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CAPÍTULO 3 O CINEMA-RAP DE ADIRLEY QUEIRÓS

3.1.2 A semiótica mista do cinema

“É muito difícil combater a sedução da imagem com o verbo, a filosofia e a arte, que exigem tempo e atenção.” Ana Clara Torres Ribeiro, Homens Lentos, Opacidades e Rugosidades.

A construção teórica de Pasolini, que procura resistir à padronização da cultura nacional, pode ajudar a entender de que modo os filmes de Adirley são anticoloniais. A

potência própria do cinema que Pasolini procurava nos permite pensar não apenas no cinema, mas também na força da comunicação gestual, na força da presença de corpos e objetos e até da própria cidade de Ceilândia.

Para Pasolini, o cinema não é simbólico (como a literatura ou a pintura) — ele é, de fato, uma reprodução da realidade. Como comenta McKenzie Wark (2015) sobre o cineasta: “[para Pasolini,] como para Walter Benjamin, o cinema é uma reprodução mecânica da realidade, mas não é mimético. Ele não parece com a realidade; ele é parte da realidade.”10

Os elementos do sistema cinematográfico não são nada mais nem nada menos do que as próprias coisas em sua materialidade e realidade. Para ele, o discurso não-verbal é “dotado de uma força de persuasão que nenhuma expressão verbal possui. Podemos esquecer o que nos foi ensinado por meio das palavras, mas não podemos jamais esquecer o que nos foi ensinado por meio das coisas” (LAZZARATO, 2014, p. 112). Como sugere Guattari (apud LAZZARATO, 2014, p. 113), se a linguagem das coisas não chega a estabelecer significações invariáveis e estáveis, ela pode produzir os modelos de comportamento que, por sua vez, possuem a força dos exemplos e a evidência da presença física.

Lazzarato acredita que a elaboração teórica de Pasolini corrobora a concepção do que Guattari chama de “semióticas a-significantes”, que, além de servirem para pensar o funcionamento do cinema, seriam a chave para entender a servidão maquínica que está na base do capitalismo — e que faz parte do que Pasolini chamava de mutação antropológica, isto é, a mudança existencial que observava em seus conterrâneos.

Para entender essa mutação (e as sobrevivências que escapam dela), seria preciso ir além da linguagem e da ideia de representação. Para Pasolini, a língua não é um sistema privilegiado, à parte, é apenas um dos vários sistemas de signos possíveis. Até a cidade participa da semiótica a-significante:

A presença física dos subúrbios de Roma ou a cidade de Bolonha, com sua arquitetura, ‘falam’, funcionam como vetores de subjetivação. As coisas são fontes discursivas, mudas, materiais, objetuais, inertes, puramente presentes, que agem como vetores de enunciação (LAZZARATO, 2014, p. 112).

O a-significante diz respeito aos encadeamentos, ritmos, gestos — elementos que, por não serem discursivos, não agem sobre a consciência, mas sim diretamente sobre “a variação contínua e a força de existir e a potência de agir” (LAZZARATO, 2014, p. 99). A esse respeito, segundo Guattari (apud LAZZARATO, 2014, p. 110):

crianças e adolescentes não apreendem o seu devir, pelo menos preponderantemente, por meio do discurso significante. Eles recorrem

10 No original: “like in Walter Benjamin, cinema is a mechanical reproduction of reality, but is not mimetic.

ao que eu chamo de formas de discursividade a-significante: música, indumentária, o corpo, o comportamento, signos de reconhecimento — assim como todo tipo de sistemas maquínicos.

Lazzarato acredita que a crítica cultural, de maneira geral, ainda é muito logocêntrica e, por isso, é importante chamar atenção para as semióticas a-significantes. Daí a importância do cinema, que funcionaria por uma semiótica mista — isto é, que trabalha não só com semióticas significantes mas também com semióticas simbólicas e a-significantes (a ação, o comportamento, a presença física).

Vamos ver que, no caso de AQ, essa força dos exemplos das ações e a evidência da presença das coisas se tornam tanto mais fortes porque se tratam de filmes que têm sempre algo de documental. Isto é, filmes que trabalham com locações reais da cidade, em vez de cenografia de estúdio, por exemplo. Filmes que mostram uma cidade que existe e os corpos que existem nela. Talvez o dito de Pasolini sirva para AQ: “a cultura de uma nação como a Itália é expressa, sobretudo, através da linguagem do comportamento ou da linguagem física” (PASOLINI 1976 apud LAZZARATO, 2014, p. 114).

