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2. O CAMPO FENOMENAL NOS LIMITES DA PATOLOGIA Até o momento pudemos assistir as dificuldades enfrentadas

2.6 O corpo próprio enquanto campo de coexistência

Como vimos na descrição do corpo próprio, o sujeito perceptivo consiste no próprio movimento temporal em que a perspectiva atual

44 Na visão de Ferraz (2012, p.283), ocorre uma mudança de ênfase na passagem da Structure du comportement à Phénoménologie de la perception. Em sua primeira obra a consciência perceptiva assumia o papel de “meio universal”, mas em distinção com filosofia transcendental tradicional, essa consciência é uma consciência encarnada, ou seja, que existe por meio de um corpo. Já na sua segunda obra, “[...] Merleau-Ponty desenvolve longamente o tema da encarnação da consciência, o que o leva a privilegiar o corpo próprio como agente transcendental”. O corpo próprio, com suas capacidades perceptivo-motoras, também delimita um campo de experiências significativas, ao mesmo tempo em que se encontra inserido nesse campo (em contato direto com os arranjos materiais pelos quais a própria natureza se manifesta).

coexiste com outras perspectivas inatuais que, como tais, são generalidades. Mas em que sentido se dá a percepção de um outro? Qual o sentido da coexistência? Se o sujeito é o próprio entrelaçamento do tempo, se o corpo próprio remonta os horizontes pré-objetivos e, portanto, anônimos, a percepção do outro deverá se estabelecer segundo esse anonimato que é propriamente um mundo compartilhado – relação de mútua fundação entre a atualidade e os horizontes indeterminados.

Para mostrar isso, Merleau-Ponty (PhP, p.221), analisa o caso da jovem afônica tratada por Binswanger. Mediante a proibição de sua mãe de rever o rapaz a quem ama, tal moça perde o sono, o apetite e finalmente o uso da fala. Com efeito, essa afonia se manifesta pela primeira vez ainda em sua infância quando ela presenciou um tremor de terra, perdendo a voz após uma experiência de pavor intenso. O que significa a perda da voz? Ora, segundo Merleau-Ponty se partíssemos de uma interpretação exclusivamente freudiana tratar-se-ia de algo relativo a fase oral do desenvolvimento sexual. Contudo, para filósofo “[...] o que se ‘fixou’ na boca não é apenas a existência sexual; são, mais geralmente, as relações com o outro, das quais a fala é o veículo” (PhP, p.222). Se um afeto acaba por se exprimir pela afonia é porque, antes de mais nada, falar é, “[...] dentre todas as funções do corpo, a mais estreitamente ligada à existência em comum ou, como diremos, à coexistência. A afonia simboliza então uma recusa da coexistência, assim como, em outras pessoas, a crise nervosa é o meio de fugir da situação” (PhP, p.222). Há um rompimento com as relações no meio familiar e, de forma mais abrangente, ela tende a romper com a vida, logo, se “[...] não pode mais deglutir os alimentos, é porque a deglutição simboliza o movimento da existência que se deixa penetrar pelos acontecimentos e os assimila”. De onde se segue o sintoma como sentido metafórico de que a jovem não pode “engolir" a proibição feita pela mãe. Ademais, ainda na infância, a angústia se expressava na afonia, pois o risco iminente de morte interrompia violentamente a coexistência e ela se via abandona à própria sorte. Esse sintoma se repete em face da proibição materna, pois esta remonta a mesma situação em sentido figurado e, mais do que isso, “[...] ao fechar o futuro à paciente, ela a reconduz aos seus comportamentos favoritos” (PhP, p.222). Isso é relevante, pois mostra como o tempo é sempre referência ao outro. A afonia manifestada na jovem também revela como o passado pode se repetir num presente totalmente desvinculado àquela materialidade passada. Ou seja, a afonia se repete como expressão da angústia da perda da coexistência em situações do ponto de vista material totalmente diverso, mas não do ponto de vista temporal. Não é o mesmo passado, àquele do tremor de terra, mas uma mesma estrutura de coexistir com o

