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2 O DISCURSO SOBRE AS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA EM DOCUMENTOS

3.1 O CORPO DEFICIENTE INSCRITO NO DISCURSO PEDAGÓGICO

A escola é a sede do Discurso Pedagógico, e o fato de esta ser considerada como instituição faz do discurso pedagógico um dizer institucionalizado, autoritário, legitimando a

instituição em que se origina. Assim a escola se institui por regulamentos, como modelos, que atua pelo prestígio de legitimidade e pelo seu discurso.

Nessa caracterização do discurso pedagógico, temos o sistema de ensino que atribui a posse do saber legítimo ao professor, autorizando-o. Estas representações mantêm o professor como autoridade de conhecimento e a imagem do aluno como tutelado, como se refere Orlandi (2011, p. 31). A posição aluno-tutelado, nesta mediação, é de um sujeito que atribui a imagem de si mesmo, do seu interlocutor e do objeto de conhecimento dominadas pela imagem que ele deve fazer do lugar do professor.

Ao tratarmos da instituição escolar, podemos afirmar que ela se apresenta como lugar de significação em que o funcionamento dos sentidos já está posto, determinado. A escola é o lugar social do discurso pedagógico: um dizer que dá garantias à instituição em que se origina e para qual está legitimamente vinculado. É lugar onde se estabilizam sentidos, que cristalizam a história, “a Escola, em sua forma social, entra no sentido de reforçar e estruturar relações entre sujeitos no espaço.” (ORLANDI, 2013, p. 285). Trazendo a questão da inclusão escolar percebemos que os sentidos que ali circulam sobre a deficiência se constituíram através de funcionamentos histórico-ideológicos marcados pelo preconceito, rejeição e abandono, e que, ao produzirem efeitos, dizem do acesso, da relação de pertencimento, dos modos como a inclusão/exclusão social se materializa, nos diferentes discursos.

Estamos tratando sobre um corpo deficiente que se insere com sua materialidade no espaço escolar, o qual produz marcas significando-o e significando-se. Um corpo discursivo que não é indiferente às condições de produção desses sentidos, de forma que estas condições vão textualizando este corpo. Trata-se de um corpo interpelado, simbólico, produzido em um processo de significação, o que resulta em uma forma-sujeito histórica com seu corpo. Nas palavras de Althusser (1978, p. 67), todo indivíduo humano só pode ser agente de uma prática se se revestir da forma-sujeito, sendo esta determinada pelas posições ideológicas que estão em jogo no processo sócio-histórico em que estão inseridas e, segundo Pêcheux (2014, p. 146), se dão através de diversas formas, impostas pelas “relações sociais jurídico-ideológicas.”

Percebe-se nesta relação que a nomeação corpo deficiente se investe de sentidos, há uma significação própria e por vezes, silenciada. Nas palavras de Orlandi (2012, p. 86), “um sujeito em silêncio se apresenta com um corpo que significa seu silêncio e se significa nesse silêncio”. Trata-se de um corpo deficiente e silenciado, intrinsecamente relacionado ao corpo social, ou seja, aqueles corpos que representam os atributos socialmente aceitos pelos aparelhos ideológicos.

Fazendo um percurso pelo processo de integração/inclusão na escola pública regular, percebemos que a escola, ao difundir o discurso que precisava elevar o nível intelectual das massas, contribui também para desqualificar os seus diversos tipos de saberes, que vão além daqueles preconizados pelos modelos científicos. Desse modo, podemos inferir que a exclusão provocada na instituição escolar passa a ser produzida através da hierarquização de saberes, que se presentifica nas relações de força, através de mecanismos de controle. Com isto, se utiliza de modelos de comparação de rendimentos, exige determinadas formas de produção intelectual, padrões de comportamentos e produtividade, contribuindo para a construção da identidade do “anormal”, “desviante e, consequentemente, excluído do sistema educacional.

A partir das normatizações legais, destacamos a década de 60, através da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB, Nº 4024/61, na qual percebe-se que o poder público, mesmo que reconhecendo a possibilidade de integração dos alunos com deficiência na sociedade, se eximiu das obrigações com a educação, na medida em que não faz referências à obrigatoriedade ou acesso à educação pública. Na década de 70, com a publicação da LDB Nº 5692/71, novamente o poder público não manifesta suas intenções ou obrigações com relação à inclusão escolar.

