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2 Pesquisa Participante

2.1 O corpus analisado

Tomamos como corpus desta pesquisa relatórios de estágio supervisionado que tematizam o recurso digital nas práticas de ensino em momento anterior à intervenção, além de todo o material escrito produzido por participante e colaboradores no momento da intervenção: 12 relatórios de estágio supervisionado anteriores à intervenção; 6 produzidos durante a pesquisa participante; 23 ensaios produzidos durante a intervenção, além dos diários online dos alunos-mestre publicados na plataforma Moodle. Por questões éticas, não mencionamos os nomes dos colaboradores desta investigação. Como realizamos a pesquisa participante numa disciplina obrigatória da Licenciatura em Letras, partimos do documento que é definido como método de avaliação final: o relatório de

estágio supervisionado. Além desse documento produzido pelos alunos-mestre ao final de seus estágios, relatando e refletindo sobre suas práticas pedagógicas, também foram produzidos ensaios e diários online, todos utilizados para discutir criticamente a docência em língua materna.

Esses documentos escritos pelos alunos-mestre no momento em que são visualizadas suas práticas pedagógicas potencializam a escrita reflexiva profissional, subsidiada por alguma orientação teórica, objetivando analisar questões referentes à prática do próprio escritor, neste caso, o professor em formação inicial.

O relatório estágio supervisionado, com escrita de caráter reflexivo, é um documento em que os professores em formação inicial descrevem, refletem, criticam e analisam suas práticas pedagógicas e os fatores que contribuíram positivo ou negativamente para o seu fazer docente desenvolvido na educação básica. Tem caráter mais subjetivo, uma vez que visa explicitação da voz do aluno-mestre, suas impressões e sensações referentes ao momento da prática docente observada - tanto do professor da escola básica observado quanto do próprio aluno-mestre. Fiad e Silva (2009) falam sobre a tendência desse tipo de escrita nos curso de licenciatura, que objetivam acolher a voz do aluno e, com isso, desvelar a identidade do profissional que está sendo formada. Essa escrita configura-se como "de caráter mais narrativo e subjetivo, na qual a maior referência é o próprio autor, sua percepção dos fatos, suas experiências e formas de significação" (p. 123). Como outros gêneros que circulam na academia são bastante informados por um discurso de autoridade que não é representado pelo autor do texto, principalmente quando diz respeito ao discente, geralmente trazendo vozes das teorias e autores estudados, o relatório de estágio, visualizando uma escrita mais subjetiva e mais autoral não abre mão da fundamentação teórica. Esse movimento de escrita, muitas vezes em primeira pessoa, possibilita a associação das experiências docentes vivenciadas à reflexão teórica (FIAD e SILVA, 2009), construindo a escrita reflexiva. Essa subjetividade na escrita dos alunos-mestre sobre formação docente, de caráter mais narrativo, "possibilita a valorização dos saberes docentes, construção das identidades profissionais, das relações entre ensinar e aprender, entre formador e docente em formação, entre teoria e prática, entre ação e reflexão (FIAD e SILVA, 2009, p. 124).

Além de ser caracterizado como instrumento de avaliação final da disciplina de estágio supervisionado, também, e mais importante, configura-se por ser o meio pelo qual o aluno-mestre dá evidências de como será sua atuação profissional, pois é o documento pelo qual o aluno-mestre desenvolve, por meio da escrita, uma reflexão acerca de suas práticas pedagógicas (SILVA, 2013), dando indícios de como visualiza sua formação e atuação profissional.

Nesse momento, espera-se que o professor em formação inicial volte-se para a docência desenvolvida, avaliando o trabalho realizado, apontando aspectos positivos e negativos e fazendo projeções para o desenvolvimento de melhores estratégias para suas práticas nas atuações futuras.