outro, ou mais precisamente, com sua perda iminente. Portanto, na significação do sintoma descobrimos mais geralmente uma relação ao passado e ao futuro, ao eu e ao outro, isto é, uma relação das dimensões fundamentais da existência. Nesse caso o corpo não é um objeto ao qual é dado uma significação de um lugar exterior a ele próprio – ou seja, metafisicamente. Se o corpo exprime modalidades de existência tal como as do sintoma é porque “[...] o signo não indica apenas sua significação ele é habitado por ela; de certa maneira, ele é aquilo que significa, assim como um retrato é a quase presença de Pedro ausente (PhP, p.222-3). Deste modo, “a doente não imita com seu corpo um drama que se passaria ‘em sua consciência’” (PhP, p.223). Ora, “se o corpo pode simbolizar a existência, é porque a realiza e porque é sua atualidade” (PhP, p.227). Ou seja, na medida em que a garota perde a voz, ela não traduz simplesmente no exterior um estado interior, tampouco a afonia consiste em um silencio de caso pensado e desejado, afinal, “estar afônico não é calar-se: só nos calamos quando podemos falar” (PhP, p.223). Torna-se afônica é perder no campo de coexistência o interlocutor de forma que ele não existe mais como aquele desejado ou recusado e, por conseguinte, todo o campo de possibilidades se desmorona. Neste sentido, lembramos que,

O mundo fenomenológico é não o ser puro, mas o sentido que transparece na intersecção de minhas experiências, e na intersecção de minhas experiências com aquelas do outro, pela engrenagem de umas nas outras; ele é portanto inseparável da subjetividade e da intersubjetividade que formam sua unidade pela retomada de minhas experiências passadas em minhas experiências presentes, da experiência do outro na minha (PhP, p.18).

A descrição dessas intersecções corresponde à experiência do corpo próprio e que, dessa maneira, sempre é intercorporeidade. Assim, a intersubjetividade é vivida de maneira anônima, nessa intersecção dos perfis temporais num mesmo mundo. Noutros termos, no momento em que eu e o outro nos encontramos em um mesmo mundo, tal encontro presente se realiza por meio de certa generalidade que são o passado e futuro. Na afonia, o movimento para o futuro, para o presente vivo ou para o passado, o poder de aprender, de amadurecer, de entrar em comunicação com outros fica interditado em um sintoma corporal, “[...] a existência amarrou-se, o corpo tornou-se ‘o esconderijo da vida’” (PhP, p.227), de maneira que ocorrem apenas "agoras" sempre semelhantes. A

afonia, assim como a histeria, não corresponde a um ato voluntário, uma escolha, um saber expresso, não há como separar aquilo que o sujeito “verdadeiramente” sente e pensa daquilo que ele exprime no exterior45.

Na verdade, a vontade pressupõe justamente o campo de coexistência no qual posso escolher dentre os possíveis. “Sono, despertar, doença e saúde não são modalidades da consciência ou da vontade, eles supõem um ‘passo existencial’. A afonia não representa apenas uma recusa de falar, a anorexia uma recusa de viver, elas são essa recusa do outro ou essa recusa do futuro” (PhP, p.227), recusa essa generalizada e tornada situação de fato. Logo, enquanto uma forma de recalque,

[...] a moça não deixa de falar, ela ‘perde’ a voz, como se perde uma recordação. Também é verdade que, como o mostra a psicanálise, a recordação perdida não é perdida por acaso, ela só o é enquanto pertence a uma certa região de minha vida que eu recuso, enquanto ela tem uma certa significação e, como todas as significações, esta só existe para alguém. Portanto, o esquecimento é um ato; eu conservo à distância essa recordação, assim desvio o olhar de uma pessoa que não quero ver.[...] Assim, na histeria e no recalque podemos ignorar algo ao mesmo tempo em que o sabemos, porque nossas recordações e nosso corpo, em lugar de se