É preciso ressaltar que, nesta década, o movimento a favor da igualdade de direitos humanos e a busca pela democratização da sociedade fez com que surgissem questionamentos acerca da Educação Especial, destinada a um lugar único, de cunho assistencialista e protencionista, trazendo a questão da existência de um sistema de educação paralelo, ou de um sistema de ensino à parte do sistema regular de ensino. Neste espaço, o processo de integração, cujo objetivo era incorporar física e socialmente essas pessoas, vai ganhando espaço em decorrência desses questionamentos. As pessoas que até então viviam segregados passam a ter direito de participação e integração social, assim também de usufruírem dos bens socialmente produzidos. Entretanto, percebe-se com clareza que, nesse processo, a pessoa com deficiência ainda era vista como alguém fora do contexto social, pois, embora garantido o acesso e permanência desses alunos no ensino regular, não lhes era assegurado o direito de apropriação dos conhecimentos historicamente produzidos.

Mais tarde, com a publicação da LDB Nº 9394/96, elabora-se o Artigo Nº58, um artigo específico para tratar sobre a educação especial com a seguinte redação: “entende-se

por educação especial, para os efeitos desta Lei, a modalidade de educação escolar, oferecida preferencialmente na rede regular de ensino, para educandos portadores de necessidades especiais”.

Destacam-se neste período, ações de intervenção do Estado: leis, decretos, resoluções e políticas públicas sinalizando investimento de recursos públicos, na intenção de organizar o sistema de ensino para que este possa vir a atender de fato e de direito, às diferentes necessidades dos sujeitos. Verifica-se a presença da nomeação inclusão, que passa a circular em ambientes científicos, em bibliografias sobre estudos e pesquisas sobre o tema. Importa destacar que estas ações também estão vinculadas aos compromissos firmados mundialmente, a partir das Conferências e Movimentos Internacionais realizados neste período, o que conduz à formação de uma nova configuração social, um processo de mudança que traz consigo uma forma de dar visibilidade ao que estava invisível. Presenciam-se, com isto, ações de políticas públicas destinadas ao processo de inclusão de deficientes em escolas regulares, entre elas a divulgação na mídia e no meio acadêmico, capazes de produzir outros significados/sentidos que, até então, permaneceram por décadas silenciados, sem “significar”, sem “fazer sentido”.

O surgimento da proposta inclusiva tem o objetivo de promover uma escola que ofereça qualidade de ensino, independente de suas diferenças sociais ou dificuldades individuais. Ao reconhecer a impossibilidade da escola tradicional em respeitar as mínimas diferenças, apresentando-se como sistema educacional excludente, tal proposta requer modificações e reflexões profundas, principalmente na práxis pedagógica. Como resposta à diversidade dos alunos, a educação inclusiva tornou-se uma política aceita mundialmente, e desde então, esta proposta evoluiu como um movimento de desafio às políticas e práticas segregacionistas de educação.

A educação inclusiva tem sido discutida em termos de justiça social, pedagogia, reforma escolar e melhorias nos programas. No que tange à justiça social, ela se relaciona aos valores de igualdade e aceitação. As práticas pedagógicas em uma escola inclusiva precisam refletir uma abordagem mais diversificada, flexível e colaborativa do que em uma escola tradicional. A inclusão pressupõe que a escola se ajuste a todas as crianças que desejam matricular-se em sua localidade, em vez de esperar que uma determinada criança com necessidades especiais se ajuste à escola (integração). (PACHECO, 2007, p. 15).

A partir do exposto, percebemos que a trajetória da inclusão das pessoas com deficiência no ensino público se deu pelo âmbito jurídico, ao normatizar o acesso ao ensino público de forma lenta e gradual, possibilitando o surgimento de novos paradigmas. Desta forma, as escolas públicas iniciam o processo de reconhecimento dos alunos com deficiência, estabelecendo um modelo pedagógico conhecido como Modelo de Integração. Segundo Sassaki (1997, p. 32), no modelo integracionista “a sociedade em geral ficava de braços

cruzados e aceitava receber os portadores de deficiência desde que eles fossem capazes de moldar-se aos tipos de serviços que ela lhes oferecia; isso acontecia inclusive na escola.”