Ainda que seja uma atividade avaliativa, considerando que, atualmente5, há um professor formador que avalia o trabalho do aluno-mestre pela crítica desenvolvida na escrita reflexiva profissional sobre seu estágio supervisionado, esse documento pode ser considerado um importante instrumento de formação, pois é nele que o aluno-mestre faz o esforço da autorreflexão, desenvolve a crítica sobre sua própria atuação, numa articulação de saberes teóricos e práticos. Melo (2012) argumenta sobre a importância dos relatórios de estágio como instrumento de pesquisa:

A utilização dos relatórios como instrumentos investigativos de pesquisa pode viabilizar contribuições para a formação inicial dos professores, na licenciatura em Letras, ou mesmo de outras licenciaturas, contribuindo para apontar alternativas de inovação para o ensino. O relatório de estágio pode contribuir para a (re)construção de representações do futuro professor, colaborando para o desenvolvimento e transformação da prática pedagógica [...] Se bem utilizado, o relatório potencializa os alunos-mestre a repensarem criticamente o trabalho pedagógico observado ou desenvolvido, colaborando para motivá-los a se qualificarem e a se aperfeiçoarem profissionalmente. (MELO, 2012, p. 183)

Considerando esse gênero de caráter reflexivo na formação inicial do professor, como alerta Melo (2012), pode haver um empoderamento do aluno-mestre quando o relatório de estágio funciona como espaço de questionamento e problematização sobre prática e teoria. Tendo em vista o olhar crítico do aluno-mestre sobre seu futuro espaço de atuação profissional e a mobilização de teorias para problematizar a prática ou repensar as próprias orientações teóricas, o processo de reescrita dos relatórios de estágio orientado pelo professor formador pode suscitar um olhar mais atento sobre alguns aspectos do processo de ensino-aprendizagem. Como apontam Silva & Mendes (2012), o processo de reescrita pode contribuir para que o aluno-mestre repense seu próprio fazer, de que forma a teoria contribui para a reflexão sobre o ensino:

A atividade de reescrita corresponde a uma estratégia didática produtiva para o processo de formação inicial do professor, pois permite a inserção do aluno-mestre no laborioso processo de escrita, conscientizando-o das tradicionais distorções nas práticas escolares de letramento, informadas pela concepção de escrita como produto acabado. (SILVA & MENDES, 2012, p. 141)

Sobre o caráter avaliativo, Silva e Fajardo-Turbin (2011) alertam que essa escrita reflexiva também pode se encaminhar para a simples simulação de crítica ou reflexão sobre as próprias práticas, quando o aluno-mestre apenas cumpre essa tarefa com o objetivo de obtenção de notas. Os autores apontam que o professor formador tem um papel fundamental para a ruptura dessa lógica empobrecedora de formação e avaliação, destacando o papel da reescrita dos documentos, quando o formador exige do aluno maior reflexão sobre suas práticas, solicitando análises mais detalhadas e maior envolvimento do discente com as ações descritas. É no relatório de estágio supervisionado

5 Desde a criação do CIMES, em 2009, os alunos-mestre têm clareza que seus relatórios de estágio supervisionado são arquivados e servem como fonte de investigação tantos para os pesquisadores da academia quando para os próprios discentes das licenciaturas interessados em entender como funciona o gênero relatório de estágio.

que se delineia a identidade profissional dos alunos-mestre, através de uma reflexão sobre a prática orientada por teorias estudadas durante o período de sua formação. Entretanto, é importante notar que, no relatório de estágio, pode-se simular negativamente o efeito da formação acadêmica, pouco contribuindo para uma formação crítica de professores, em que a escrita "se configuraria como mais um instrumento para reprodução de uma dinâmica perversa, responsável pela manutenção do estado das coisas" (SILVA e FAJARDO-TURBIN, 2011, p. 109):

Em oposição ao uso idealizado do relatório de estágio supervisionado, deparamo- nos com situações em que esse gênero pode ser escamoteado pelo aluno-mestre, funcionando como mais um elemento fomentador da engrenagem responsável pela manutenção da precária formação inicial de professores, nas licenciaturas. O acadêmico admite algumas manobras possíveis de serem realizadas no relatório, em função da avaliação da produção escrita, a ser feita pelo docente responsável pela disciplina de Estágio Supervisionado, leitor imediato do trabalho acadêmico. (SILVA e FAJARDO-TURBIN, 2011, p. 108-109)

