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Titus Burckhardt - Para Compreender o Islã

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Academic year: 2021

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Para compreender o Islã

Titus Burckhardt

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ISLAM I

Islam é o encontro entre Deus como tal e o homem como tal.

Deus enquanto tal: isto significa Deus visto, não na medida em que Ele se manifesta de um modo particular em um dado instante do tempo, mas independentemente da história e na medida em que Ele é o que Ele é, assim como por Sua natureza Ele cria e revela.

Homem enquanto tal: isto significa que o homem é visto, não como um ser decaído que necessita de um milagre que o salve, mas como homem, um ser teomórfico dotado de uma inteligência capaz de conceber o Absoluto e de uma vontade capaz de escolher aquilo que conduz a este Absoluto.

Dizer “Deus” é o mesmo que dizer “ser”, “criar”, “revelar”; em outras palavras, equivale a dizer “Realidade”, “Manifestação”, “Reintegração”; dizer “homem” é como dizer “teomorfismo”, “inteligência transcendente”, e “livre arbítrio”. Estas são, no entender do autor, as premissas da perspectiva islâmica, que explicam todas as suas aplicações e que não podem ser perdidas de vista para qualquer um que queira entender qualquer aspecto particular do Islam. O homem aparece assim a priori como um receptáculo dual preparado para o Absoluto, e o Islam vem para preencher este receptáculo, em primeiro lugar com a verdade do Absoluto e em segundo com a lei do Absoluto. O Islam é, portanto, em essência, uma verdade e uma lei – ou a Verdade e a Lei -, sendo que a primeira responde à inteligência e a segunda à vontade. É assim que o Islam começa por abolir tanto a incerteza quanto a hesitação e, a fortiori, tanto o erro como o pecado; o erro em sustentar que não existe o Absoluto, ou em relativisá-lo; ou em afirmar que existem dois Absolutos, ou que o relativo é absoluto; o pecado coloca estes erros no plano da vontade e da ação. Estas duas doutrinas sobre o Absoluto e sobre o

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homem encontram-se respectivamente nos dois “testemunhos” da fé islâmica, sendo o primeiro (La ilaha

illa’Llah) concernente a Deus e o segundo

(Maoméun’rasulu’Llah) concernente ao Profeta.

A idéia de predestinação, tão fortemente marcada no Islam, não exclui a idéia de liberdade. O homem está sujeito à predestinação porque ele não é Deus, mas ele é livre porque foi feito “à imagem de Deus”. Somente Deus possui a liberdade absoluta, mas a liberdade humana, apesar de sua relatividade – no sentido de ser “relativamente absoluta” – não deixa de ser liberdade, assim como uma luz débil não deixa por isso de ser luz. Negar a predestinação acarreta pretender que Deus não conhece os eventos antecipadamente e que portanto ele não é onisciente: quod

absit.

Resumindo: o Islam confronta o que é imutável em Deus com o que é permanente no homem. Para o “exoterismo” Cristão, o homem é a priori vontade ou, mais exatamente, vontade corrompida; claramente, não se nega a inteligência, mas ela é vista apenas como um aspecto da vontade; o homem é vontade e a vontade humana é inteligente; quando a vontade é corrompida, também a inteligência é corrompida, na medida em que ela se torna incapaz de conduzir a vontade ao que é certo. Assim sendo, torna-se necessária uma intervenção divina: o sacramento. No caso do Islam, onde o homem é considerado como inteligência e a inteligência é “anterior” ao desejo, é o conteúdo ou a direção da inteligência que possuem esta eficácia sacramental: quem quer que aceite que apenas o Absoluto Transcendente é absoluto e transcendente, e que transfira as consequências disto para o campo da vontade, este estará salvo. O Testemunho da Fé –Shahadah – determina a inteligência, e a Lei islâmica – Shari’ah – determina a vontade; no esoterismo islâmico – Tariqah – existem graças iniciáticas que servem de chaves e que sublinham nossa “natureza sobrenatural”. Uma vez mais, nossa salvação, seu caráter e desenvolvimento, são prefigurados por nosso teomorfismo: uma vez que somos inteligência transcendente e livre arbítrio, é esta inteligência e este arbítrio, ou sua transcendência e liberdade, que irão nos salvar; Deus não faz mais do que encher os receptáculos que o homem esvaziou mas não

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destruiu; destruí-los não está ao alcance das possibilidades do homem.

Vamos insistir nisto: somente o homem possui o dom da fala, porque apenas ele dentre as criaturas terrestres é feito “à imagem de Deus” de modo direto e integral; ora, se é este teomorfismo que, graças à impulsão divina, leva à salvação e à libertação, a fala terá aí seu papel a desempenhar, tanto quanto a inteligência e a vontade. Estas últimas são de fato atualizadas pela prece, que é um discurso ao mesmo tempo divino e humano, sendo o ato relativo à vontade e o conteúdo à inteligência; a fala comparece como sendo o corpo, imaterial embora sensível, de nossa vontade e entendimento; mas o discurso não precisa ser necessariamente exteriorizado, porque o pensamento articulado também envolve a linguagem. No Islam nada possui maior importância do que as preces canônicas (salat) direcionadas à Kaaba e a menção dos Nomes de Deus (dhikru’Llah) direcionada ao coração; a recitação Sufi é repetida na prece universal da humanidade e inclusive na prece, no mais das vezes não articulada, de todos os seres.

O que constitui a originalidade do Islam é, não a descoberta da função salvadora da inteligência, da vontade e da fala – esta função é bastante clara e conhecida de todas as religiões – mas o fato de ter feito delas, dentro da estrutura do monoteísmo semítico, o ponto de partida de uma perspectiva de salvação e libertação. A inteligência é identificada com seu conteúdo que leva à salvação, e que não é outro que o conhecimento da Unidade, ou do Absoluto, e da dependência de todas as coisas diante disto; do mesmo modo a vontade se torna el-islam, ou, em outras palavras, a conformidade com o desejo de Deus, ou do Absoluto, seja quanto à nossa existência terrestre ou nossas possibilidades espirituais, seja quanto ao homem em si ou ao homem no sentido coletivo; a fala é comunicação com Deus e é essencialmente prece e invocação. Quando visto deste ângulo o Islam lembra ao homem não tanto o que ele deve saber, fazer ou dizer, mas antes o que são a inteligência, a vontade e a fala, por definição. A Revelação não acrescenta novos elementos, mas revela a natureza fundamental do receptáculo.

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Isto também pode ser expresso da seguinte maneira: se o homem, feito à imagem de Deus, distingue-se das demais criaturas por possuir uma inteligência transcendente, o livre arbítrio e o dom da fala, então o Islam é a religião da certeza, do equilíbrio e da prece, para tomarmos pela ordem as três faculdades deiformes. Assim encontramos a tríade tradicional do Islam, formada por iman (a “Fé”),

el-islam (a “Lei”, literalmente “submissão”) e el-ihsan (a “Via”,

literalmente “virtude”): e o significado essencial deste terceiro elemento é a “lembrança de Deus” atualizada através da prece e baseada nos dois primeiros elementos. Do ponto de vista metafísico de que se trata aqui, el-iman é a certeza do Absoluto e da dependência de todas as coisas em relação ao Absoluto; el-islam – e o Profeta na medida em que ele personifica o Islam – é um equilíbrio em termos do Absoluto e tendo o Absoluto em vista; e el-ihsan conduz ambos às suas essências pela magia da recitação sagrada, especialmente por ser esta recitação ao mesmo tempo inteligência e vontade. O papel desempenhado pelos aspectos teomórficos humanos naquilo que podemos chamar de Islam fundamental e “pré-teológico” é a parte mais importante, uma vez que a doutrina islâmica – que enfatiza a transcendência de Deus e a incomensurabilidade entre Ele e nós – evita analogias que possam favorecer o homem; assim, o Islam está longe de depender explícita ou genericamente da qualidade humana de ser uma imagem divina, embora o Corão testemunhe isto nas palavras: “Uma vez que Eu o formei conforme a perfeição e assoprei nele uma porção de Meu Espírito (min-Ruhi), prostrem-se diante dele em adoração” (XV,29 e XXXVIII,72) e apesar de que o antropomorfismo de Deus no Corão implique o teomorfismo do homem.

