• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 3 O CINEMA-RAP DE ADIRLEY QUEIRÓS

3.3 Estratégias anticoloniais

3.3.2 O corpo da cidade

“A gente tem que achar esse corpo. Que corpo é esse, de periferia? É igual ao do centro? Seria incrível um corpo desconstruir isso: um corpo que falasse coisas incompreensíveis e loucas. No cinema, a fala não sendo compreensível, a forma daria uma experiência, o cara pensaria: ‘que filme é esse? Não sei, mas me impactou, pode ser um monte de coisa e com o tempo eu vou assimilando’. Não ser didático, afirmativo somente, é uma forma que pode construir um monte de coisas. Esse corpo periferia deveria falar menos e ter mais corpo, mais ação. A palavra é menos importante, porque a palavra é a gramática, e a gramática é opressora.” Adirley Queirós, Entrevista (2012).

Assim como a cidade no filme de AQ não é uma cidade cenográfica, mas, sim, as ruas, muros e postes da Ceilândia real, os corpos não são corpos de atores idealizados que pousam de outro lugar para filmar ali — são corpos que fazem parte da cidade, moldados pela vivência naquele ambiente, visível nos seu gestos, suas roupas, seu jeito de andar e falar. São também, devido à condição adversa da cidade, corpos amputados, corpos-prótese, corpos- máquina.

Se, como Pasolini defende, uma das potências do cinema é participar da realidade dos corpos (não ser apenas simbólico, como nas artes plásticas), isso é tanto mais forte quanto mais o cineasta conseguir se aproximar dos lugares e pessoas que vivem no corpo aqueles lugares. AQ coloca isso com clareza quando questiona o padrão televisivo e pergunta se é possível achar um corpo da periferia:

Eu queria que as pessoas vissem o meu filme e pensassem: “cara, a gente não tem que ter como referência só esse tipo de cinema.” O corpo do cinema não precisa ser só o corpo da Globo Filmes. Para mim, são esses corpos que a gente está vendo aqui. Então tem sim uma busca pela identidade, de tentar articular esse popular que você está falando aí (QUEIRÓS, 2013. p. 47).

Qual é a importância de se questionar o padrão televisivo? Há, aqui, uma questão de disputa na ecologia de imagens que envolve a forma-cinema que ainda a torna interessante como local de disputa do imaginário político. Existe uma assimetria territorial na produção e recepção de imagens: o brasileiro está acostumado a ver Nova York e Paris na tela de cinema, e a ver o Rio de Janeiro ou São Paulo na tela de tevê, mas muitas vezes não vê uma reprodução da própria cidade. Desse modo, os centros produtores de imagem se reafirmam e se propagam como centros do mundo e podem criar uma sensação de descentramento para os consumidores periféricos.

Poder ver a própria cidade na tela envolve um dispositivo de verificação de realidade que pode ser empoderador. Se Milton Santos diz que descolonizar é “olhar com os próprios olhos” (v.TENDLER, 2006), podemos relacionar esse olhar ao poder de verificação que é ver a própria cidade na tela de cinema, ver corpos familiares, parecidos com o seu, seu sotaque, seu jeito de corpo, suas roupas.

Filmar a cidade é filmar também os corpos que habitam aquela cidade e deixar os corpos falarem para além da gramática — importa menos o que o corpo diz do que o modo como ele aparece:

Para mim, o que dá força ao filme [A cidade é uma só] é o Dilmar, no sentido que a gente apostou nele como um personagem que se parecesse com um cara da Ceilândia. O laboratório para o Dilmar era assim: “Pensa num cara da Ceilândia, que a gente acha massa aí na rua e você tem que se

parecer com ele.” Pouco interessa a tua fala — o que interessa é o seu corpo. Se você fala rápido não interessa, se as pessoas não entendem não interessa — ainda que, claro que a gente queria que algumas frases fossem compreensíveis (QUEIRÓS, 2013, p. 33).

Como vimos com Pasolini e Guattari, a eficácia do não verbal pode ser mais efetiva do que a verbal porque se dirige diretamente ao corpo. Nesse momento de possível empobrecimento da linguagem verbal, dominada pela linguagem de infraestrutura empresarial, a linguagem física e a gestual ganham importância decisiva.

