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2. O CAMPO FENOMENAL NOS LIMITES DA PATOLOGIA Até o momento pudemos assistir as dificuldades enfrentadas

2.7 A patologia na intersubjetividade

Podemos introduzir esse problema com a seguinte questão que Merleau-Ponty (Pens, p.194), se coloca diante de seus estudos acerca da antropologia e sociologia: “Como compreender o outro sem sacrificá-lo à nossa lógica e sem sacrificá-la a ele”? De saída, devemos também nos perguntar: “[...] o fato de preservar em sua peculiaridade a experiência para a qual me volto, não a transforma em algo insignificante para mim, já que corro o risco de privá-la daquilo que a torna comum à minha experiência” (BONOMI, 2009, p.80)? Em que sentido então pode-se manter a experiência de um outro em sua especificidade ao mesmo tempo em que haveria um sentido para mim enquanto eu o considero? Segundo Bonomi (2009, p.80), Merleau-Ponty estabelece, para que não tenhamos de optar por um dos sacrifícios, um duplo movimento: i) para reconhecer a experiência do outro em sua singularidade, quer seja ele, uma criança, um “primitivo” ou um doente, é imprescindível não a deduzir como uma manifestação degradada ou embrionária se comparada com a do suposto “observador”, ou seja, segundo um parâmetro predeterminado. Tal

suposição correspondia ao que a racionalidade antropológica denominava de pensamento “primitivo”, cuja compilação se dava por meio do progressivo empobrecimento do pensamento atual (“moderno”), considerando-o no máximo uma fase inicial ou embrionária deste último. De acordo com isso, o “primitivo” vivia ainda numa fase viciada por atitudes “supersticiosas”, “místicas” ou “distorcidas” que viriam a desaparecer com o desenvolvimento da racionalidade exata, isto é, da razão. O mesmo vale para a criança vista como fase menos desenvolvida, para o “louco” ou qualquer doente enquanto falha a ser solucionada com a recuperação daquilo que deve ser a “saúde” ou a “normalidade”; ii) o segundo movimento se realiza quando enfatizamos o quanto há de comum entre a experiência do outro e da minha, visto que é só nessa perspectiva que a interrogação tem sentido para quem, enquanto sujeito situado num universo cultural constituído, vai ao outro. Isto é, ao considerar uma experiência diferente, ela só se torna significante para o “observador” na medida em que ele se implica, em que coloca em causa a sua própria experiência e, assim sendo, há reciprocidade – reconhecimento não mais de uma subjetividade pura, mas da intersubjetividade como originária (BONOMI, 2009, p.81). Cabe ressaltar que um movimento é inseparável do outro. Enquanto no primeiro movimento se configura a crítica das teses clássicas na medida em que suspende a idéia de normalidade como algo pré-constituído (tal como a redução fenomenológica se propõe), fica aberto um campo em que o mundo “de” ambos está em jogo.

Esta consideração nos leva a questionar as próprias possibilidades de constituição de uma normalidade, o que só é viável de um ponto de vista genético, para o qual, portanto, esta normalidade irá delinear-se como campo de investigação e não como parâmetro pré-constituído. A ampliação, por assim dizer horizontal, da experiência – o seu abrir- se ao outro – produz simultaneamente um movimento em sentido vertical, em profundidade, onde esta mesma experiência é obrigada a lançar luz sobre suas modalidades constitutivas. Não está em jogo somente o mundo do outro – para o qual eu me voltaria em virtude de uma certa curiosidade em relação à ‘estranheza’, ou do gosto pelo exotismo –, mas o seu e o meu conjuntamente, ou melhor, surge o problema da gênese de um mundo em geral (BONOMI, 2009, p.81, grifo do autor).