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A doutrina do Islam prende-se a duas proposições: em primeiro lugar, “Não existe divindade (ou realidade, ou absoluto) senão a Divindade única (ou Realidade, ou Absoluto)” (La ilaha illa’Llah) e, em segundo lugar, “Maomé (o “Glorificado”, o Perfeito) é o enviado (o porta-voz, o intermediário, a manifestação, o símbolo) da Divindade”

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(Maomé rasulu’Llah); estes são od dois primeiros Testemunhos (Shahadat) da fé.

Estamos aqui na presença de duas assertivas, duas certezas, dois níveis de realidade: o Absoluto e o relativo, Causa e efeito, Deus e o mundo. O Islam é a religião da certeza e do equilíbrio, o Cristianismo é a religião do amor e do sacrifício. Queremos dizer com isso, não que as religiões tenham monopólios, mas que cada qual se desenvolve segundo um ou outro aspecto da verdade. O Islam procura implantar a certeza – sua fé única ergue-se como algo manifestamente claro sem de modo algum renunciar ao mistério que é como se fosse o infinito interior da certeza, que não pode ser exaurido pelo que vem depois – e está baseado em duas certezas axiomáticas, uma que diz respeito ao Princípio, que é ao mesmo tempo Ser e Além-Ser, e outra que diz respeito à manifestação, tanto formal quanto supraformal: trata-se assim, de um lado, de “Deus” – ou “The Goghead”, no senti do em que Eckhart usava este termo – e de outro da “Terra” e dos “Céus”. A primeira destas certezas é que “apenas Deus é” e a segunda é que “todas as coisas dependem de Deus”; estas duas relações são também expressas na seguinte fórmula corânica: “Verdadeiramente somos de Deus (inna lilLahi) e verdadeiramente a Ele retornaremos

(wa-inna-ilayhi-raji’un)”. O Basmalah, a fórmula: “Em nome de Deus, o

Clemente e Misericordioso” (Bismi’ Llahi’ Rrahmani’ Rrahim) expressa igualmente a dependência de todas as coisas em relação ao Princípio.

Em outras palavras: “nada é absolutamente evidente, salvo o Absoluto”; assim, seguindo esta verdade: “Toda manifestação, e também tudo o que é relativo, depende do Absoluto”. O mundo está ligado a Deus – ou o relativo ao Absoluto – tanto no que diz respeito à sua causa quanto ao seu fim: o termo “Enviado”, na segunda Shahadah, enuncia, portanto, primeiro uma causalidade e depois uma finalidade, aquela se referindo ao mundo e esta ao homem; novamente, a causa ou origem está na palavra rasul(Enviado) e a finalidade na palavra Maomé (Glorificado). O risalah (a “coisa enviada”, a “epístola”, o Corão) “desceu” na laylat el-Qadr (a “noite do Poder do destinado”) e Mohammad “ascendeu” na laylat

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el-mi’raj (a “jornada noturna”), prefigurando assim o fim do

homem.

Todas as verdades metafísicas estão compreendidas no primeiro destes “testemunhos” e todas as verdades escatológicas no segundo. Mas também se pode dizer que o primeiroShahadah é a fórmula do discernimento ou “abstração” (tanzih) enquanto o segundo é a fórmula da integração ou “analogia” (tashbih): no primeiro Shahadah a palavra “divindade” (ilah) – tomada aqui no seu sentido normal e corrente – designa o mundo a partir do momento em que este é irreal, porque somente Deus é real, enquanto que o nome do Profeta (Maomé) no segundo Shahadah designa o mundo a partir do momento em que ele é real, porque nada pode estar fora de Deus; sob certos aspectos, tudo é Ele. Compreender o primeiro Shahadah significa antes de mais nada – “antes de mais nada”, porque este Shahadah inclui eminentemente o segundo – tornar-se inteiramente consciente de que apenas o Princípio é real e que o mundo, embora este “exista” em seu próprio nível, “não é”; num certo sentido isto significa compreender o vazio universal. Compreender o segundo Shahadah significa antes de mais nada tornar-se inteiramente consciente que o mundo – ou a manifestação – não é “outro” senão Deus ou o Princípio, uma vez que no nível em que ele possui realidade somente ele “é”, ou, em outras palavras, ele só pode ser divino; “antes de mais nada” significa neste caso que em última análise esta Shahadah, por ser, como a primeira, uma palavra divina ou “Nome”, ao final atualiza o mesmo conhecimento que ela em virtude da unicidade da essência da Palavra ou Nome de Deus. Compreender este Shahadah significa, portanto, ver Deus em toda parte e ver todas as coisas n’Ele. “Aquele que me viu – diz o Profeta – viu Deus”; agora, tudo é o “Profeta”, de um lado em respeito à perfeição da existência e de outro em respeito às suas perfeições de modo ou expressão. A propósito, falar-se, como afirmou um erudito espanhol a respeito de Ibn Arabi, em “Islam cristianizado”, equivale a perder de vista o fato de que a doutrina do Sheikh el-akbar era essencialmente maometana, e especificamente uma espécie de comentário do Maoméun rasulu ‘Llah no sentido do dito védico: “todas as coisas são Atma” e “Tudo é Aquilo”.

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Se o Islam apenas procurasse ensinar que existe um Deus somente, e não dois ou mais, ele não teria tido força de persuasão. De fato, ele se caracteriza por seu ardor persuasivo e isto vem do fato de que na raiz ele ensina a realidade do Absoluto e a dependência de todas as coisas em face do Absoluto. O Islam é a religião do Absoluto assim como o Cristianismo é a religião do amor e do milagre; mas o amor e o milagre também pertencem ao Absoluto e não expressam outra coisa que a atitude que Ele assume em relação a nós.

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Se formos à raiz das coisas somos obrigados a observar – deixando de lado qualquer questão dogmática – que a razão fundamental da mútua falta de entendimento entre Cristãos e Muçulmanos repousa no seguinte: o Cristianismo sempre vê diante de sua vontade – a vontade como se ela fosse ele próprio – e assim ele é confrontado por um espaço vocacional indeterminado no qual ele pode mergulhar, trazendo para o jogo sua fé e seu heroísmo; por contraste, o sistema islâmico de prescrições “externas” e claramente estabelecidas aparece para ele como a expressão de uma mediocridade pronta para fazer todos os tipos de concessões e incapaz de vôo planado; a virtude muçulmana aparece em teoria para ele – uma vez que ele ignora a sua prática – como algo artificial e vazio. A visão do Muçulmano é muito diferente: ele vê diante de si – diante de sua inteligência que busca o Um – não um espaço para a vontade como ele veria no caso da tentação de uma aventura individual, mas um sistema de canais divinamente predisposto para o equilíbrio de sua vida volitiva, e este equilíbrio, longe de ser um fim em si mesmo como o supõe o Cristão, acostumado com um maior ou menor grau de idealismo da vontade, é, ao contrário, em última análise apenas uma base para escapar, numa contemplação libertadora e cheia de paz do Imutável, das incertezas e turbulências do ego. Resumindo: se a atitude de equilíbrio que o Islam procura e realiza aparece aos olhos cristãos como uma mediocridade calculada incapaz de alcançar o sobrenatural, o idealismo sacrificial do Cristianismo pode

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ser mal interpretado pelo Muçulmano como uma desobediência individualista ao divino dom da inteligência. Se for objetado que o Muçulmano médio não se ocupa da contemplação, a resposta é que tampouco o Cristão médio se preocupa com o sacrifício; no fundo da sua alma todo Cristão nutre um impulso para o sacrifício que talvez nunca chegue a ser atualizado, e do mesmo modo todo Muçulmano tem, em razão de sua fé, uma predisposição à contemplação que talvez também nunca seja atualizada em seu coração. Fora isso outra objeção pode ser feita, considerando que os misticismos cristão e muçulmano, longe de serem opostos, apresentam ao contrário analogias tão notáveis que se é levado à conclusão de que existiram empréstimos unilaterais ou recíprocos; para responder a isto, se supomos uma mesma origem para os Sufis e para os místicos cristãos, devemos nos perguntar porque eles se tornaram muçulmanos e como foram capazes de permanecerem muçulmanos; na realidade eles se tornaram santos não apesar de sua religião, mas através dela. Longe de serem Cristãos disfarçados, homens como Al-Hallaj e Ibn’Arabi ao contrário levaram as possibilidades do Islam ao seu ponto mais alto, tanto quanto seus predecessores o haviam feito. Apesar de certas aparências, como a ausência de monasticismo como instituição social, o Islam, que prega a pobreza, o jejum, a solidão e o silêncio, possui todas as premissas de um ascetismo contemplativo.