A estratégia de priorizar a criação de situações em vez de utilizar um roteiro bem definido colabora com essa outra estratégia de registrar os corpos próprios daquela cidade: em vez de tentar conformar o corpo a uma gramática e a instruções performativas preestabelecidas, a criação de situações permite que o corpo se vire ou improvise em determinado ambiente com seu próprio repertório e ritmo, deixando aparecer as várias relações que aquele corpo tem com o ambiente que lhe é estranho ou familiar — reações afetivas, automáticas, confortáveis, receosas, expansivas, contraídas, etc.

Esse tipo de registro se aproxima daquilo que as autoras Paola Berenstein e Fabiana Dultra chamam de corpografia urbana — o registro de experiências corporais da cidade que ficam inscritas no corpo de quem as experimenta (JACQUES, 2012, p. 300). A cidade sobrevive nos gestos e movimentos de um corpo - se o corpo percebe a cidade como um conjunto de condições interativas, a corpografia seria a expressão sintética dessa interação, que é uma relação coadaptativa entre corpo e ambiente.

Inscritas na corporalidade, as corpografias não precisam ser representadas para se tornarem visíveis. As autoras propõem essa abordagem como uma espécie de cartografia corporal que é em parte uma reação à espetacularização da experiência urbana cenográfica, baseada nas imagens veiculadas pelos centros produtores de imagem.

No caso de AQ, essa corpografia tem de passar pela máquina do cinema, que é feita por uma série de componentes como o roteiro, a equipe, a iluminação, o cenário, etc. Toda essa “gramatização” que pode acabar transformando o ator em mais uma peça do mise-en- scène:

A gente queria jogar essas coisas e também provocar no sentido de outro corpo. ‘Que corpo é esse de que a gente está falando?’. Estou falando de uma tese minha, que eu talvez ainda não tenha conseguido fazer, mas que é um pouco a minha expectativa de pensar o cinema: se o nosso corpo ainda está gramatizado nessa relação do cinemão, ele nunca vai ser um corpo nosso, e não vai conseguir ser o corpo que a gente está buscando. Porque o corpo do cinemão é muito maior do que a possibilidade do ator atuar. Tem a câmera posicionada, a luz que é colocada de uma certa maneira: não é só uma questão da atuação do ator, do que ele pode gestar. Ela transforma o ator em mais um elemento na mise-en-scène: tem a luz, tem o fotógrafo, tem o ator.

Ele é mais um elemento e, na minha leitura, ele nunca vai conseguir descolar dessa coisa se ele não buscar uma outra gramática. A gente não passa nem perto disso: a gente ainda faz cinemão, vamos dizer assim. E um cinemão tosco. A gente está usando o código de gravação do cinema plano, do plano aberto, onde a camera está olhando: a imparcialidade da câmera da ficção, saca? (QUEIRÓS, 2013. p. 61).

Ou seja, toda a aparelhagem da gramática do cinema deve ser levada em consideração para se conseguir provocar a situação propícia — como no caso exposto da situação de exaustão no trânsito que só foi possível pelo tamanho reduzido da equipe, que cabia em um só carro.

Nesse sentido, é interessante pensar como o baixo orçamento pode, às vezes, andar junto da inventividade, já que o cinema “câmera na mão”, menos aparelhado de recursos industriais, pode conseguir uma captação mais leve e improvisada, menos gramatizada. Não o digo para fetichizar o baixo orçamento, mas para perceber como a aprendizagem com baixo recurso envolve uma outra racionalidade, relacionada à flexibilidade tropical mencionada por Milton Santos.

Os filmes de AQ podem ser uma boa maneira de registrar alguns conceitos de Milton Santos porque, na sua própria maneira de serem pensados e produzidos, são um trabalho de contrarracionalidade e têm intimidade de corpo com as questões que o geógrafo colocou. Por exemplo, os atores nos filmes de AQ tem algo dos Homens Lentos, aqueles que vivem a temporalidade dos espaços opacos da cidade, em oposição àqueles que comungam com as imagens pré-fabricadas das zonas luminosas.

