de Berlin e com o desmanche da União Soviética componentes que reforçam a estratégia neoliberal conservadora que ao decretar o ‘fim da história’ colocava em descrédito, também, o papel desempenhado pelo Estado na regulação do mercado. A partir de então, a ideia de autorregulação do mercado se transformaria na base material do pensamento único que disseminava o discurso de que não haveria alternativas ao mercado.

A premente necessidade de negar a possibilidade de alternativas demonstrava o medo atávico de que estas alternativas emergissem – como de fato emergiram – de sujeitos sociais revigorando a disputa de projetos, baseados em práticas sociais de grupos e povos originários, sindicatos, associações, cooperativas e empreendimentos autogestionários.

A responsabilidade social, conceito forte em países europeus, nos quais empresas financiam projetos sociais, é descaracterizada no Brasil tendo em vista que a chamada responsabilidade social é uma forma de financiar organizações compreender que um erro de avaliação (como, por exemplo, acreditar-se estar mais longe no devir do que o ponto em que se está efetivamente, acreditar que a transição já se realizou ou ainda não começou) pode ter graves consequências; g) não esquecer que o processo de aprofundamento do conhecimento – que vai do fenômeno à essência e da essência menos profunda à mais profunda – é infinito. Jamais estar satisfeito com o obtido [...] h) penetrar, portanto, mais fundo que a simples coexistência observada; penetrar sempre mais profundamente na riqueza do conteúdo; apreender conexões de grau cada vez mais profundo, até atingir e captar solidamente as contradições e o movimento. Até chegar-se a isso, nada foi feito; i) em certas fases do próprio pensamento, este deverá se transformar, se superar: modificar ou rejeitar sua forma, remanejar seu conteúdo – retomar seus momentos superados, revê-los, repeti-los, mas apenas aparentemente, com o objetivo de aprofundá-los mediante um passo atrás rumo às suas etapas anteriores e, por vezes, até mesmo rumo à seu ponto de partida, etc”.

33 As dez regras do Consenso indicavam: Disciplina fiscal; Redução dos gastos públicos; Reforma tributária; Juros de mercado; Câmbio de mercado; Abertura comercial; Investimento estrangeiro direto, com eliminação de restrições; Privatização das estatais; Desregulamentação (afrouxamento das leis econômicas e trabalhistas) e Direito à propriedade intelectual (TEIXEIRA, 1996, p. 224)

travestidas de ONGs, fundações que filtram e apoiam projetos visando à redução de impostos em organizações ligadas umbilicalmente à direção da empresa (que a incubou). Tais instituições chegaram a adquirir um estatuto teórico de Terceiro Setor como um ‘modismo’ conforme Sobottka, (2002), que aparece como uma nova tipologia categorial, na qual se autodefinem como não Estado, não privado, e portanto, um terceiro setor34. Vale ressaltar que em alguns países da América

Latina, como é o caso do Equador, as dimensões da economia são definidas constitucionalmente como a economia do setor público; a economia do setor privado e a economia social. Nesta última estariam as cooperativas, associações de produtores, organizações sem fins de lucro e organizações de base comunitárias.

Das fábricas quebradas ao final dos anos 1990, pela abertura comercial desregrada, surgem, no Brasil, cooperativas e empreendimentos autogestionários que assumem as massas falidas com o objetivo de garantir os postos de trabalho e, especialmente na região do ABCD paulista (Santo André, São Bernardo do Campo, São Caetano do Sul e Diadema), os trabalhadores experimentam desafios de gerir seus próprios meios de produção a partir de negociações, mobilizações e acordos que possibilitaram a retomada da produção e a manutenção do direito ao trabalho como componente estruturante da dignidade humana.

É neste momento de forte tensionamento que surgem obstáculos fiscais, jurídicos, relativos à propriedade privada de terrenos, prédios, máquinas, marcas e amarras legais que o sistema construiu para se proteger, constituindo aquilo que Mézsáros (2015) denomina de células constitutivas da ordem social do capital. O apoio procedia conforme Singer (2002) dos Sindicatos, da Associação Nacional das Empresas de Autogestão (ANTEAG) e da União e Solidariedade (UNISOL), que traziam a discussão da gestão, apoio a formação e nas negociações com gestores, credores das massas falidas, poder judiciário e poder político.

Para além destas dificuldades, presentes no início de qualquer iniciativa empreendedora, agregaram-se as dificuldades da tênue experiência sócio- organizativa, de carências organizativas – de cunho burocrático – como os registros das atividades em atas e informes de movimentação de recursos e a compreensão

34 Conforme analisa Sobottka (2002) [...] essa onda de expansão do setor privado sem fins lucrativos

pode revelar-se extremamente ambígua para aqueles que supostamente seriam seus maiores destinatários: ao invés de impulsionadora dos mecanismos emancipatórios de coordenação social como a solidariedade, subjazem-lhe lógicas tipicamente sistêmicas, alheias à esfera pública.

pouco uniforme nos empreendimentos acerca dos desafios e projetos de futuro. Tudo isso conduziu a uma forte incerteza que, por vezes, culminou com desânimo, levando algumas iniciativas a não suportarem a travessia para outra forma de produzir, gerir e distribuir os benefícios das experiências autogestionárias.

São experiências que trazem em si a contradição de operar em um sistema organizado dentro da lógica do mercado do capital e, internamente operar uma forma autogestionária, de unir planejamento e execução, diferente do padrão hierárquico da heterogestão própria das empresas do sistema do capital, pois não está assegurado que a posse dos meios de produzir pelos trabalhadores associados produza mudanças em suas percepções e práticas sedimentadas em longo processo de submissão do trabalho ao capital. Há a necessidade de um processo de formação/educação35 que produza uma consciência da mudança que está em curso.

Nas experiências ao redor do mundo, o chamado movimento cooperativista – desde sua origem reconhecida como marco pioneiro na experiência da sociedade

equitativa dos pioneiros probos em Rochdale em 1844 e anteriores experiências

comunais o cooperativismo – procura resgatar práticas de povos originários que desenvolviam experiência de autogestão, de partilha igualitária do produto social, na socialização do conhecimento e práticas de gestão compartilhada de recursos.

3.5 Novos sujeitos na cena histórica: a Economia Solidária e um novo