Quando o Cristão ouve a palavra “verdade” ele imediatamente pensa no fato de que “o Verbo se fez carne”, enquanto que, quando um Muçulmano ouve a mesma palavra ele primeiro pensa “não há divindade fora da Divindade única”, e irá interpretar isto de acordo com seu grau de conhecimento, tanto literal quanto metafísicamente. O Cristianismo está baseado num “evento”, e o Islam em “ser”, na “natureza das coisas”; aquilo que aparece ao Cristianismo como um fato único, a Revelação, é visto no Islam como a manifestação rítmica de um princípio. Se, para os Cristãos, a verdade é que o Cristo dispôs-se ao sacrifício da Cruz, para os Muçulmanos – para quem a verdade é que existe apenas um Deus – a crucificação de Cristo é de tal natureza que ela não pode ser “a Verdade”, e a rejeição islâmica à cruz é um modo de expressá-lo. O anti-historicismo islâmico – que por analogia

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poderia ser chamado “platônico” ou “gnóstico” – culmina nesta rejeição que é na raiz quase externa e para alguns até duvidosa na sua intenção, como é o caso, por exemplo, de Abu Hatim, citado por Louis Massignon em seu Le Christ

dans les Evangiles selon Al-Ghazali.

Também a Queda – não apenas a Encarnação – é um “evento” único visto como capaz de determinar o “ser” – o ser humano – de um modo total. Para o Islam a queda de Adão é uma manifestação necessária do mal, mas não algo que signifique que o mal possa determinar a verdadeira natureza do homem, pois este não pode perder seu teomorfismo. No Cristianismo a “ação” divina surge de modo a ter primazia sobre o “ser” divino, no sentido de que a “ação” está refletida na própria definição de Deus. Este modo de ver as coisas pode parecer superficial, mas existe aqui uma sutil distinção que não pode ser negligenciada quando comparamos as duas teologias em questão.

A atitude de reserva adotada pelo Islam, embora não em relação a milagres em si, mas em relação à aceitação axiomática judaico-cristã (e mais especificamente cristã) dos milagres, é explicada pela predominância do pólo da “inteligência” em relação ao pólo da “existência”: a visão islâmica está baseada naquilo que é espiritualmente evidente, no sentimento do Absoluto, em conformidade com a própria natureza do homem que, neste caso, é visto como uma inteligência teomórfica e não como uma vontade que espera para ser seduzida no bom ou no mau sentido, seduzida, diga-se de passagem, pelos milagres ou pelas tentações. Se o Islam, a última das grandes revelações a aparecer, não está fundamentado em milagres – embora aceitando-os por necessidade, caso contrário não seria uma religião -, isto é porque o Anticristo “desencaminhará muitos por suas maravilhas”; a respeito, um escritor católico do final do século XIX poderia exclamar: “O que precisamos é de sinais, fatos concretos!”. É inconcebível que um muçulmano pudesse dizer tal coisa; no Islam isto seria visto como infidelidade, ou mesmo uma apelação ao diabo ou ao anticristo, e de qualquer modo como uma vergonhosa extravagância. Mas a certeza espiritual (algo que está no extremo oposto desta “reviravolta” provocada pelo milagre), certeza que o Islam oferece na forma de uma fé unitária penetrante, é um elemento a que o mal não tem

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acesso; ele pode imitar um milagre, mas não uma evidência intelectual; ele pode imitar um fenômeno, mas não o Espírito Santo, exceto nos casos daqueles que querem ser enganados e não tem noção nem da verdade nem do sagrado.

Fizemos antes uma alusão ao caráter não-histórico da perspectiva islâmica. Este caráter explica, não apenas sua intenção de ser não mais que uma repetição de uma realidade atemporal ou uma fase em um ritmo indefinido, e portanto uma “reforma” – no sentido estritamente ortodoxo e tradicional do termo, e mesmo num sentido transposto na medida em que uma revelação é inevitavelmente espontânea e provém apenas de Deus qualquer que seja a aparência –, mas explica também algumas idéias islâmicas tais como a da criação contínua: se Deus não fosse Criador todo o tempo o mundo passaria; uma vez que Deus é sempre Criador é Ele que intervém em todos os fenômenos e não existem causas secundárias, nem princípios intermediários, nem leis naturais que possam se colocar entre Deus e o fato cósmico, com uma única exceção no caso do homem, o qual, sendo o representante (imam) de Deus na terra, possui estes dons milagrosos, a inteligência e a liberdade. Mas em última instância nem mesmo estes bens escapam à divina determinação; o homem escolhe livremente aquilo que Deus quer; ele escolhe livremente porque Deus o quer assim, porque Deus não pode manifestar dentro da ordem contingente Sua absoluta Liberdade. Assim, nossa liberdade é real, mas num grau de realidade que é ilusória como a relatividade em que ela se produz e dentro da qual ela é um reflexo d’Aquela que verdadeiramente é.

A diferença fundamental entre o Cristianismo e o Islam expõe claramente o que cada um detesta: o que é detestável para o Cristão é, em primeiro lugar, a rejeição da divindade do Cristo e da Igreja e, em segundo uma moral menos ascética do que a sua, para não dizer relaxada; já o muçulmano odeia a rejeição a Allah e ao Islam porque a suprema Unidade em seu grau absoluto e transcendental se apresenta a ele como evidente e majestática e porque para ele o Islam, a Lei, equivale à Vontade divina e é a emanação lógica, na forma de equilíbrio, desta Unidade. Ora, a Vontade divina – aqui considerada acima das

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diferenças expostas acima – não necessariamente coincide com o sacrifício, e mesmo, em certos casos, combina o útil e o agradável; assim, afirma o muçulmano: “É bom o que Deus quer”, e não “Deus quer o que é doloroso”; logicamente o cristão possui a mesma opinião, mas sua sensibilidade e sua imaginação o levam com mais frequência à segunda formulação. No âmbito do Islam a Vontade divina tem em vista, em primeiro lugar, não o sacrifício e o sofrimento como provas de amor, mas o desenvolvimento da inteligência teomórfica (min Ruhi, “de Meu Espírito”), ela mesma determinada pelo Imutável e portanto incluindo nosso ser, caso contrário existirá “hipocrisia” (nifaq), porque saber é ser. Na realidade, a aparente “facilidade” do Islam tende para um equilíbrio, como já apontamos, para o qual a razão suficiente é em última análise o esforço “vertical”, a contemplação, a gnose. Num certo sentido o que devemos fazer é o oposto do que Deus faz; noutro sentido, devemos agir como Ele: isto porque por um lado somos semelhantes a Deus, desde que existimos, e por outro somos opostos a Ele porque, por existirmos, estamos separados d’Ele. Por exemplo, Deus é Amor; assim, somos levados a amar, por sermos como Ele; mas, por outro lado, Ele julga e sentencia, o que não podemos fazer por não sermos Ele; mas como estas posições são sempre aproximadas, a moral pode e deve sempre variar; sempre há lugar em nós – em qualquer grau, em princípio – para um amor culpado ou para uma vingança justa. Aqui tudo é uma questão de ênfase e delimitação; a escolha depende de uma perspectiva que não é arbitrária (caso contrário não seria uma perspectiva) mas é conforme à natureza das coisas ou a um aspecto específico desta natureza.

