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A grande teofania do Islam é o Corão; ele se apresenta como sendo um “discernimento” (furqan) entre a verdade e o erro. A este respeito, é significativo que no Islam o próprio Deus seja às vezes denominado El-Haqq (“a Verdade”; ana

El-Haqq, “eu sou a Verdade”, dirá El-Hallaj, e não “eu sou o

Amor”.

Num certo sentido o Corão como um todo – dentre cujos nomes um é precisamente El-Furqan, O Discernimento – é uma espécie de paráfrase múltipla do discernimento fundamental expresso na Shahadah; a totalidade do seu conteúdo está contido nas palavras: “A Verdade chegou e o erro (el-batil, o vazio ou o inconsistente) evanesceu-se; realmente, o erro é efêmero” (Corão, XXVII, 73). Ou ainda: “... Nós (Allah) lançamos a Verdade contra o erro que ela destrói, e eis que ele desaparece” (Corão, XXI, 18).

Antes de considerarmos a mensagem do Corão, daremos atenção à sua forma e aos princípios que determinam esta forma.Um poeta árabe afirmou certa vez que ele poderia escrever um livro superior ao Corão, disputando sua excelência até mesmo do ponto de vista do estilo. Este juízo, que é claramente contrário à tese tradicional do Islam, é explicável no caso de alguém que desconheça que a excelência de um livro sagrado não está a priori na esfera literária; são muitos os textos que apresentam um significado espiritual e nos quais a clareza lógica é acrescida de uma linguagem poderosa ou de formas de expressão sem que estas tenham aí um caráter sacro. Isto quer dizer que as Escrituras sagradas não o são devido ao objeto de que tratam ou à maneira como o tratam, mas pelo seu grau de inspiração, ou, o que vem a dar no mesmo, em virtude de sua proveniência divina; é isto que determina o conteúdo do livro, não o contrário; assim como a Bíblia, o Corão pode falar de muitas outras coisas além de Deus; ele fala do demônio, da guerra santa, das leis de sucessão e outras coisas sem que por isso se torne menos sagrado, enquanto que outras obras podem tratar de Deus

e de matérias sublimes sem que sejam por isso escritos pela Palavra Divina.

Para a ortodoxia islâmica o Corão não é apenas a Palavra de Deus incriada – incriada, embora expressando-se através de elementos criados, como palavras, sons e letras – mas também o modelo por excelência da perfeição da linguagem. Visto de fora, de qualquer modo, este livro aparece (com exceção do último quarto, cuja forma é altamente poética, embora não seja poesia) como sendo uma coleção de ditos e histórias que são mais ou menos incoerentes e à primeira vista com trechos incompreensíveis; o leitor desprevenido, ao ler o texto traduzido ou em árabe, passa por partes obscuras, por repetições, tautologias e, na maior parte das longas surats, por uma certa secura sem que tenha a “consolação sensorial” da beleza do som que emerge da leitura ritual e corretamente entoada. Mas essas dificuldades encontram- se num grau ou noutro na maior parte das Escrituras sagradas. A este respeito, lembremo-nos de que existem dois modos ou graus de inspiração – um direto e outro indireto – representados, no Novo Testamento, pelas palavras do Cristo e pelo Apocalipse, quanto ao primeiro modo, e pelos relatos evangélicos e as Epístolas quanto ao segundo. O Judaísmo exprime esta diferença comparando a inspiração de Moisés a um espelho luminoso e as dos demais Profetas a um espelho obscuro. Dentre os livros hindus, os textos de inspiração secundária (smriti) são em geral mais acessíveis e de aparência mais homogênea do que os Veda, que derivam da inspiração direta (shruti), o que mostra que a inteligência imediata e a beleza facilmente assimilável de um texto não são absolutamente critérios do grau de inspiração.

