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O cotidiano e o ordinário na apreensão dos discursos

4. TRILHAS METODOLÓGICAS NA COMPREENSÃO DOS

4.3 O cotidiano e o ordinário na apreensão dos discursos

Além das práticas discursivas coletadas nas delegacias, que ocorreram de forma sistemática, também foram utilizadas como suportes analíticos as práticas discursivas sobre gênero observadas no cotidiano, coletadas de forma assistemática. As leituras que fiz da literatura especializada e a imersão em campo me fizeram aguçar o olhar sobre gênero num espectro mais amplo, ou seja, para além dos sujeitos e do contexto investigado. Pude perceber então, que a construção de gênero e, particularmente, da masculinidade se fazia presente em grande parte das situações cotidianas, ocorridas nos espaços públicos e privados próximos a mim. Presenciei tais cenas discursivas no contexto familiar, nos momentos de lazer com amigos, entre colegas no ambiente de trabalho, entre pacientes na sala de espera de consultório médico, entre outros. Esses diálogos ou rápidas trocas de conversas percebidas no cotidiano, das quais, algumas participei diretamente, mostravam a forte incorporação e propagação dos discursos tradicionais de gênero que reforçavam a presença da

23 Para saber detalhadamente sobre o acolhimento às vítimas na 1a DEAM ver

masculinidade do tipo tradicional como expressão comum das relações de gênero. A ênfase nos aspectos tradicionais das relações de gênero indicava que tais relações não eram regidas unicamente pela tradição, mas que aspectos “modernos” se apresentavam possibilitando um contra-discurso, realçado especialmente nos discursos masculinos.

A tarefa do pesquisador não se resume em coletar informações apenas no momento formal da pesquisa, mas vai, além disso. Ele deve estar atento frequentemente ao cotidiano aproveitando as observações avulsas para complementar as interpretações dos fenômenos estudados. O material dessas observações se mostrou rico e ajudaram no fortalecimento dos argumentos e desvelamento dos significados sociais das masculinidades. Vejamos algumas dessas observações:

Cenas cotidianas I - Certa vez, mantive diálogo com uma mulher sobre sua relação com o ex-marido. Tal assunto surgiu porque ela queria vender sua casa e para isso tinha que ter a concordância do ex-marido, com quem ela tinha duas filhas. Ela contou que seu ex- marido é um excelente pai, mas foi um péssimo marido, sempre cuidou bem das filhas, dando carinho, atenção, amor e provendo-as, mas ao mesmo tempo não conseguiu repetir as características afetuosas com a esposa, tendo inclusive histórico de agressões na vida conjugal do casal. Mesmo depois da separação, o ex-marido ainda frequentava diariamente a casa da ex-companheira para auxiliá-la na educação e cuidados das filhas. Ele não concordava com a ideia da ex-mulher em querer vender a casa que foi projetada e efetivada pelo casal. A casa representava a formação da família, um porto seguro e um depósito de sonhos e de possível reconciliação. A vida conjugal foi desfeita, mas os vínculos entre eles não serão desfeitos totalmente em virtude dos filhos. Entre outras coisas, a casa simboliza a manutenção desse vínculo. Disse ele não suportar

ver outra pessoa morando na casa que foi projetada por ele. Projetar aqui ganha outro sentido, extrapola as paredes do prédio, implica em projetar sonhos, projetar a vida. Como a noção de projeto é algo sempre perene, no sentido de ser um continnum, esse projetar também deixa acessa (quem sabe!) a esperança de reconciliação. Sendo vendida a casa, a história de vida do casal deixaria de ser vista através de algo concreto.

Impedir que a companheira vendesse a casa era também uma demonstração de controle masculino sobre a família, mesmo depois da separação. O controle exercido sobre a esposa, quando moravam juntos, impedindo-a de trabalhar, estudar, mudou de configuração depois da separação. Após a separação, ela terminou um curso superior e logo em seguida passou num concurso público municipal no cargo de assistente social. No relato acima, observou-se que as relações de gênero são ou foram desiguais e conflituosas entre o casal. Também perpassa a ideia de que homens e mulheres devem ocupar lugares distintos no âmbito do contexto familiar com os homens exercendo controle e autoridade.