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Todas as posições descritas acima estão fundadas nos dogmas, ou, num senso mais profundo, na perspectiva metafísica que eles expressam, o que equivale a dizer a partir de um dado “ponto de vista” enquanto sujeito e de um certo “aspecto” quanto ao objeto. Uma vez que o Cristianismo está fundamentado na divinização de um

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fenômeno terrestre – não que o Cristo seja terrestre em si, mas apenas na medida em que ele se move no tempo e no espaço – o Cristianismo é forçado, como consequência disto, a introduzir a relatividade no Absoluto, ou antes a considerar o Absoluto em um nível relativo, o nível da Trindade; falar em distinção é falar em relatividade: o próprio termo “relações trinitárias” prova que o ponto de vista adotado – providencial e necessariamente adotado – permanece no nível apropriado a toda bhakti (a gnose vai além deste nível ao atribuir absolutividade ao “Godhead” no sentido de Eckhart, ou ao “Pai” quando a Trindade é considerada verticalmente, caso em que o “Filho” corresponde ao Ser – a primeira relatividade “dentro do Absoluto” – e o Espírito Santo ao Ato). Uma vez que um “relativo” específico é considerado como absoluto, o Absoluto deve possuir alguma coisa de relativo, e desde que a Encarnação é um fato da Divina Misericórdia ou Amor, Deus deve ser visto sob este aspecto e o homem sob o aspecto correspondente da vontade e do afeto; e igualmente o plano espiritual deve ser uma realidade de amor. A ênfase cristã na vontade é a contrapartida da concepção cristã do Absoluto e, se podemos nos expressar assim, esta aparece como se fosse determinada pela “historicidade” de Deus.

Analogamente, desde que o Islam está fundamentado no absolutismo de Deus, ele é forçado como consequencia – uma vez que ele se apresenta na forma como um dogmatismo semítico, caracterizado pelo fato de atribuir um escopo absoluto e um sentido exclusivo a um “aspecto” ou “ponto de vista” particular (enquanto que na metafísica pura todas as antonímias conceituais são resolvidas na verdade total – o que não deve ser confundido com resolver as oposições reais negando-as) – a excluir do Absoluto tudo o que é terrestre e, a fortiori, ao menos no nível das palavras, a negar a divindade do Cristo; ele não é obrigado a negar que de modo secundário o relativo está em Deus, porque ele admite os atributos divinos, caso contrário ele negaria a totalidade de Deus e também qualquer possibilidade de conexão entre Deus e o mundo; mas ele

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deve negar qualquer caráter diretamente divino fora da Princípio único. Os Sufis são os primeiros a reconhecer que nada pode existir fora da suprema Realidade, porque dizer que a Unidade exclui tudo equivale a dizer que de um outro ponto de vista – o da realidade do mundo – ela inclui tudo; mas esta verdade não é susceptível de uma formulação dogmática, porque ela está logicamente incluída no La ilaha

illa’Llah.

Quando o Corão afirma que o Messias não é Deus ele quer dizer que ele não é um “deus” outro que Deus, ou que ele não é Deus na medida em que é o Messias terrestre; em termos cristãos: a natureza humana não é a natureza divina; se o Islam insiste nisto, como o faz, de um modo particular e não de outro, é devido ao seu ângulo de visão. E quando ele rejeita o dogma da Trindade ele quer dizer que não existe uma tríade em “Deus enquanto tal”, ou seja, no Absoluto, que está além de toda distinção. Finalmente, quando o Corão chega a negar a morte do Cristo, podemos entender por isto que na realidade Jesus venceu a morte, ainda que os judeus acreditem haver matado o Cristo em sua verdadeira essência; o Corão diz: “Não diga daqueles que foram assassinados no caminho de Deus que eles estão mortos; diga que eles estão vivos, embora não possamos perceber”; aqui a verdade do símbolo prevalece sobre a verdade do fato no sentido em que a negação espiritual toma a forma de uma negação material; mas, de outro ângulo, com esta negação, ou aparente negação, o Islam elimina a via do Cristo naquilo que diz respeito a ele, e é lógico que seja assim desde que sua própria via é diferente e ele não tem que apelar para os meios de graça que é próprios do Cristianismo. A mesma observação sobre a verdade do símbolo aplica-se ao Cristianismo quando, por exemplo, os santos do Antigo testamento – inclusive Enoch, Abraão, Moisés e Elias – são considerados como tendo permanecido fora do Paraíso até a “descida aos Infernos” do Cristo; não obstante, antes desta descida, o Cristo apareceu entre Moisés e Elias na noite da transfiguração e numa parábola mencionou “o peito de Abraão”; estes fatos são claramente sujeitos a várias interpretações, mas os conceitos cristãos nem por isso são incompatíveis com a tradição judaica. O que justifica tudo é o simbolismo espiritual e portanto a sua verdade: a salvação deve

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necessariamente vir através do Logos que, embora manifestado no tempo e numa forma particular, está além das limitações da condição temporal. Note-se igualmente a aparente contradição entre São João Batista negando ser Elias enquanto o Cristo afirma o contrário; caso esta contradição, que se resolve pela diferença de relação considerada, fosse entre uma religião e uma outra, ela teria sido explorada ao extremo sob o pretexto de que “Deus não pode contradizer a Si mesmo”.

No plano da verdade total, que inclui todos os pontos de vista, aspectos e modos possíveis, qualquer recurso à razão pura é inútil: consequentemente é vão apresentar contra qualquer dogma de uma religião “estrangeira” que um erro denunciado pela razão não possa se tornar verdade em outro plano, porque isto equivale a esquecer que a razão trabalha de forma indireta, ou por reflexos, e que seus axiomas são inadequados a partir do momento em que o plano do intelecto puro é alcançado. A razão é formal por natureza e formalista em suas operações; ela procede por “coagulações”, por alternativas e por exclusões – ou, podemos dizer, por verdades parciais. Ela não é, como o intelecto puro, sem forma como uma luz “fluida”; é certo que ela deriva sua maneira implacável, ou sua validação em geral, do intelecto, mas ela só alcançam as essências através de conclusões construídas, e não por uma visão direta; ela é indispensável para a formulação verbal mas não envolve o conhecimento imediato das coisas.

No Cristianismo a linha demarcatória entre o relativo e o Absoluto passa pelo Cristo; no Islam ela separa o mundo de Deus, e mesmo – no caso do esoterismo – os atributos divinos da essência, diferença que se explica pelo fato de que o exoterismo precisa sempre partir do relativo, enquanto o esoterismo parte do Absoluto ao qual ele empresta o significado estrito, e aliás o mais estrito que é possível. No Sufismo diz-se ainda que os atributos divinos são predicados como tais apenas em respeito ao mundo e que, em si mesmos, eles são indistintos e inefáveis: assim pode-se afirmar de Deus que Ele é, num sentido absoluto, “misericordioso” e “vingativo”, deixando momentaneamente de lado que ele é misericordioso

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“antes” de vingativo; assim como outros atributos da Essência, tais como a “sacralidade” ou a “sabedoria”, somente são atualizados em respeito à nossa mente distintiva, e o são sem que por isto percam seja o que for de sua infinita realidade, muito antes pelo contrário.

Afirmar que a perspectiva islâmica é possível equivale a dizer que ela é necessária e portanto não pode deixar de ser; isto é requerido pelo receptáculo humano. As diferentes perspectivas, enquanto tais, não possuem assim nenhuma qualidade absoluta, dado que a Verdade é uma; aos olhos de Deus suas diferenças são relativas e os valores de qualquer uma podem ser encontrados nas demais, de alguma forma. Não existe apenas um Cristianismo de “calor”, de amor emocional, de atividade sacrificial, mas, misturado com tudo isto, existe também um Cristianismo “frio”, de gnose, de pura contemplação, de “paz”, e do mesmo modo o Islam “seco” – legal e metafisicamente – incorpora um Islam que é “úmido” (sempre empregando estes termos no sentido alquímico), um Islam, se podemos dizê-lo, mais preocupado com a beleza, o amor e o sacrifício. É preciso que seja assim porque a unidade, não apenas da Verdade mas também do homem, é sem dúvida relativa, desde que existem as diferenças, mas não obstante suficientemente real para conduzir, ou para impor, a reciprocidade – ou a ubiquidade espiritual – de que se trata.