A aparente incoerência desses textos – como por exemplo o Cântico dos Cânticos ou certas passagens das Epístolas Paulinas – tem sempre a mesma causa, a incomensurável desproporção entre o Espírito e os recursos limitados da linguagem humana: é como se a mísera coagulação que é a linguagem dos homens mortais tivesse sido fragmentada em mil pedaços sob a pressão formidável da Palavra Divina, ou como se Deus, tendo que expressar um milhar de verdades, dispusesse apenas de uma dúzia de palavras e fosse obrigado a fazer uso de metáforas, elipses,

abreviações e sínteses simbólicas. É essa superfície de “incoerência” da linguagem corânica – e não a gramática ou a sintaxe – que o poeta mencionado anteriormente acreditou poder menosprezar. O estilo dos Livros revelados é sempre normativo, como bem caracterizou Goethe: “Todo canto gira como a abóbada celeste, a origem e o fim são sempre idênticos” (Westöstlicher Divan). Uma Escritura Sagrada – e não nos esqueçamos que a Escritura cristã compreende não só os Evangelhos mas a Bíblia como um todo, com seus enigmas e escândalos notáveis – é uma totalidade, uma imagem diversificada do Ser, diversificada e transfigurada para segurança do receptáculo humano; é uma luz que pretende tornar-se visível ao barro de que somos feitos, ou que quer tomar a forma deste barro; em outras palavras é uma verdade que, tendo que endereçar- se a seres feitos de barro, ou de ignorância, não possui outros meios de expressão senão a própria substância do erro natural de que é feita nossa alma. Jalal ed-Din Rumi diz em seu Kitab fihi ma fih: “O Corão é como uma jovem esposa: mesmo se você tentar retirar seu véu, ela não se mostrará a você. Se você discutir o Corão, não descobrirá nada, nenhuma alegria provirá. É por você ter tentado retirar o véu, que o Corão se recusou a você; despistando-o e se mostrando-se bruto e desagradável ao olhar, ele lhe diz: ‘Eu não sou quem você ama’. E assim ele pode mostrar- se sob não importa que luz”. Segundo Santo Agostinho e outros Doutores da Igreja, lembrados por Pio XII na encíclica Divino affante, “Deus semeou à vontade nos Livros Santos dificuldades que Ele mesmo inspirou, a fim de nos exercitar a lê-los e a perscrutá-los com mais atenção, e para exercitarmos a humildade pela salutar constatação da limitada capacidade de nossa inteligência”.

“Deus fala concisamente” dizem os rabinos, e isto explica tanto as fortes elipses (à primeira vista incompreensíveis) como os níveis de significados superpostos encontrados nas Revelações (o Bhagavad Gita, por exemplo, pode ser lido em sete sentidos diferentes); além disso – e aqui reside um princípio crucial – para Deus a verdade está na eficácia espiritual ou social das palavras ou do símbolo, não na exatidão factual quando esta é psicologicamente inócua ou mesmo perigosa; o primeiro desejo de Deus é salvar, não instruir, e seu compromisso é com a sabedoria e a

imortalidade, não com o conhecimento exterior, principalmente se for para satisfazer a curiosidade humana. Cristo chamou de “Templo” o seu corpo, o que pode parecer espantoso quando se pensa que este termo designa primeiramente, e com razão, um edifício de pedra; mas o templo de pedra era menos do que o Cristo, o receptáculo do Deus vivo – pelo qual Cristo veio – e na realidade o termo “templo” refere-se melhor ao Cristo do que a uma edificação feita por mãos humanas; pode-se mesma afirmar que o Templo, seja o de Salomão ou o de Herodes, era a imagem do corpo do Cristo, pois a sucessão temporal não se aplica às coisas de Deus; é por esta razão que as Sagradas Escrituras às vezes deslocam palavras e até fatos em função de uma verdade mais alta que ilude o homem. Mas não são apenas dificuldades intrínsecas que encontramos nos Livros revelados, existe ainda a questão de sua distância no tempo e as diferenças de mentalidade em diferentes períodos, ou antes as desigualdades qualitativas das diferentes fases do ciclo humano; na origem da tradição – quer estejamos falando do tempo dos Rishis ou do tempo de Maomé – a linguagem era diferente da que existe hoje, as palavras não eram bem definidas e continham muito mais do que podemos adivinhar; muitas coisas que eram claras para o leitor dos tempos antigos poderiam ser passadas por alto, mas tiveram que ser explicitadas – não adicionadas – para um estágio posterior. Não vamos nos desviar aqui para o assunto da desinteligência da “crítica dos textos”, seja ela “psicologista” ou outra; limitemo-nos a lembrar que, em nossa época, o diabo não somente apoderou-se da caridade, reduzindo-a a um altruísmo ateu e materialista, ele também dominou a exegese das Escrituras.