Deste modo, considerar o patológico não é tratar de uma experiência solipsítica desde um observador imparcial46. De um ponto de

vista genético, trata-se de compreender como diferentes corpos se ocupam de modos distintos de um mesmo mundo. O patológico, conforme vimos, coloca em perspectiva o modo ambíguo segundo o qual os gestos atuais são orientados por inatualidades justamente por se apresentarem modificadas. Essas inatualidades ou generalidades se manifestam na intersecção entre os corpos e gestos, portanto não pertencem a algum deles, na verdade, são elas que tornam possível mesmo que precária, a relação entre os corpos e os objetos – ou seja, o surgimento do mundo enquanto contexto de relações atuais e inatuais. É na mútua fundação entre operação intencional e o que por ela é visado que reconhecemos um mundo em geral. Notamos com a patologia que a intencionalidade pode se apresentar de um modo distinto ou reduzido, por vezes, insustentável em face do que a atualidade oferece o que, precisamente, justificaria a denominação de patológico. Em última instancia é a própria coexistência com o outro que aparece reduzida. Nessa perspectiva, “[...] o doente nunca está absolutamente cortado do mundo intersubjetivo, nunca inteiramente doente (PhP, p.226). Com esse destaque ao mundo em geral, a essa experiência intersubjetiva que é o mundo sempre compartilhado, retomemos o pensamento de Merleau-Ponty que mais a acima destacamos acerca da patologia,

46 Merleau-Ponty (PhP, p.483-4), critica o modo como Sartre se ocupou do problema da intersubjetividade, identificando-o com o problema do reconhecimento direto entre duas consciências diferentes, isto é, com o fato de um sujeito ser visto objetivamente por outro. Isso o levou a concluir que toda relação entre os sujeitos seria conflituosa, pois perdeu-se de vista o fato de um sujeito encontrar o outro no mundo enquanto campo aberto de experiências perceptivas e práticas. Nesse caso, ambas as consciências, ambos os olhares, permanecem como dois absolutos, de modo que cada um exigiria a exclusividade do próprio acesso ao mundo. Neste sentido, “outrem me transforma em objeto e me nega, eu transformo outrem em objeto e o nego, diz-se. Na realidade, o olhar de outrem só me transforma em objeto, e meu olhar só o transforma em objeto se nós dois nos retiramos para o fundo de nossa natureza pensante, se nó dois olhamos de modo inumano, se cada um sente suas ações, não retomadas e compreendidas, mas observadas como as ações de um inseto. É isso que acontece, por exemplo, quando sou olhado por um desconhecido. Mas, mesmo agora, a objetivação de cada um pelo olhar do outro só é sentida como penosa porque ela toma o lugar de uma comunicação possível” (PhP, p.484).

A doença, assim como a infância e o estado de ‘primitivo’, é uma forma de existência completa, e os procedimentos que ela emprega para substituir as funções normais destruídas são também fenômenos patológicos. Não se pode deduzir o normal do patológico, as carências das suplências, por uma simples mudança de sinal. É preciso compreender as suplências como suplências, como alusões a uma função fundamental que elas tentam substituir e da qual não nos dão a imagem direta. O verdadeiro método indutivo não é um ‘método das diferenças’, ele consiste em ler corretamente os fenômenos, em apreender seu sentido, quer dizer, em trata-los como modalidades e variações do ser total do sujeito (PhP, p.155-6).

Dessa maneira, poderíamos reler os dois movimentos apontados por Bonomi, – por cujo meio se pode fazer uma leitura correta dos fenômenos patológicos e a da normalidade –, em outros termos, quais sejam: i) considerar a patologia uma existência completa ou modo próprio de correlação com o mundo e os outros; ii) compreender a suplência como uma alusão a função fundamental presente de outra forma no normal; iii) entender a estrutura da questão que demanda a suplência para esclarecer essa função fundamental47. Esse último passo assinalamos com a seguinte

referência que Merleau-Ponty (SC, p.95), faz à Goldstein (2000, p.35): “[...] o sintoma é uma resposta do organismo a uma questão do meio, e que dessa forma o quadro dos sintomas varia com as questões que são colocadas ao organismo. De onde se segue que,

[...] pelo exposto, parece claro que os sintomas que nós encontramos em um paciente são, em parte,

47 Esses movimentos pareceram comtemplar uma saída para advertência feita por Merleau-Ponty (PhP, p.177), de que, “enquanto não se tiver encontrado o meio de unir a origem com a essência ou com o sentido do distúrbio, enquanto não se tiver definido uma essência concreta, uma estrutura da doença que exprima ao mesmo tempo sua generalidade e sua particularidade, enquanto a fenomenologia não se tiver tornado fenomenologia genética, os retornos ofensivos do pensamento causal e do naturalismo permanecerão justificados”. Ou seja, compreender a questão e a resposta como uma estrutura da situação, ou então, a particularidade da tentativa de ligação realizada pelas suplências com a generalidade dos horizontes temporais anônimos num campo fenomenal intersubjetivo.

determinados por nossos procedimentos e métodos de investigação. A análise da estrutura dos métodos nos dará frequentemente uma visão da estrutura dos transtornos do paciente (GOLSTEIN, 1950, p.4, tradução nossa).