Assim, a escola inicialmente, se articula de forma a definir como regra os que dela poderiam se beneficiar, ou seja, impondo sentidos e definindo em seu discurso que apenas alunos com deficiência que apresentassem condições para atingir a alfabetização plena, poderiam frequentar a escola pública. No contexto da integração, a educação deveria acontecer na medida em que o aluno com deficiência se adaptasse aos recursos disponíveis na escola regular.

A partir da década de 80, um novo paradigma educacional vai se constituindo, tendo em vista o reconhecimento universal da diversidade de pessoas existentes em nossa sociedade, em especial o reconhecimento das pessoas com deficiência. Sobre estes aspectos aponta Orlandi (2011, p. 34): “Há, em relação à escola, uma seleção que decide, de antemão, quem faz parte dela e quem não faz, quem está em condições de se apropriar desse discurso e quem não está.”

Isto nos faz refletir sobre como o movimento de inclusão escolar veio sendo construído, através dos processos de significação/interpretação das formulações apresentadas nos documentos legais. Trazendo considerações da Análise de Discurso, temos o efeito ideológico de evidência posto em funcionamento nesses documentos, que sustenta os mecanismos de naturalização de determinados sentidos e o apagamento de outros. Isso é possível porque a ideologia faz parecer natural que sentidos permitidos pelas instituições dominantes sejam repetidos e aceitos como legítimos, de modo a tornarem-se um indício de verdade não passível de contestação.

A escola atua através da convenção daquilo que, dentro de um grupo, se considera como válido, onde qualquer conduta discordante ganha reprovação, um espaço que se pretende homogêneo e que se supõe estabilizado. Atua através de regulamentos, de deveres que presidem o discurso pedagógico e este veicula como ordem legítima. Portanto, é fundamental analisar a relação sujeito/corpo deficiente/escola, considerando processos de significação, onde trabalha a historicidade, memória e ideologia, para pensarmos o espaço social escolar a partir das práticas que nele se deslocam: corpos deficientes são significados pela segregação? Corpos considerados fora do lugar? Corpos marcados pela superação?

No espaço escolar se articulam o simbólico e o político, como modo de individuação do sujeito com deficiência, em especial quando a deficiência marca os corpos, deixando visivelmente aparente estas marcas em seu processo de identificação com sentidos polarizados: capazes/incapazes, os que pertencem/os que não pertencem, os que aprendem/os

que não aprendem, os considerados dentro/fora do processo de aprender. Sentidos já determinados no imaginário social, marcados e significados pelas práticas de segregação ao longo da história, que dizem dos corpos deficientes como incapazes, improdutivos, ilegitimados.

Contudo, na perspectiva discursiva, nem os sujeitos, nem os corpos são evidentes ou transparentes. São dotados de opacidade, onde trabalham os efeitos de sentidos, construídos no confronto entre o simbólico e o político, são atravessados de discursividade. “E como toda forma de significar, é acontecimento na linguagem e no sujeito, este, visto na história e na sociedade.” (ORLANDI, 2012, p. 91), podemos considerar a possibilidade de outros sentidos deslocarem-se em relação ao imaginário social existente, sentidos que rompem com formações discursivas dominantes. Sentidos que irão compor diferentes modos de significação, trazendo formas singulares de produzir sentido e de significar. Trazemos como exemplos sujeitos que se destacam na contemporaneidade, em termos de relativa superação da deficiência e da possibilidade de empoderar-se por meio das suas práticas de resistências, envolvendo a luta pelos seus direitos.

Assim, inicialmente se constituiu o movimento de inclusão das pessoas com deficiência na educação pública, um movimento de transformação/significação, tanto para os que já pertenciam ao lugar social, como para os que estavam buscando o desafio de pertencer. Nas palavras de Orlandi (2015, p. 197), “Nas formas atuais de assujeitamento do capitalismo, há um resto, nas relações dissimétricas, que pode produzir a resistência, não de sujeitos pensados como heróis, mas na divergência desarrazoada de sujeitos que teimam em (r)existir.” Considera-se, portanto, que outros modos de produção de sentidos sobre a inclusão irão compor outras posições, outros lugares na formação social.