Um texto sagrado com sua contradições aparentes e suas obscuridades é algumas vezes como um mosaico, ou mesmo um anagrama; mas basta consultar os comentários ortodoxos e inspirados (divinamente guiados) para encontrar com que intenção foi feita uma dada afirmação e a respeito do que ela é válida, ou quais são as implicações jacentes que permitem conectar elementos que à primeira vista parecem incongruentes. Estes comentários provêm da tradição oral que nas origens acompanhou a Revelação, ou surgiram por inspiração da mesma fonte sobrenatural;

assim seu papel é não apenas o de intercalar partes perdidas, ainda que implícitas, do texto e especificar em que contexto ou em que sentido uma dada passagem deve ser entendida, mas também explicar os diversos simbolismos, muitas vezes simultâneos ou superpostos uns aos outros: em poucas palavras, os comentários fazem parte providencial da tradição; é como se eles fossem a seiva da sua continuidade, ainda que sua colocação em palavras ou sua remanifestação tenha se dado após alguma interrupção ocorrida numa data relativamente tardia de modo a atender aos requisitos de um período histórico em particular. “A tinta do que foi aprendido (na Lei ou no Espírito) é como o sangue dos mártires” disse o Profeta, e isto indica o papel capital desempenhado em todo o cosmo tradicional pelos comentários ortodoxos. Na mesma obra citada, Jalal ed-Din Rumi fala dos Profetas e dos intérpretes autorizados da tradição: “Deus Altíssimo não fala a qualquer um; como os reis deste mundo, ele não se dirige a qualquer ignorante; ele elegeu seus ministros e suplentes. Acessamos a Deus através dos intermediários que Ele elegeu. Deus Altíssimo fez uma eleição entra as criaturas a fim de que cheguemos a ele passando por aqueles que Ele elegeu”.

De acordo com a tradição Judaica não é a forma literal da Sagrada Escritura que tem a força de lei, mas apenas seus comentários ortodoxos. A Torah é um livro “fechado” e não se abre à primeira aproximação; são os sábios que a “abrem”, pois está na própria natureza da Torah requerer desde o início o comentário da Mischna. É dito que aMischna foi dada fora do tabernáculo, quando Josué a transmitiu ao Sanhedrin; com isto o Sanhedrin foi consagrado e então instituído por Deus assim como a Torah, e ao mesmo tempo. E isto é muito importante: o comentário oral, que Moisés recebeu no Sinai e transmitiu a Josué, foi em parte perdido e teve que ser reconstituído pelos sábios com base na Torah; isto mostra claramente que a gnose inclui tanto uma continuidade “horizontal” quanto uma “vertical”, ou antes que ela acompanha a Lei escrita num modo que tanto é “horizontal” e contínuo quanto “vertical” e descontínuo; os segredos são passados de mão em mão, mas a centelha pode saltar a qualquer momento pelo mero contato de um dado receptáculo

humano com o Texto revelado ou pelos imponderáveis do Espírito Santo. Também se diz que Deus deu a Torah no período diurno e a Mischnaà noite (lembremo-nos de que Nicodemos encontrou o Cristo à noite, o que implica uma referência ao esoterismo ou à gnose); que a Torah é em si infinita e que a Mischna é inexaurível por seu movimento no tempo. Podemos acrescentar que a Torah é como um oceano, enquanto a Mischna é como um rio. Com as devidas diferenças, tudo isso se aplica a qualquer Revelação e, em particular, ao Islam. É preciso que existam autoridades para a Fé (iman) e para a Lei (islam), mas igualmente devem haver autoridades para a Via (ihsan), e estas não são outra coisa que os Sufis e seus representantes qualificados. A necessidade lógica de existirem autoridades neste terceiro domínio, que os teólogos “do exterior” (‘ulama exh-zhahir) são forçados a admitir embora não o possam explicar, é ainda uma prova da legitimidade do Sufismo, tanto de suas doutrinas e métodos, como de sua organização e seus mestres.

