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2. REALISMO E NATURALISMO NO SÉCULO XIX

2.2 A obra O Cortiço

2.2.1 O cortiço de São Romão

Na composição do espaço do cortiço de João Romão, Azevedo escolhe dar início à narrativa representando a atividade de trabalho do vendeiro, a qual lhe proporciona renda para organizar sua pequena república a partir da construção de “três casinhas”, fruto do espólio de tudo o que o ganancioso João Romão encontrava e conseguia pilhar para a formação de seu patrimônio.

Em um primeiro plano, o uso do diminutivo da palavra casa remete claramente à ideia do tamanho dos prédios que o capitalista pretendia construir para alugar. Já em uma análise um pouco mais aprofundada, os três prédios que lhe proporcionariam recursos iniciais para construir aquele que seria um imenso cortiço moldado como uma república poderia fazer referência indireta aos três poderes existentes em uma sociedade republicana.

Como demonstra Chevalier (2015, p. 899) sobre o simbolismo do numero três, “Esse número também exprime a totalidade da ordem social, notadamente a composição tripartida das sociedades indo-européias. Segundo Georges Dumézil, essa tripartição, que se verifica na análise de toda estrutura social, foi estabelecida em uma filosofia global do mundo...”.

de sol a sol desviando, enganando, cobrando além do preço, o Comendador Miranda, negociante português, e sua esposa são os representantes da aristocracia e vivem da loja de tecidos fabricados na Inglaterra, em uma referência ao sistema econômico baseado no comércio de produtos ingleses no Brasil.

Assim, há a representação de dois grupos inicialmente antagônicos: a classe média, que ascendia economicamente na recém criada República, e a aristocracia decadente, seguidora da cultura da manutenção de títulos nobiliárquicos oriundos da Monarquia.

O autor também utiliza a simbologia das letras iniciais dos nomes das personagens Romão e Miranda para fazer referência aos dois paradigmas de sociedade, República e a Monarquia, em que esta era suplantava pela primeira.

Embora haja um conflito inicial entre Miranda e Romão, em decorrência da disputa pelo terreno onde este constrói o cortiço sob as janelas do sobrado – construção arquitetônica esta que simboliza a elevação social e cultural de Miranda – esse território faz referência às terras brasileiras onde seria construída a nação, e as desavenças de ambos, às forças de detenção do poder das decisões políticas e econômicas no Rio de Janeiro do final do século XIX, o que reestruturaria social e culturalmente o país.

Esse contato entre os diferentes grupos se reconfigura de modo que, embora um deles ascenda, permanece à margem de algum sistema de significados, como é o caso de João Romão, o qual se encontra em ascensão social, mas é um indivíduo desprovido de títulos, ao contrário de Miranda, detentor da nobiliarquia.

Ao mesmo tempo, Miranda, que possui títulos, encontra-se em decadência econômica, vendo na aproximação de Romão uma possibilidade de união de forças para se manter em seu posto de poder.

Para solucionar o problema de ambos, entre conflitos pessoais e uma relação ambiciosa e de inveja recíproca, Azevedo encaminha as personagens para uma aproximação que os une em seus interesses: a aliança entre o poder econômico e o aristocrático a partir do casamento de João Romão e Zulmira, filha de Miranda, personificando os hábitos das famílias cariocas para se manterem no controle do poder social, econômico e político por meio da cultura do dote.

A escolha do gênero no qual o texto está estruturado é outro fator indicativo de referência à classe média brasileira do período, pois se sabe que o romance se estruturou a partir dos folhetins dos jornais que serviam para entreter aquele grupo em ascensão social, como o próprio João Romão “lia de cabo a rabo, com uma

paciência e santo, na doce convicção de que se instruía” (AZEVEDO, 2010, p. 134). Entre a aristocracia e a burguesia encontra-se o povo, formado pelos trabalhadores de diferentes etnias que aparecem na obra representados pelos funcionários de João Romão, suas esposas lavadeiras e seus filhos, vivendo em um espaço dominado pelo capitalista em todos os setores, o que faz com que suas vidas não saiam de um sistema cíclico administrado por Romão, pois o que os trabalhadores ganham na pedreira, gastam na venda do patrão, fazendo retornar ao bolso do capitalista os salários que ganharam no trabalho da pedreira.

Essa relação entre patrão e trabalhador é de exploração do homem pelo homem na forma do trabalho, o que reduz o ser humano ao patamar de animais de carga, indicado pelo autor através da zoomorfização.

Em seu estudo De cortiço a cortiço, Antonio Candido (1991, p. 115) ensina que essa estratégia de apresentação das personagens não se trata de uma “equiparação graciosa do animal ao homem (à maneira das fábulas), mas, ao contrário, de uma feroz equiparação do homem ao animal, entendendo-se (e aí está a chave) que não é o homem na integridade do seu ser, mas o homem-trabalhador”.

Esses homens e mulheres que vinham de diferentes partes do Brasil e de Portugal para trabalhar nas terras de Romão traziam consigo suas culturas, as quais eram representadas pelas comidas, danças e músicas, como é o caso do fado português que, aos poucos, ia se misturando aos ritmos africanos e formando a cultura brasileira.