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Aqui existe um ponto que deve ser tratado, a questão da moralidade muçulmana. Se quisermos compreender algumas das contradições visíveis nesta moralidade devemos levar em consideração que o Islam distingue o homem enquanto tal do homem coletivo, sendo que este aparece como uma nova criatura sujeita num certo grau, embora não muito distante, às leis da seleção natural. Isto equivale a dizer que o Islam coloca todas as coisas no seu devido lugar e trata cada qual conforme sua natureza própria; ele encara o homem coletivo, não da perspectiva distorcida de um idealismo místico que é de fato

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inaplicável, mas levando em conta as leis naturais que regulam cada ordem e que são, dentro dos limites de cada ordem, estabelecidas por Deus. O Islam é a perspectiva da certeza e da natureza das coisas, mais do que de milagres e improvisação idealista. Isto é dito sem intenção de diminuir indiretamente o Cristianismo, que é aquilo que ele deve ser, mas para melhor colocar a intenção e a justificativa da perspectiva islâmica.

Se partirmos da idéia que o esoterismo por definição considera antes de mais nada o ser das coisas, e não toma por base nossa situação em relação à nossa vontade, então para o gnóstico cristão o ser das coisas é o próprio Cristo, o “Verbo do qual todas as coisas são feitas e sem o qual nada foi feito”. A Paz de Cristo é, deste ponto de vista, o repouso do intelecto “naquilo que é”.

Se existe uma clara separação no Islam entre o homem enquanto tal e o homem coletivo, estas duas realidades não deixam de estar profundamente ligadas, dado que a coletividade é um aspecto do homem – nenhum homem pode nascer fora de uma família – e que reciprocamente a sociedade é uma multiplicação de indivíduos. Note-se que falamos em “homem enquanto tal” e não usamos a expressão “homem só” porque ela apresenta a desvantagem de definir o homem a partir da coletividade e não a partir de Deus; a distinção feita não é entre um homem e muitos homens, mas entre a pessoa humana e a sociedade. Segue-se desta interdependência ou reciprocidade que qualquer coisa feita em vista da coletividade, como a esmola para os pobres ou a guerra santa, possui um valor espiritual para o indivíduo e vice-versa; esta relação recíproca é tão mais verdadeira na medida em que o indivíduo vem antes da coletividade, pois todos os homens descendem de Adão, e não Adão descende dos homens.

O que foi dito explica porque o muçulmano, ao contrário dos budistas e hindus, não abandona os ritos externos para seguir um método espiritual que lhe convenha, ou porque tenha atingido um estágio espiritual cuja natureza autorize tal abandono. Um determinado santo pode não ter mais necessidade das preces canônicas, desde que se encontre num estado permanentemente mergulhado em prece, um

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estado de “intoxicação” – e apesar disto ele continua a cumprir as orações de modo a rezar com todos e para todos, e para que todos rezem com ele e para ele. Ele é a encarnação do “Corpo místico” que toda comunidade crente constitui, ou, de outro ponto de vista, ele encarna a Lei, a tradição e a prece enquanto tais. Desde que ele é um ser social ele deve ensinar com seu exemplo e, desde que ele é um indivíduo humano, permitir que aquilo que é humano se realize e se renove através dele. É interessante lembrar que o Corão diz: “Não se dirija para a prece em estado de embriaguez”, e isto pode ser entendido num sentido elevado e positivo; o Sufi que desfruta de uma “estação” (maqam) paradisíaca, ou meramente o dhakir (o homem entregue ao dhikr, o equivalente islâmico do japa hindu) pode, considerando sua prece secreta como um “vinho” (khamr), em princípio abster-se das orações comuns; “em princípio” porque de fato o cuidado com o equilíbrio e a solidariedade, tão enfatizados no Islam, apontam para a outra direção.

Aqui é preciso salientar que o princípio do abandono dos ritos comuns não deixou de ser conhecido e algumas vezes manifestado no Islam, caso contrário Ibn Hanbal não teria reprovado os Sufis por desenvolverem a meditação em detrimento das orações, como se pretendessem livrar-se das obrigações da lei. De fato, existe uma distinção entre os dervishes que são “viajantes” (para Deus: salikun) e os que são “atraídos” (por Deus:majadhib) os da primeira categoria formam a grande maioria e devem obedecer a Lei, enquanto que os últimos são dispensados e não são incomodados porque são normalmente considerados meio loucos e às vezes dignos de piedade, às vezes de medo, às vezes de veneração. Dentre os Sufis da Indonésia os casos de abandono dos ritos em favor da prece do coração parecem não ser raros; a consciência da Unidade Divina é então considerada uma prece universal que dispensa das preces canônicas; o conhecimento supremo é visto como excluindo a multiplicidade “politeísta” (mushrik) dos ritos, porque o Absoluto não possui dualidades. No Islam em geral parece sempre ter havido – embora à parte da distinção especial entre salikun e majadhib – uma divisão exterior entre os Sufis que são “nômicos” e aqueles que são “antinômicos”, sendo os primeiros ligados à Lei em virtude

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do seu simbolismo e oportunidade e os segundos dispensados da Lei em virtude da supremacia do coração (Qalb) e do conhecimento direto (ma’rifah). Jalal ed-Din Rumi diz em seu Mathnawi: “Os amantes do rito formam uma classe e aqueles cujos corações foram inflamados pelo amor formam outra”, uma observação que se aplica apenas aos Sufis, como demonstra a referência à “essência da certeza” (‘ayn al-yaqin), e que não inclui nenhuma sugestão de uma alternativa sistemática, como o prova a própria vida de Jalal ed-Din; nenhuma “livre interpretação” pode justificar-se por isto. Finalmente, deve-se notar que, de acordo com Al-Junaid, “aquele que realiza a união” (muwahhid) deve observar “sobriedade” (sahw) e afastar-se da “intoxicação” (sukr) assim como da “libertinagem” (ibahiyah).

A transparência metafísica das coisas e seu questionamento contemplativo significa que a sexualidade (dentro da estrutura de sua legitimidade tradicional, que é ao mesmo tempo equilíbrio psicológico e social) pode assumir um caráter meritório, como o mostra a própria existência daquela estrutura. Em outras palavras não é apenas a felicidade que conta – deixando de lado a continuação da espécie – porque a sexualidade possui também um conteúdo qualitativo, sendo seu simbolismo a um tempo objetivo e vivido. A base da moralidade muçulmana está sempre na realidade biológica e não num idealismo contrário às possibilidades coletivas e aos direitos inegáveis das leis naturais; mas esta realidade, ao mesmo tempo em que forma a base de nossa vida animal e coletiva, não possui uma qualidade absoluta, porque somos seres semi-celestiais; ela sempre pode ser neutralizada no nível de nossa liberdade pessoal, embora nunca abolida no de nossa existência social. Por exemplo, muitos santos hindus romperam com as castas, mas nenhum sonhou em aboli-las. À questão de se existem duas moralidades, uma para indivíduos e outra para o Estado, a resposta é afirmativa, guardada a ressalva de que uma sempre pode estender-se ao domínio da outra conforme circunstancias tanto internas quanto externas. Nunca, em nenhuma circunstancia é permitida a intenção de “não resistir ao mal” para tornar-se cúmplice, traidor ou suicida.

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O que foi dito da sexualidade aplica-se por analogia, embora apenas quanto ao mérito, à alimentação: como no caso de qualquer religião, empanturrar-se é pecado, mas comer em boa medida e agradecendo a Deus não é pecado no Islam, mas ao contrário um ato positivo e meritório. Claro que a analogia não é total, pois num hadith bem conhecido o Profeta diz que ele “amou as mulheres”, não que ele amou a comida. Aqui o amor às mulheres está conectado com a nobreza e a generosidade, sem contar o simbolismo puramente contemplativo que vai muito além disso.