Essas considerações a respeito aos Livros sagrados pedem uma definição, ainda que sucinta, do próprio epíteto “sagrado”: é sagrado aquilo que, em primeiro lugar, está ligado à ordem transcendente, em segundo, possui um caráter de absoluta certeza e, em terceiro, elude a compreensão e o poder de investigação da mente humana comum. Imagine uma árvore cujas folhas, por não terem nenhum conhecimento direto das raízes, põem-se a discutir se as raízes existem e sobre qual será sua forma caso existam; suponha que uma voz surja das raízes dizendo que elas existem e qual é a sua forma; a mensagem seria sagrada. O sagrado é a presença do centro na periferia, do imóvel naquilo que se move; a dignidade é essencialmente uma expressão disto, porque na dignidade o centro se manifesta ao exterior; o coração é revelado nos gestos. O sagrado introduz uma qualidade do absoluto na relatividade e confere às coisas perecíveis uma textura de eternidade.

Para entender o escopo completo do Corão devemos tomar três coisas em consideração: seu conteúdo doutrinal,, tornado explícito nos grandes tratados canônicos do Islam, como os de Abu Hanifah e Et-Tahawi; o conteúdo de sua narrativa, que ilustra todas as vicissitudes da alma; e sua magia divina ou seu poder misterioso e num certo sentido miraculoso, que explica a importância da recitação do Corão, como frisa Ibn Arabi em seu Risalat el-Quds, a respeito dos sufis que passam a vida a ler e recitar o Corão ininterruptamente, o que seria inconcebível e mesmo irrealizável se não houvesse por traz do texto literal uma presença espiritual concreta agindo além dos limites das palavras e do mental (é graças a este poder que os versículos do Corão podem afastar os demônios e curar os males, dentro de certas circunstâncias ao menos); estas fontes de sabedoria metafísica e escatológica, de psicologia mística e poder teúrgico permanecem escondidas debaixo de um véu vertiginoso de imagens cristalinas e ardentes, que frequentemente se chocam, mas também de passagens de ritmos majestosos, tecidas com cada fibra da condição humana.

Mas o caráter sobrenatural deste Livro não está só em seu conteúdo doutrinal, sua verdade psicológica e mística e sua magia mutante, ele aparece igualmente na sua eficácia mais exterior, no milagre da expansão do Islam; os efeitos do Corão no espaço e no tempo não têm relação com a mera impressão literária que o texto escrito pode proporcionar a um leitor profano. Como qualquer Escritura Sagrada o Corão também é a priori um livro “fechado”, embora “aberto” sob outros aspectos, como as verdades elementares da salvação.

É preciso distinguir dentro do Corão entre a excelência geral da Palavra Divina e a excelência específica de algum conteúdo que pode ter sido superposto, como, por exemplo, quando se trata de Deus e de suas qualidades; é como a distinção entre a excelência do ouro e a de algumas obras- primas feitas de ouro. A obra-prima manifesta diretamente a nobreza do ouro; da mesma forma a nobreza de conteúdo de um ou outro verso do livro sagrado expressa a nobreza da essência Corânica, da Palavra Divina, que é em si indiferenciada; a passagem, é claro, não pode acrescentar nada ao infinito valor da Palavra. Isto está também