Esse recurso à linguagem física é uma das estratégias de AQ que identifico como anticolonial. Como Pasolini, Adirley reconhece essa importância da linguagem física ou comportamental quando diz que os seus filmes procuram trabalhar com o corpo da periferia: “Esse corpo deveria falar menos e ter mais corpo, mais ação. A palavra é menos importante, porque a palavra é a gramática, e a gramática é opressora” (QUEIRÓS, 2015). Ou seja, o ator não é um corpo estrangeiro, é um corpo da cidade, que se expressa mais pela ação do que pela palavra.

Por se dirigir ao corpo, a servidão maquínica não opera através de repressão verbal ou da ideologia. Ela trabalha, por dentro, no nível pré-pessoal (pré-cognitivo e pré-verbal), e, por fora, no nível suprapessoal. Por isso Lazzarato não gosta da ideia de “ideologia”, como usada, por exemplo, por Spivak e Eagleton, pois a ação a-significante não envolve consciência reflexiva nem representação. Ela age nas profundezas da subjetividade, oferecendo identidades e modelos comportamentais. Trata-se de uma comunicação mimética que ocorre através de contágio, e não através da cognição (neste ponto, Lazzarato ecoa Tarde, um autor com quem ele dialoga).

Para Lazzarato, a imagem age de forma pragmática sobre o real e sobre a subjetividade. Essa função não-representativa da imagem opera o que ele chama de Cartografia Icônica: uma ação em determinado território, como a que o cinema faz, que, além de registrar o que existe, pode também multiplicar as possibilidades de ação, modificando as relações existentes.

Esse vocabulário da arte tópica das cartografias é inspirado pelo paradigma estético de Guattari e converge com o trabalho já citado de Rolnik, com quem Guattari trabalhou na década de 1980. Assim como Rolnik fala em exercitar uma micropolítica ativa do saber-do- corpo para driblar o Inconsciente Colonial, o paradigma estético propõe que não há como pensar um novo modo de organização política sem atentar para a produção de subjetividade. Nesse sentido, a criação de algo novo viria não só a partir do conhecimento e da informação, mas de uma mutação existencial que toca no foco não discursivo da subjetividade, acessado pela semiótica mista do cinema. O cinema seria um campo de batalha ético-política que até aqui foi largamente dominado pela indústria cultural norte-americana.

Nessa adoção da linguagem cinematográfica existe o risco, que Pasolini reconhece, de estar apenas seguindo a linguagem da máquina, cumprindo uma tendência desumanista de cair no pragmatismo audiovisual, porque o cinema parece ser a linguagem desse pragmatismo. Mas é por isso mesmo, por agir por dentro, que o cinema pode ser também uma salvação. Em Pasolini, a tendência não humanista pode ser não apenas uma linguagem da máquina, mas também uma potência animista, e até religiosa.

Cabe observar, en passant, que HO foi de certa forma mais radical que Pasolini na sua abordagem do cinema, já que procurou outras possibilidades de uso da tecnologia nas experiências que ele chamou de “quase-cinemas”. Nessas obras, Oiticica desviou o dispositivo da linguagem-cinema com a sua arte ambiental, em um caminho hoje explorado pela videoinstalação. HO criticou a estagnação da linguagem-cinema tradicional por acreditar que as novidades comportamentais e cognitivas dos anos 1950 e 1960, como o rock e a televisão, poderiam incentivar outra relação com a imagem e outra experiência cinética (MENOTTI, 2012, p. 75).

É importante notar esse caminho possível de exploração da semiótica mista no qual Oiticica foi pioneiro. Mas as ideias de Pasolini parecem mais úteis para o cinema de AQ, já que o diretor ceilandense, como o italiano, trabalha ainda dentro da linguagem-cinema. Vamos ver como Adirley, sem sair dessa linguagem, consegue, ainda assim, ser experimental, refletindo não apenas a cena cultural local como também o potencial-experimental não- culturalista que HO defendia como uma possibilidade brasileira.

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