O Islam é frequentemente criticado por ter propagado sua fé pela espada; o que é esquecido é, em primeiro lugar, que a persuasão desempenhou um papel muito maior do que a guerra na expansão do Islam como um todo; em segundo, que apenas os politeístas e os idólatras poderiam ser compelidos a abraçar a nova religião; esta atitude, por exemplo, cessou em relação aos Hindus, em larga medida, desde que os muçulmanos se deram conta de que o hinduísmo não é equivalente ao paganismo árabe e assimilaram os Hindus aos “povos do Livro” (ahl al-Kitab), ou seja ao monoteísmo das tradições ocidentais semíticas; em terceiro, que o Deus do Antigo Testamento não é menos guerreiro que o Deus do Corão, bem ao contrário; e, em quarto, que o Cristianismo também usou a espada nos tempos de Constantino. A questão que se coloca é simplesmente esta: é possível que a força seja usada para afirmar e difundir uma verdade vital? Sem dúvida a resposta deve ser afirmativa, pois e experiência demonstra que às vezes a violência precisa ser usada contra pessoas irresponsáveis em seu próprio interesse. Ora, uma vez que a possibilidade existe, ela não deve deixar de se manifestar quando as condições sejam apropriadas – Cristo, ao usar de violência contra os vendilhões do templo, mostrou que esta atitude não pode ser excluída – , exatamente como no caso oposto, em que a vitória acontece pela força inerente à própria verdade; é a natureza interna ou externa das coisas que determina a escolha entre as duas possibilidades. Por um lado o fim santifica os meios, o que significa que os meios devem achar-se prefigurados na natureza divina; assim o direito do mais forte está prefigurado na “selva” à qual pertencemos sem dúvida, num certo grau e enquanto

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coletividade; mas nesta “selva” não encontramos nenhum direito à perfídia ou vilania e, ainda que encontrássemos, nossa dignidade humana nos interditaria de participar disso. A dureza de certas leis biológicas nunca deve ser confundida com a infâmia de que só o homem é capaz, em função de seu teomorfismo pervertido. O escritor Ernst Kühnel ressalta a questão em uma passagem exemplar: “Vemos príncipes católicos e muçulmanos não apenas em alianças quando se trata de quebrar o poder de um perigoso fellow-religionist, mas também auxiliando generosamente uns aos outros para combater desordens e revoltas. O leitor deverá menear a cabeça ao saber que numa das batalhas do Califato de Córdoba, em 1010 dC, foram forças catalãs que salvaram a situação, e três bispos deram suas vidas pelo “Príncipe dos Fiéis” (...) Al Mansur tinha em sua companhia muitos Condes, que se juntaram a ele com suas tropas, e não havia nada de excepcional na presença de guardas cristãos na corte de Andaluzia (...) Quando um território inimigo era conquistado as convicções religiosas da população eram respeitadas tanto quanto possível; lembremo-nos que Al Mansur – em geral um homem de poucos escrúpulos – tomou cuidados, no assalto a Santiago, para proteger contra qualquer profanação a igreja que continha a tumba do Apóstolo, e que em muitos outros casos os Califas tiveram a chance de mostrar seu respeito para com os objetos sagrados do inimigo: e em circunstancias similares os cristãos observaram a mesma atitude. Por séculos o Islam foi respeitado nos territórios reconquistados, e apenas no século XVI que ele passou a ser sistematicamente perseguido e exterminado pela instigação de um clero fanático que tornara-se superpoderoso. Em contraste com isso, através de toda a Idade Média a tolerância para com as convicções estrangeiras e o respeito pelos sentimentos do inimigo acompanharam as incessantes lutas entre mouros e cristãos e contribuíram para suavizar grandemente as misérias da guerra, dando às batalhas um caráter tão cavalheiresco quanto possível (...) Apesar do abismo que os separavam em matéria de língua, este respeito pelo adversário e a alta estima pelas suas virtudes tornou-se um laço comum assim como o foi a compreensão mostrada na poesia de ambos os lados em relação ao outro; inclusive

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esta poesia testemunha de forma eloqüente o amor e a amizade que frequentemente unia cristãos e muçulmanos apesar de todos os obstáculos.” (Ernst Kühnel, Maurische

Kunst, Berlim, 1924)

De um certo ponto de vista pode-se dizer que o Islam tem duas dimensões, a dimensão “horizontal” da vontade e a dimensão “vertical” da inteligência: podemos chamar a primeira de “equilíbrio” e a segunda de “união”. O desequilíbrio também inclui um sentido positivo, mas apenas indiretamente: toda guerra santa é um desequilíbrio. Como exemplo, alguns ditos do Cristo podem ser interpretados como instituindo o desequilíbrio dentro de uma perspectiva de união, como por exemplo: “Não pensem que vim trazer paz à terra”; somente Deus irá assim restaurar o equilíbrio. O Islam é essencialmente equilíbrio e união; ele não sublima a priori a vontade pelo sacrifício, mas neutraliza-a com a Lei, enquanto ao mesmo tempo a mantém segura pela contemplação. As dimensões de equilíbrio e união, a horizontal e a vertical, concernem tanto o homem enquanto tal como a comunidade; certamente não existe uma identificação aqui, mas uma solidariedade que faz com que a sociedade participe, a seu modo e conforme suas possibilidades, no caminho individual de União, e a recíproca é verdadeira. Uma das maneiras mais importantes de realizar o equilíbrio é precisamente a concordância entre a Lei sagrada que se refere ao homem como tal e a lei relativa à sociedade. Empiricamente o Cristianismo foi forçado pelas circunstâncias a buscar essa posição, mas deixou certas “fissuras” permanecerem, e não as conteve, seja em primeira instância pela divergência entre os dois planos humanos, ou , como consequência disto, pela necessidade de harmonizá-los. Repitamos uma vez mais que o Islam é um equilíbrio determinado pelo Absoluto e disposto com vistas ao Absoluto; este equilíbrio, como o ritmo que no Islam é realizado ritualmente através das preces canônicas que seguem a marcha do Sol e “mitologicamente” através da série retrospectiva das Mensagens divinas e dos Livros revelados, equivale à participação da multiplicidade no Um, ou do condicionado no Incondicionado; sem equilíbrio, desta perspectiva, é impossível encontrar o centro, e fora deste centro nenhum progresso e nenhuma união é possível. Se o

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equilíbrio diz respeito ao “centro”, o ritmo refere-se mais particularmente à “origem”, vista como a raiz qualitativa das coisas.

Como todas as civilizações tradicionais, o Islam é um “espaço” e não um “tempo”, pois, para ele, o “tempo” não passa da corrupção deste “espaço”. “Nenhum período virá”, predisse o Profeta, “que não seja pior do que seu precedente”. O “espaço”, esta tradição invariável – invariável apesar da difusão e da diversidade de formas em relação ao momento da elaboração inicial da tradição – envolve a humanidade muçulmana como um símbolo, assim como o mundo físico que nos alimenta invariável e imperceptivelmente com seu simbolismo; é normal para a humanidade viver em um símbolo, que é como uma seta que aponta para o Céu, como uma abertura para o Infinito. Quanto à ciência moderna, ela perfurou as fronteiras que protegiam este símbolo e, ao fazê-lo, destruiu o próprio símbolo; ela assim aboliu a seta, a abertura, na mesma medida aliás em que o mundo moderno destrói os símbolos espaciais constituídos pelas civilizações tradicionais; aquilo que ela denomina “estagnação” e “esterilidade” é na verdade a homogeneidade e a continuidade do símbolo. Quando um muçulmano autêntico diz aos protagonistas do progresso: “Tudo o que vos resta é abolir a morte”, ou quando ele pergunta: “Vocês podem impedir o Sol de se por, ou forçá-lo a nascer?”, ele expressa exatamente aquilo que está na raiz da “esterilidade” islâmica: um maravilhoso sentido da relatividade e, o que vem a dar no mesmo, um sentimento de que o Absoluto domina toda as sua vida. Fernand Brunner aponta a falta de compreensão moderna em relação ao verdadeiro caráter das ciências antigas: “Nem a Índia nem os Pitagóricos praticavam ciência moderna, e isolar aí os elementos de técnica racional que lembram nossa ciência dos elementos metafísicos que em nada a lembram consiste numa operação arbitrária e violenta que é contrária à objetividade verdadeira. Assim colocado Platão não possui mais do que um interesse anedótico, enquanto que toda sua doutrina consiste em instalar o homem na vida supra-temporal e supra-discursiva do pensamento, de que as matemáticas, assim como o mundo sensível, podem ser os símbolos. Assim, se os povos puderam existir sem nossa ciência durante milênios e em

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todos os climas, é porque ela não é necessária; e se ela surgiu como fenômeno de civilização bruscamente e num só lugar, foi para revelar sua essência contingente” (Fernand Brunner, Science et Realité, Paris, 1954).