conectado à “magia divina”, a virtude transformadora e às vezes teúrgica da fala divina a que aludimos todo o tempo. Esta magia está intimamente ligada com o idioma da Revelação, que é o Árabe, e assim as traduções são canonicamente ilegítimas e ritualmente inócuas. Quando Deus fala em uma língua ela se torna sagrada; e para que Deus possa se expressar nesta língua ela deve possuir certas características que não são encontradas nas línguas modernas. A este respeito, faremos um breve parêntese: a partir do que foi dito, deveríamos concluir que o aramaico é uma língua sagrada, pois era a língua falada pelo Cristo; entretanto, lembramos que, em primeiro lugar, tanto no Cristianismo quanto no Budismo, o próprioAvatara é a Revelação, de modo que as Escrituras não possuem a função central e plena que tem em outros casos, salvo a doutrina que contém; em segundo lugar, as palavras aramaicas do Cristo não se conservaram, o que corrobora a observação anterior; e, em terceiro lugar, para o Cristo a língua sagrada era o próprio hebraico; embora o Talmud afirme que “os Anjos não compreendem o aramaico”, esta língua não deixa de ter um valor litúrgico importante, até por ter sido “sacralizada” por Daniel e Esdras, bem antes de Cristo. Finalmente, é preciso compreender que após um dado período do ciclo acompanhado de um certo enrijecimento das condições terrestres Deus não mais manifestou-se como Revelação; em outras palavras, depois de um certo momento qualquer coisa colocada como uma nova religião é inevitavelmente falsa; a Idade Média marca grosso modo este limite final. Assim como para as religiões, esta ressalva vale para as ordens iniciáticas. Podemos – ou antes Deus pode – criar um novo ramo para uma filiação ancestral, ou fundar uma congregação ao redor de uma iniciação pré-existente, se houver uma razão imperiosa e se o tipo desta congregação adequar-se aos usos da tradição correspondente, mas não é possível fundar uma “sociedade” com objetivo de uma auto-realização, pelo simples fato de que esta realização é exclusiva das organizações tradicionais; mesmo se for tentada a introdução de uma iniciação real dentro do quadro de uma “sociedade” ou de qualquer fellow-ship “espiritualista”, ou seja de uma associação profana, podemos estar certos de que este mesmo quadro paralisaria toda eficácia e

provocaria forçosamente os maiores desvios. O Islam é, com efeito, a última religião mundial; quanto aos Sikhs, trata-se de um esoterismo análogo àquele de Kabir e cuja posição explica-se por condições excepcionais devidas à proximidade do Hinduísmo e do Sufismo, mas, mesmo neste caso, trata-se de uma última possibilidade.

O Corão, como o mundo, é ao mesmo tempo uno e múltiplo. O mundo é uma multiplicidade que dispersa e divide; o Corão é uma multiplicidade que une e conduza à Unidade. A multiplicidade do Livro sagrado – a diversidade de suas palavras, sentenças, ilustrações e histórias – enche a alma absorvendo-a e transpondo-a imperceptivelmente num clima de serenidade e imutabilidade através de uma espécie de “artimanha divina” (no sentido do sânscrito upaya). A alma, acostumada ao fluxo dos fenômenos, entrega-se a este fluxo sem resistência; ela vive dentro dos fenômenos e é por eles dividida e dispersa – mais do que isto, ela se torna aquilo que ela pensa e faz. O Discurso revelado tem a virtude de aceitar esta tendência e ao mesmo tempo revertê-la graças à natureza celestial do conteúdo e da linguagem, de modo a que os peixes da alma nadam sem medo e no seu ritmo habitual na divina rede, e isto é verdadeiro para qualquer Escritura sagrada, notadamente para a história bíblica, em que as vicissitudes de Israel são as mesmas da alma na busca de seu Senhor (no Cristianismo, esta função de “magia transformadora” incumbe sobretudo aos Salmos). É preciso, na medida de sua capacidade, que a mente esteja mergulhada numa consciência do contraste metafísico entre “substância” e “acidentes”; uma mente assim regenerada é uma mente que mantém seus pensamentos em Deus antes de todas as coisas e que pensa todas as coisas n’Ele. Em outras palavras, através do mosaico de textos, frases e palavras, Deus extingue a agitação mental tomando Ele mesmo a forma desta agitação. O Corão é como uma pintura de tudo o que o cérebro humano pode pensar e sentir, e é através deste meio que Deus exaure o homem irrequieto, infundindo no crente o silencia, a serenidade e a paz.

No Islam, assim como no Judaísmo, a Revelação está ligada essencialmente ao simbolismo do livro: a totalidade do universo é um livro cujas letras são os elementos cósmicos – os dharmas, diriam os budistas – os quais, por suas inumeráveis combinações e sob a influência das Idéias divinas, produzem os mundos, os seres e as coisas. As palavras e as frases do livro são as manifestações das possibilidades criativas, as palavras quanto ao conteúdo, as frases quanto ao continente; a frase é, como efeito, como que um espaço ou uma duração que carrega uma série

No documento Titus Burckhardt - Para Compreender o Islã (páginas 37-167)

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