É preciso então compreender que as suplências desenvolvidas têm que ver com as questões do meio e também dos médicos (enquanto inseridos no mesmo meio). Por conseguinte, se formos capazes de analisar tais questões em contraste com as suplências esclareceremos uma estrutura fundamental que no caso patológico está modificada e que no normal não. O deslocamento exigido por Goldstein, ainda que apenas Merleau-Ponty coloque em termos temporais, é na direção da estrutura da situação, da questão abstrata que lhe exige respostas abstratas. Ou então, de como os gestos pessoais (sejam eles suplências ou movimentos propriamente abstratos) são permeados ou não por inatualidades impessoais. Ou seja, como tal estrutura temporal em torno do atual não pertence a um sujeito, ela só faz sentido na relação intersubjetiva – com efeito, a mútua fundação entre o tempo e os gestos atuais de cada envolvido é a própria intersubjetividade. Portanto, o normal ou “[...] a ‘norma’, em seu significado autêntico, só pode ser atingida na unidade da experiência intersubjetiva” (BONOMI, 2009, p.85). Isso quer dizer que, seja uma norma que supre uma impossibilidade, seja uma norma que se projeta para além das possibilidades atuais, tratam-se sempre de normas relativas a um campo fenomenal e é em sua relação interna que poderemos verificar a diferença entre patologia e normalidade. Nisso também encontramos uma implicação ética colocada por Goldstein (1950, p.18-9, tradução nossa), nos seguintes termos: “nos casos em que a alteração não possa ser eliminada, o trabalho do médico consistirá então em assegurar o melhor ambiente possível para o paciente e decidir até que ponto este é capaz de suportar seu desvio sem alterar-se demasiadamente em geral”. Na experiência de Schneider, por exemplo, se ninguém lhe pede um movimento abstrato, ele se mostra bem adaptado (normal) ao meio concreto. Vemos também como o pensamento de Canguilhem (2002, p.157), acompanha Goldstein na constatação de que na patologia há um novo ordenamento do organismo e que diante deste “[...] não temos o direito de tentar modificar essas constantes, só criaríamos, assim, uma nova desordem”. Por exemplo, segundo o autor, nem sempre se deve combater a febre, entre outros sintomas, pois essa nova norma criada é necessária para cura e suprimi-la como nociva seria, por consequência, um equívoco. É justamente isso que se deve levar em conta ao observar

as suplências desenvolvidas por um paciente. Ainda seguiremos adiante com as análises canguilhemianas no próximo item. Por ora, basta resumir que, de acordo com Bonomi (2009, p.83), seja nos estudos dos feridos de guerra, em que Gelb e Goldstein encontram fenômenos de reestruturação da atividade orgânica; seja descrição do aprendizado da linguagem na criança encontrados na obra de Grégoire, na qual esclarecem-se certas atividades fundamentais que estão na base de qualquer experiência linguística; seja ainda no estudo do pensamento daqueles denominados primitivos no qual Lévi-Strauss percebe uma lógica que se exprime por meio das qualidades sensíveis e que também se encontra também nas formas “ocidentais” de pensamento, enfim, em todos estes casos “[...] podemos reconhecer a tentativa de individuar certas funções que, justamente por sua originariedade, são gerais, entram na constituição de todo e qualquer modo de experiência” (BONOMI, 2009, p.83). De fato, é mais difícil identificar essas funções em uma experiência cotidiana ou “normal”, tendo em vista que o normal é o adquirido, isto é, a sedimentação dos resultados dessas funções (normal no sentido de estar habituado, não necessariamente normativo) (BONOMI, 2009, p.84). Nessa ótica, para Merleau-Ponty, tanto na doença quanto no normal “[...] a ‘norma’ não é mais uma sedimentação ideológica, e sim uma regra operante – e sempre a realizar – no interior do próprio processo de estruturação” (BONOMI, 2009, p.91, grifo do autor).

2.8 Fenomenologia da patologia ou patologia fenomenológica?