A estética escolhida por Azevedo para o aprofundamento de suas análises sociais de modo a ser considerado o papa do Naturalismo no Brasil é apontada por Afrânio Coutinho (1969, p. 25), quando nos informa que “o romance fundiria realidade e fantasia, análise e invenção. 'Assim como no teatro, no romance, o gôsto da história, dos motivos e personagens, é de tal maneira disseminado, que imprime ao gênero uma de suas formas principais na época: o romance histórico”.

Sobre o processo de aculturação do imigrante português, Azevedo aponta não somente para a relação do mesmo com a música e os costumes do país, assim como para as relações que deram origem à miscigenação do povo. Utilizando a personificação, apresenta a influência exercida pela voluptuosa Rita Baiana, a qual é transformada em deusa mitológica de sedução que envolve o imigrante:

de baunilha, que lhe entontecera a alma; e compreendeu perfeitamente que dentro dele aqueles cabelos crespos, brilhantes e cheirosos da mulata, principiavam a formar um ninho de cobras negras e venenosas que lhe iam devorar o coração. (AZEVEDO, 2010, p. 71)

Dessa e de outras relações amorosas existentes no cortiço saem as ideias que farão com que a concepção de Pombinha sobre o amor seja estruturada. Para esta personagem Azevedo reservara os pensamentos quanto a condição humana. Das indagações da menina sobre os sentimentos dos que lhe pediam para escrever cartas surgem as reflexões sobre o que vem a ser o amor e o poder que ele exerce sobre os homens “obrigando-a a tirar da substância caprichosa da sua fantasia de moça ignorante e viva a explicação de tudo que lhe não ensinaram a ver e sentir” (AZEVEDO, 2010, p. 129).

Essa personagem, que é considerada a “flor do cortiço” (AZEVEDO, 2010, p. 35), simboliza o “princípio passivo” (CHEVALIER, 2015, p. 437), a pureza da alma humana que, inserida em um lugar caótico, possibilita ao autor embasar sua tese determinista que questiona a influência do meio e sua interferência na construção do ser humano ou o homem teria a capacidade de transformar o meio.

A moça, que chega aos dezoito anos sem atingir a formação biológica para a geração da vida, provoca alaridos no cortiço por ser este fato o que todos aguardavam, de modo que era esta a fase na qual estaria apta para casar-se com um pretendente, o Costa.

Quando da descrição desse ápice da adolescência de Pombinha, o autor afasta-se de uma narrativa rigorosa baseada na estética naturalista e adentra no campo onírico para descrever as sensações da personagem ao receber o tão aguardado fluxo e, embora o faça, mantém a verossimilhança de forma sublime:

É curioso observar como, mesmo mergulhado na objetividade naturalista, o escritor suspende o curso da mímese e recorre ao sonho carregado de conteúdo não apenas simbólico, mas alegórico: ao possuir figuradamente Pombinha, o Sol-Brasil, que escalda o sangue, dissolve os costumes, desencaminha os portugueses honrados é também força de vida. Assim, Aluísio põe entre parênteses a "explicação" determinista, encharcada de meio e raça, para recorrer à "visão", que se interpreta na chave do símbolo e da alegoria (CANDIDO, 1991, p. 127).

inovadora na literatura nacional. O tema de uma relação homoafetiva feminina pode ser visto primeiramente na obra A Condessa Vésper (1882), onde se apresenta essa temática considerada tabu, principalmente por se estar em uma sociedade conservadora e preconceituosa.

Além disso, na contramão desse conservadorismo, Azevedo (2010, p. 96) já indiciava manifestações emancipatórias femininas, representadas pelo pensamento de uma mulher do cortiço, o que ao mesmo tempo seria uma denúncia, dado o nível de brutalidade do sexo masculino contra elas, chegando a ver na prostituição de Léonie uma opção de fuga daquela realidade: “só o que afianço é que esta não está sujeita, como a Leocádia e outras, a pontapés e cachações de um bruto de marido! É dona de suas ações! Livre como o lindo amor! Senhora do seu corpinho”.

Além de Pombinha, outros adolescentes aparecem na obra, os quais são considerados em grande parte das análises literárias como personagens secundárias.

Para o desenvolvimento desta proposta pretende-se inverter tal perspectiva, tornando a abordagem sobre elas o ponto de partida para a leitura literária, sendo a sequência didática um instrumento que almeja tal feito de maneira a ser uma estratégia de aproximação entre estudante e obra a partir das temáticas presentes na vida adolescente e em voga na sociedade contemporânea.

Antonio Candido (2000, p. 37) observa que partir da realidade dos estudantes fora preconizada por Rousseau, que “discerniu há mais de 200 anos que o menino não é um adulto em miniatura, mas um ser com problemas peculiares, devendo o adulto esforçar-se por compreendê-lo em função de tais problemas”.

Esta reflexão de Candido reforça a possibilidade desse tipo de estratégia de leitura da obra partindo das realidades vivenciadas pelos estudantes em seu cotidiano e que encontram em O Cortiço (2010) ligação temática com as personagens adolescentes da narrativa.