Cenas cotidianas II - Em contato com uma senhora de oitenta e nove anos de idade obtive, carinhosamente, a alcunha de “coroné”. O termo coronel já traz, em si, uma carga valorativa em torno de uma virilidade masculina que expressa poder de mando e autoridade sobre as pessoas. Mas, certa vez, a atribuição que me fora dada por essa senhora, foi abalada por um episódio que passo agora a relatar. Estávamos ao redor de uma mesa jantando, eu e um grupo de pessoas. Durante o jantar conversamos sobre várias coisas, especialmente sobre o mundo moderno e as modernas divisões sexuais do trabalho. Tratando desse assunto fui taxativo no sentido de concordar que acho justo uma divisão do trabalho igualitária entre homens e mulheres, que os homens poderiam tranquilamente dividir as tarefas domésticas com as mulheres. A senhora ouvindo aquela

conversa, imediatamente retrucou dizendo, “parece que o „coroné‟ é barriga branca?”. Até aquele momento eu desconhecia o significado da expressão, mas pelo contexto deu para perceber que se referia aos homens que não exerciam domínio sobre as esposas e mais, eram dominados por elas. A atribuição de ser um “barriga branca” correspondia ao não cumprimento das expectativas dela acerca de como eu, enquanto homem, deveria me impor diante de certas atribuições, especialmente aquelas direcionadas a divisão sexual do trabalho.

Com isso, a alcunha de “coroné” que me fora atribuída por essa senhora sofreu um abalo. Como é possível um “coroné” que não só não manda, mas é mandado por uma mulher? Esse episódio serve para refletir como o modelo cultural de construção das masculinidades perpassa o âmbito do universo masculino e circula entre os sujeitos e a vida social em seu sentido mais amplo. Esse relato mostra que algumas mulheres, como essa do relato, corroboram a ideia de relações tradicionais de gênero e, particularmente, da expectativa em torno do modelo tradicional de masculinidade. Por outro lado, se observa que nem sempre as expectativas em torno de determinados modelos são cumpridas como se pode perceber no relato acima, o que significa que nem sempre a construção das masculinidades segue uma via de mão única, homogênea, apesar de frequentemente se encontrar práticas discursivas que alimentam a noção da figura masculina regida por valores patriarcais. Como diz Bourdieu (2004) e Lipovetsky (2000), as relações de gênero figuram entre permanências e mudanças, ou seja, por mais significativas que tenham sido as mudanças no decorrer das últimas décadas, essas não se dão a partir da extinção das velhas práticas e nem da instalação de um quadro inteiramente modificado dessas relações, o tradicional convive com o novo.

Cenas cotidianas III - Um senhor de sessenta anos de idade ao esperar sua mãe ser atendida em um consultório médico, para passar o tempo, conversa com outras pessoas que também esperavam sua vez de atendimento, eu era uma delas, para quem depois de certo tempo de conversa direcionava o olhar diretamente esperando interação. Durante a sua vida teve dois relacionamentos conjugais. No primeiro, casou-se bem novo, a esposa também era nova. Os dois eram do interior de um estado do nordeste. Depois de casados foram morar em Brasília, devido o trabalho dele nessa cidade, no setor da construção civil. Tiveram duas filhas. Sua vida, segundo ele, era de casa para o trabalho e do trabalho para casa. Essa rotina não agradava sua, então, esposa. Esse desagrado foi crescendo até o momento em que ela pediu a separação, alegando que não aguentava mais aquela vida monótona, sem divertimento, dizendo “não quero mais viver com você, estou enjoada de você, agora quero ter uma vida independente”. Segundo ele, ela gostava muito de se divertir, de se pintar, dançar, coisa que ele diz não tirar a razão dela, justificando que ela nasceu em família pobre, não teve acesso a muita coisa e, a partir do momento que começou a ter conhecimento e acesso as coisas quis usufruir, o que ele fizera na adolescência. Reconhece que com ele a vida não poderia ser do jeito que ela um dia sonhou, porque era um homem dedicado ao trabalho, vivia para o trabalho.