Para entender as civilizações tradicionais em geral e o Islam em particular é preciso levar também em conta o fato de que para elas a forma humana não corresponde ao homem comum imerso em ilusão, mas ao santo, destacado do mundo e ligado a Deus; somente este é inteiramente “normal” e somente ele desfruta do “pleno direito” de existir; é esta perspectiva que proporciona a algumas delas uma certa falta de sensibilidade em relação à natureza humana enquanto tal. Na medida em que esta natureza é em grande parte insensível em relação ao Soberano Bem, ela deve ao menos temê-lo, se não puder ter amor a Ele. A vida das pessoas divide-se em duas metades: uma constitui o teatro de sua existência terrestre, outra seu relacionamento com o Absoluto. O que determina o valor de um povo ou de uma civilização não é a forma literal de seu sonho terrestre – pois aqui tudo não passa de símbolo – mas sua capacidade de “sentir” o Absoluto e, no caso de algumas almas especialmente privilegiadas, alcançarem o Absoluto. Assim é completamente ilusório colocar-se à parte desta dimensão “absoluta” e avaliar o mundo humano de acordo com um critério terrestre, como quando se compara uma civilização material com outra. A distância de alguns milhares de anos que separa a idade da pedra dos Índios Peles Vermelhas do refinamento material e literário do homem branco não representa nada quando comparada com a inteligência contemplativa e com as virtudes, que sozinhas emprestam valor ao homem e sozinhas mantém sua permanente realidade, ou este algo que nos permite avaliá-lo realmente, como ele aparece aos olhos do Criador. Acreditar que alguns homens “ficaram para trás” porque seu sonho terrestre é mais “rudimentar” que o nosso – e às vezes por isso mesmo é mais sincero – é ainda mais ingênuo do que acreditar que a Terra é plana ou que um vulcão é um deus; a mais ingênua de todas as atitudes é certamente ver o sonho como algo absoluto e sacrificar em nome dele todos os valores essenciais, esquecendo que o que é “sério” começa em outro nível além, ou melhor, que o

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que é “sério” neste mundo, o é em função daquilo que lhe está além.

A civilização moderna, enquanto modelo de pensamento ou cultura é frequentemente comparada com as civilizações tradicionais, mas esquece-se que este pensamento moderno, ou a cultura que o engendrou, não passa de um fluxo indefinível, que num certo sentido não pode ser definido positivamente por não possuir nenhum princípio que seja real e que remeta ao Imutável. O pensamento moderno não é de modo algum uma doutrina entre outras; ele é hoje o resultado de uma fase específica de sua expansão e se tornará aquilo que a ciência materialista e experimental e as máquinas fizerem dele; já não é o intelecto humano que decide o que é o homem, o que é a inteligência, o que é a verdade, mas as máquinas – ou a física, a química, a biologia. Nestas condições a mente humana depende cada vez mais do “clima” produzido por suas próprias criações: o homem já não sabe julgar como homem, em função, é preciso dizê-lo, de um absoluto que é a própria substância da inteligência; perdendo-se num relativismo que leva a lugar nenhum ele se deixa julgar, determinar e classificar pelas contingências da ciência e da tecnologia; incapaz de escapar ao tolo fatalismo que elas lhe impuseram e negando-se a admitir seu erro, a única saída que lhe resta é abdicar à sua dignidade e liberdade: existe aqui uma espécie de perversão do instinto de auto-preservação, uma necessidade de consolidar o erro para manter a consciência tranqüila. Agora é a ciência e as máquinas que criam o homem e, se podemos nos expressar assim, também “criam Deus”, pois o vácuo deixado pelo destronamento de Deus não pode ficar vazio, e a realidade de Deus e sua marca na natureza humana requerem uma divindade usurpadora, um falso absoluto que possa preencher o nada de uma inteligência que teve sua substância roubada. As especulações de Teilhard de Chardin fornecem um exemplo cabal de uma teologia que sucumbiu aos microscópios e telescópios, às máquinas e às suas conseqüências filosóficas e sociais, uma “queda” que seria impensável se houvesse o menor conhecimento direto das realidades imateriais. O lado “inumano” da doutrina em questão é muito significante. Fala-se muito hoje em “humanismo” ignorando-se o fato de que o homem,

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abandonando à matéria, às máquinas e ao conhecimento quantitativo suas próprias prerrogativas, cessa de ser realmente “humano”. O que é mais completamente humano é o que dá ao homem as melhores chances no além e, pelo mesmo motivo, o que mais profundamente corresponde à sua natureza.

Quando as pessoas falam em “civilização” elas geralmente atribuem um significado qualitativo ao termo, mas realmente a civilização só representa um valor se for supra-humana em sua origem e implicar para o homem “civilizado” um sentido do sagrado: somente um povo que tenha este sentimento e que governe sua vida a partir dele é de fato civilizado. À objeção de que esta reserva não considera todo o significado possível do termo e que é possível um mundo ”civilizado” ainda que sem religião, a resposta é que, neste caso, a “civilização” é vazia de valores, ou antes – uma vez que não existe escolha legítima entre o sagrado e as outras coisas – que ela é a mais mortal das aberrações. Um senso do sagrado é fundamental para qualquer civilização porque é fundamental para o homem; o sagrado – aquilo que é imutável, inviolável e infinitamente majestoso – está na própria essência de nosso espírito e da nossa existência. O mundo está doente porque os homens vivem apenas entre si; o erro do homem moderno é pretender reformar o mundo sem ter a vontade nem o poder de reformar o homem, e esta flagrante contradição, esta tentativa de fazer um mundo melhor a partir de uma humanidade decaída, só pode desembocar na abolição do que é humano, aí incluída a própria felicidade. Reformar o homem significa redirecioná-lo para o Céu, restabelecendo a ligação rompida, o que implica tirá-lo do reino das paixões, do culto da matéria, da quantidade e das opiniões, e reintegrando-o ao mundo do espírito e da serenidade – até mesmo, diga-se de passagem, no mundo de sua própria razão suficiente.

Nesta ordem de idéias, e porque existem supostos muçulmanos que não hesitam em descrever o Islam como “pré-civilização”, é preciso fazer uma distinção entre “queda”, “descendência”, “degeneração” e “desvio”. Toda a humanidade é “decaída” pela perda do Éden e também, mais especificamente, por estar envolvida na “idade do ferro”; algumas civilizações, como alguns estados do Leste

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à época da expansão do Ocidente, podem ser chamados de “decadentes”; não foi esta decadência, de qualquer modo, que os tornou abertos à colonização, mas ao contrário foi seu caráter normal, que excluía o “progresso tecnológico”; o Japão, que estava bastante decadente, não teve mais sucesso do que outros países em deter o primeiro assalto dos exércitos ocidentais (devemos acrescentar que hoje em dia a velha oposição entre Ocidente e Oriente não é mais válida no campo político ou é válida apenas entre nações; externamente existem apenas variações do mesmo espírito moderno que se opõem mutuamente); muitas tribos selvagens podem ser consideradas “degeneradas” dependendo do seu grau de barbarismo; quanto à civilização moderna, ela “desviou-se” e este desvio cada vez mais combinou-se com uma decadência real que é particularmente palpável na literatura e nas artes. Se o Islam é chamado de “pré-civilização” ele também pode ser chamado de “pós-civilização”.