Apesar da lentidão literal imposta pelos deslocamentos desgastantes da cidade (e.g., o ônibus, a distância do hospital, a falta de recursos, etc), a lentidão dos Homens Lentos não implica raciocínio devagar ou pouca ação, pelo contrário — a lentidão não é um grau de aceleração, mas um outro tipo de movimento (JACQUES, 2012, p. 294). Mesmo amputados, os corpos são criativos, ágeis e de raciocínio rápido. Os agenciamentos adversos diminuem parcialmente sua potência de agir, mas a maneira que eles reinventam outros relacionamentos permite que se tornem potentes. No filme Branco Sai, Preto Fica (2014), AQ trabalha muito, através da ficção científica, essa ambivalência dos amputados que se tornam potentes, parecendo, às vezes, ciborgues da gambiarra, que hackeam as próprias extensões corporais.

Dois dos três protagonistas do filme têm algum impedimento físico: Marquim usa cadeira de rodas e Sartana tem uma prótese de perna. Ambos são vítimas da violência policial. A cidade sofre de uma restrição geral dos movimentos que, no corpo deles, fica mais evidente. Marquim deixa de fazer fisioterapia porque o deslocamento até o Plano Piloto é muito penoso: além de estar na cadeira de rodas, há uma amputação também em ter que pegar uma hora de metrô para chegar no centro da cidade, onde está o hospital. A mobilidade reduzida pelo

transporte pracário e a exclusão pela distância ficam mais evidentes nesses corpos. A cadeira de rodas é só mais um elemento do conjunto de relações debilitantes que vai da cidade até a pele.

Sartana se diz amputado da cidade: “a cidade toda era parte da minha vida, parece que cortou aquilo ali tudo de mim (...) não queria mais sair de casa.” A cidade é amputada não apenas pela mobilidade reduzida mas também pelo fechamento do principal ponto de encontro e expressão estética do grupo de amigos: o baile do Quarentão, onde se reuniam para mostrar e difundir novos passos de dança. A dança é um tema recorrente no filme Branco Sai Preto Fica. O baile persiste por todo o filme como um membro fantasma da memória coletiva — coça, incomoda, excita, mas não está mais lá. Ainda assim, Marquim dança com a cabeça e com as palavras, sentado na cadeira de rodas em casa, e Sartana dança em movimentos curtos em algum outro baile da cidade.

O filme trabalha com movimentos permitidos ou negados, desde o gesto e o passinho até o deslocamento metropolitano. Como dito no capítulo anterior, a partir de HO, o filme nos ajuda a pensar uma estética do Urbanismo menos a partir das formas e mais a partir dos movimentos e dos encontros permitidos pelos movimentos — o que já sugeria Milton Santos quando descreve a cidade rígida como um sistema de gestos sem surpresa.

O som é outra questão importante em seus filmes, e também pode ser algo muito corporal. A corporalidade do som presente na captação direta, que não registra apenas as gírias e os sotaques, mas também as motos que passam na rua, atrapalhando a inteligibilidade das palavras. Afinal, importam menos o sentido do que o jeito de falar e a presença naquele ambiente sonoro.

Como observa McKenzie Wark (2017) sobre um livro de Kodwo Eshun: “O campo de estudo aqui é não tanto a música em si quanto os ambientes que a música cria em conjunto com espaços, sistemas de som, e corpos (...) uma Kinoestética, um ramo da Psicogeografia”.

Se a psicogeografia é a ação do meio geográfico sobre a afetividade, como dizem os situacionistas, a kinoestética seria a ação afetiva deste meio ambiente sonoro, criado não somente pela música propriamente dita mas pelos vários sons da cidade. A corpografia se forma não apenas pela relação entre corpo e espaço, mas também em relação ao ambiente sonoro que deforma esse espaço e os ritmos do corpo. Eshun cunha o termo kinoestética para abordar a maneira que a música pode explorer outros tipos de movimentos a partir de outra compreensão de corpo e espaço, de uma forma que dialoga com a ficção científica, presente nos filmes de Adirley como Branco Sai, Preto Fica. O situacionista Asger John, aliás, já havia dito que a psicogeografia seria “a ficção científica do urbanismo” (JACQUES, 2003, p.80).

A ficção científica, como a música, é uma forma de desvio que permite reiventar a potência desses corpos: através do filme, corpos amputados pela marginalização podem hackear a relação corpo-máquina para construir naves e bombas de som. A distopia e a viagem no tempo podem ser maneiras de registrar as diferentes temporalidades da cidade e apresentar uma visão crítica da modernidade oferecida ou imposta pela cidade atual.

Documentos relacionados