45 “Com certeza, poder-se-á falar aqui de hipocrisia ou de má-fé. Mas será preciso distinguir então entre uma hipocrisia psicológica e uma hipocrisia metafísica. A primeira engana os outros homens escondendo-lhes pensamentos expressamente conhecidos pelo sujeito. Trata-se de um acidente facilmente evitável. A segunda engana-se a si mesma por meio da generalidade, e chega assim a um estado ou a uma situação que não é uma fatalidade, mas que não é posta e desejada; ela se encontra até mesmo no homem ‘sincero’ ou ‘autêntico’ a cada vez que ele pretende ser sem reservas o que quer que seja” (PhP, p.225). Em contraposição a suposta hipocrisia psicológica devemos ainda notar que, segundo Merleau-Ponty, “[...] o medicamento psicológico não age sobre o doente fazendo-o conhecer a origem de sua doença: por vezes, um contato de mão põe fim às contraturas e restitui a fala ao doente, e a mesma manobra, tornada rito, será depois suficiente para dominar novos acessos. Em todo caso, a tomada de consciência, nos tratamentos psíquicos, permaneceria puramente cognitiva, o doente não assumiria o sentido de seus distúrbios que acabam de revelar-lhe sem a relação pessoal que travou com o médico, sem a confiança e a amizade que ele lhe traz e a mudança de existência que resulta dessa amizade. O sintoma, como a cura, não se elabora no plano da consciência objetiva ou tética, mas abaixo” (PhP, p.225-6), na coexistência.

apresentarem a nós em atos de consciência singulares e determinados, dissimulam-se na generalidade. Através dela, nós as ‘temos’ ainda, mas apenas o suficiente para mantê-las longe de nós. Essa adesão ou essa recusa situam o sujeito em uma situação definida, e delimitam para ele o campo mental imediatamente disponível, assim como a aquisição ou a perda de um órgão sensorial dá ou subtrai um objeto do campo físico às suas capturas diretas (PhP, p.223-4).

O membro fantasma e anosognose também comportavam uma recusa à coexistência tanto com os objetos quanto com os outros, já que isso lhes traria angústia, mas terminava por ser igualmente uma recusa de novo uso dos membros ou de um uso possível respectivamente. O sintoma enquanto recusa da coexistência se dissimula na generalidade, a mesma generalidade na qual a coexistência é possível. Portanto, Merleau-Ponty constata que o corpo é tanto aquilo pelo qual posso fechar-me ao mundo quanto aquilo que me abre ao mundo e nele me põe em situação. Assim, O movimento da existência em direção ao outro, em direção ao futuro, em direção ao mundo pode recomeçar, assim como um rio degela. O doente recuperará sua voz, não por um esforço intelectual ou por um decreto abstrato da vontade, mas por uma conversão na qual todo o seu corpo se concentra, por um verdadeiro gesto, assim como podemos procurar e encontrar um nome esquecido não ‘em nosso espírito’, mas ‘em nossa cabeça’ ou ‘em nossos lábios’. A recordação ou a voz são reencontradas quando o corpo se abre novamente ao outro ou ao passado, quando se deixa atravessar pela coexistência e quando novamente (no sentido ativo) significa para além de si mesmo (PhP, p.228).

Aliás, o que faz com que um outro seja num campo fenomenal é justamente que ele seja ligado a mim e eu a ele num mundo compartilhado por horizontes temporais. Ou seja, na medida em que eu e o outro nos encontramos em um mesmo mundo, tal encontro presente se realiza por meio de certa generalidade que são o passado e futuro. O corpo próprio é intercorporeidade, ou então, subjetividade intersubjetiva.

Um bebê de quinze meses abre a boca se por brincadeira ponho um de seus dedos entre meus dentes e faço menção de mordê-lo. E todavia ele quase não olhou seu rosto em um espelho, seus dentes não se parecem com os meus. Isso ocorre porque sua própria boca e seus dentes, tais como ele os sente do interior, são para ele imediatamente aparelhos para morder, e porque minha mandíbula, tal como ele a vê do exterior, é para ele imediatamente capaz das mesmas intenções. A ‘mordida’ tem para ele imediata mente uma significação intersubjetiva. Ele percebe suas intenções em seu corpo, com o seu corpo percebe o meu, e através disso percebe em seu corpo as minhas intenções (PhP, p.471-2).

Vemos aqui dois corpos se relacionando pela estrutura temporal exprimida nos gestos e intenções, isto é, a experiência compartilhada do corpo como “potência anônima de morder algo”. Dito isto, nos perguntamos: de que modo a leitura correta da patologia depende do reconhecimento da relação intersubjetiva? Como, ao habitar um mesmo mundo, podemos falar em normalidade e anormalidade? O que define a fronteira entre o normal e o patológico?