Aqui surge uma questão, algo lateral em relação ao nosso tema, mas que merece atenção na medida em que, ao falarmos do Islam, falamos necessariamente de tradição e ao usarmos este termo é preciso explicar o que é tradição e o que não é. A questão é: qual é o significado prático da necessidade, tão valorizada hoje em dia, das religiões serem orientadas para os problemas sociais? Simplesmente que a religião deve ser orientada para as máquinas, ou, para colocarmos de modo mais direto, que a teologia se torne empregada da indústria. Não há dúvida que sempre existiram problemas sociais resultantes do abuso que surgem, de um lado, pela queda da humanidade e, de outro, pela existência de grandes coletividades formadas por agrupamentos desiguais; mas na Idade Média (um período considerado longe do ideal pelos homens daquele tempo) e mesmo depois, um artesão extraía uma grande parte de sua felicidade de seu trabalho, que ainda era humano, e do ambiente que ainda estava conforme com um gênio étnico e espiritual. Qualquer que tenha sido a situação naquele tempo, o trabalhador moderno existe e a verdade concerne a ele: antes de mais nada ele deve entender que não se trata de reconhecer, na qualidade acidental de “trabalhador”, um caráter pertencente a alguma categoria intrinsecamente humana, uma vez que os

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homens que são trabalhadores podem pertencer a quaisquer outras categorias naturais; em segundo lugar, ele deve entender que qualquer situação exterior é sempre relativa, e que o homem sempre permanece homem, e que a verdade e a vida espiritual podem adaptar-se graças à sua universalidade e seu caráter imperativo, a qualquer situação, de modo que a suposta “questão do trabalhador na indústria” é no fundo simplesmente o problema do homem colocado nestas circunstâncias particulares, ou seja, o problema do homem enquanto tal; finalmente, ele deve entender que a verdade não exige de nenhum homem que ele deva colocar-se sob a opressão, quando esta situação acontece, de forças que apenas servem às máquinas, assim como o homem não deve basear suas demandas na inveja, que em nenhum caso pode ser a medida das necessidades humanas. Deve-se acrescentar que, se todo homem obedecesse a profunda lei inscrita na condição humana, não existiriam mais problemas sociais, nem mesmo problemas humanos; deixando de lado a questão de como a humanidade poderia ser reformada – o que de fato é impossível – cada qual deve reformar a si mesmo e nunca acreditar que as realidades interiores não tem importância para o equilíbrio do mundo. É tão importante guardar-se de otimismo quimérico quanto do desespero; o primeiro é contrário à efêmera realidade do mundo em que vivemos e o segundo à eterna realidade que ainda trazemos em nós, e que é a única coisa que torna inteligível nossa condição humana e terrestre.

De acordo com um provérbio árabe que reflete a atitude do muçulmano diante da vida, a lentidão vem de Deus e a rapidez de Satã (Festina lente, diz o provérbio latino) , e isto leva à seguinte reflexão: como as máquinas devoram o tempo o homem moderno está sempre apressado e, como esta perpétua falta de tempo cria nele reflexos de pressa e superficialidade, ele confunde estes reflexos – com as correspondentes formas compensatórias de desequilíbrio – com marcas de superioridade e em seu coração desdenha o homem antigo com seus hábitos “idílicos”, em especial o velho muçulmano com seu traje longo e seu turbante, que demora tanto em apressar-se. Por não ter nenhuma experiência disto as pessoas não podem imaginar o que preenche o conteúdo qualitativo da “preguiça” tradicional

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nem o modo como “sonhava” o homem dos tempos antigos; ao contrário, as pessoas contentam-se com a caricatura, que é mais simples e melhor adaptada ao ilusório instinto de auto-preservação. Se o ponto de vista atual está tão largamente determinado pelas preocupações sociais com uma evidente base material, isto não se dá apenas devido às conseqüências sociais da mecanização e das condições humanas que ela engendra, mas também pela ausência de uma atmosfera contemplativa, que é essencial para o bem estar do homem, qualquer que seja seu “modo de viver”, para usar uma expressão que é tão bárbara quanto comum. Qualquer atitude contemplativa é hoje tachada de “escapismo” – em alemão Weltflucht – e isto inclui qualquer recusa em situar a verdade total e o significado da vida na agitação externa. Uma ligação hipocritamente utilitária com o mundo é dignificada como “responsabilidade” e as pessoas são levadas a ignorar o fato de que flanar – mesmo supondo tratar-se de um escape – é nem sempre uma atitude errada.

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Fizemos uma referência ao turbante quando falamos da lentidão dos ritmos tradicionais, e aqui devemos fazer uma pausa para reflexão. Antes, porém, convém salientar que esta vagareza não exclui a velocidade, quando esta acompanha as propriedades naturais das coisas ou quando resulta naturalmente das circunstâncias, mostrando estar de acordo com os correspondentes simbolismos e atitudes espirituais. Está na natureza do cavalo ser capaz de galopar e uma “fantasia” árabe é executada em alta velocidade; um golpe de espada deve ser rapidíssimo e também assim devem ser as decisões num momento de perigo. A ablução antes da prece deve ser feita rapidamente.

A associação de idéias entre o turbante e o Islam está longe de ser casual: “O turbante”, diz o Profeta, “é a fronteira entre a fé e a descrença”, e ele diz também: “Minha comunidade não cairá enquanto usar o turbante”. Os seguintes ahadith também se colocam neste mesmo contexto: “No Dia do Juízo o homem receberá a luz para

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cada volta do turbante (kawrah) ao redor de sua cabeça”; “Use o turbante e você ganhará em generosidade”. O que queremos salientar é que o turbante é visto como outorgando àquele que o usa uma espécie de gravidade, consagração e humildade majestática – no Islam tanto os anjos quanto os profetas são representados com turbantes, às vezes com cores diferentes conforme o simbolismo; o turbante coloca a pessoa à parte das criaturas caóticas e dissipadas – dallun, os desviados da Fatihah – fixando-o num eixo divino – es-sirat el-mustaqin, o “caminho reto” da mesma prece – e a orienta para a contemplação; o turbante é o contraponto a tudo o que é profano e vazio. Uma vez que é a cabeça, o cérebro, que é para nós o plano onde se dá nossa escolha entre o verdadeiro e o falso, o durável e o efêmero, o real e o ilusório, o responsável e o fútil, é a cabeça que deve levar a marca desta escolha; o símbolo material deve reforçar a consciência espiritual, e ademais, isto é verdadeiro para qualquer forma religiosa de cobertura da cabeça e mesmo para qualquer vestimenta litúrgica ou meramente tradicional. O turbante assim envolve o pensamento do homem, sempre pronto para a dissipação, o esquecimento e a infidelidade; ele lembra o sagrado aprisionamento da natureza passional sempre pronta a abandonar Deus – se quisermos um exemplo cristão, quando São Vicente de Paula desenhou o véu das Irmãs de Caridade ele quis dar a elas um aspecto reminiscente do isolamento monástico. É a função da Lei Corânica restabelecer o equilíbrio primordial que foi perdido; daí o hadith: “Vistam turbantes e tornem-se distintos dos povos (desequilibrados) que vieram antes de vocês”.

O repúdio ao turbante, assim como o repúdio ao romântico, ao pitoresco ou a tudo o que pertença ao folclore, é explicado pelo fato de que as palavras “românticas” são precisamente aquelas nas quais é mais provável encontrarmos Deus; quando as pessoas querem se afastar de Deus é lógico que comecem por criar uma atmosfera na qual as coisas espirituais fiquem deslocadas; para ser possível declarar com sucesso que Deus é irreal, é preciso construir ao redor do homem uma falsa realidade, uma realidade que é inevitavelmente inumana porque apenas aquilo que é inumano pode excluir Deus. O que está envolvido nisto é uma falsificação da imaginação e em

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