Além desses fatores que dizem respeito à identidade da escrita nos relatórios de estágio, o gênero apresenta bastante instabilidade em relação à sua estrutura. De acordo como Silva (2013), a variedade na organização dos textos concebidos como relatórios de estágio está relacionada ao próprio corpo docente: como esses não chegam a um consenso sobre o que e como deve ser o documento, orientações diversas são dadas aos alunos-mestre referente à escrita do relatório. O fator comum em relação ao gênero está relacionado à natureza das discussões enredadas, concentrando-se na atuação do aluno-mestre na educação básica e na articulação de saberes discutidos na academia às práticas desenvolvidas na escola.

Nosso interesse nesse gênero que circula na formação inicial dos professores diz respeito ao caráter sintomático que ele nos apresenta em relação à qualificação oferecida pela academia. Com a pesquisa participante, podemos notar nos relatórios de estágio supervisionado as mudanças ou reconfigurações instauradas na formação dos alunos-mestre a partir da intervenção, avaliando os efeitos da investigação nas práticas pedagógicas e construção da identidade dos futuros professores.

Durante a intervenção, solicitamos aos alunos-mestre que fizessem um ensaio articulando a leitura de três textos, fazendo uma discussão sobre questões relacionadas à leitura e escrita no ensino de língua materna aliado ao uso de TIC como instrumento pedagógico6. Com a produção do ensaio, objetivamos levar os alunos-mestre a suscitar reflexões sobre o ensino de língua materna considerando que as tecnologias digitais permitiram a reconfiguração da noção tradicional de texto, leitura e escrita.

Ainda que visualizassem a articulação de perspectivas teóricas, os discentes foram orientados a produzir um texto que também privilegiasse aspectos da prática pedagógica, tendo em

6 As obras discutidas no ensaiam foram DELL’ISOLA, Regina L. Retextualização de gêneros escritos. Rio de Janeiro: Lucerna, 2007; GOMES, Luiz F. Hipertexto no cotidiano escolar. São Paulo: Cortez, 2011; KOCH, Ingedore V. Ler e escrever: estratégias de produção textual. São Paulo: Contexto, 2009.

vista que já tinham experienciado a docência em estágios anteriores. Assim, juntamente com o saber acadêmico, os professores em formação inicial também poderiam pensar em apontar no ensaio possibilidades de trabalho com língua materna, considerando as ferramentas hipermodais.

Tal como o relatório de estágio, o ensaio também foi solicitado aos discentes com o objetivo de desenvolver a escrita reflexiva, articulando saberes teóricos aos práticos. Entretanto, numa direção distinta à do relatório, no ensaio, o aluno-mestre deveria articular as experiências vivenciadas em favor de um debate teórico. Como o foco estava em levar o discente a sistematizar os saberes então problematizados sobre letramento digital, no ensaio devia constar uma discussão coerente sobre o ensino de língua materna e a influências das TIC nos processos de leitura e escrita.

Os ensaios, de forma similar ao relatório, foram instrumentos utilizados na disciplina de estágio no sentido de levar os alunos-mestre a refletirem sobre a sua formação e atuação profissional, mas numa discussão restrita à leitura e escrita e à influência dos suportes digitais nos processos de ensino-aprendizagem, especificamente relativo à língua materna. Certamente, questões referente à própria configuração do gênero, aspecto discutido mais a frente, remete-nos a textos que apontam para diferentes finalidades. Nesse sentido, diferentemente do relatório de estágio e seu apontamento para o percurso de formação do aluno-mestre, o ensaio pode nos informar de que forma as problematizações acerca do ensino de língua e o letramento digital são sistematizadas numa discussão teórica pelos autores.