Disse que não tinha vergonha de dizer a verdade, dizer que foi a ex-esposa que quis se separar, “vergonhoso é contar uma história mentirosa, vergonhoso é roubar, mas dizer a verdade, isso sim é o que todo homem deveria fazer”. Disse não sabe dizer se foi traído, mas pela descrição das características do comportamento da ex- esposa deixava a entender que a vida de casada não fazia parte das intenções dela. Disse até que uma das filhas “puxou” a mãe, no sentido de gostar de farra, de se pintar, inclusive disse que soube

que ela tinha enveredado pela vida da prostituição. Mas não culpava totalmente a ex-esposa por isso, faltou, segundo ele, a sua presença, “faltou a figura da autoridade masculina, necessária em qualquer educação dos filhos”. Inclusive a educação dos seus dois filhos, do segundo casamento, passa pela valorização do trabalho que é a válvula de saída para que os filhos se tornem homens responsáveis e impeça que entrem no mundo das drogas. “Só o trabalho faz com que um homem seja respeitado”, diz ele.

Nesse relato, é possível notar as percepções acerca do que é ser homem e suas incoerências. Mostra, ainda, a importância da presença masculina no contexto familiar, alegando que essa ausência pode causar desvios morais nos filhos. A educação voltada para o trabalho aparece como valor social importante na constituição da masculinidade, e a educação sexista também compõem os elementos constitutivos de alguns modelos de masculinidades. Vejamos outro episódio que acentua essa característica:

Cenas cotidianas IV - Estava eu no Detran, na hora do almoço, para resolver algumas pendências sobre emplacamento de veículo. Numa das repartições estava um grupo de funcionários que ia fazer as refeições lá mesmo no local de trabalho, a comida vinha através de quentinhas. Uma das mulheres presente estava encarregada de receber tais quentinhas e perguntava a preferência do cardápio de cada funcionário da sala e perguntou a um colega de trabalho: - “Você quer carne, peixe ou frango?”. Ele respondeu sem titubear: “Carne, é claro, eu não como frango, sou homem”.

Este episódio demonstra como uma ordem de gênero tradicional, homofóbica está presente nas mais diversas situações do cotidiano, e como é forte a necessidade que os homens têm de publicizarem e se situarem como aquele que “come”. “Come” mulheres, mas não “come” frango. Ao menos nesse espaço, os

referenciais de ser “macho”, daquele jovem, passavam pela exclusão de ter relações com outros homens. Refiro-me àquele espaço porque se podem encontrar discursos masculinos em outros contextos onde o fato de se ter relações com outros homens não representam uma diminuição da macheza, quando ele não é penetrado, a exemplo dos resultados encontrados numa pesquisa feita por Salem (2004). Outro trabalho sobre esse assunto é a etnografia “O Negócio do Michê”, de Nestor Perlongher (1987), que demonstra como jovens se prostituem com outros homens e constroem um discurso de que não são gays porque não são penetrados. Dessa forma, o sentido que é dado ao que é ser masculino vai depender do contexto onde o discurso foi construído.

Cenas cotidianas V - Visões contraditórias sobre a posição dos homens na sociedade coexistem. Para uma senhora de quarenta e cinco anos de idade que trabalhava como doméstica na casa de minha tia a “vida de homem é muito boa, eles só têm a obrigação de trabalhar e botar as coisas dentro de casa, o resto é com a mulher. Ela tem que cozinhar, lavar, arrumar a casa, tomar conta dos filhos e os homens ficam só esperando, esperando a comida pronta, a roupa lavada.”. Nessa fala, percebe-se a representação que essa mulher casada, de classe popular, tem acerca da divisão sexual do trabalho e das regalias masculinas frente a tal divisão. Na sua percepção, os homens gozam das melhores posições sociais. Não têm as preocupações do dia-a-dia, tendo, assim, uma vida mais confortável que as mulheres. Essa percepção contraria as teorias do discurso vitimário presente nos estudos de masculinidades, de que os homens sofrem com o modelo de masculinidade imposto a eles pela sociedade.

Fazendo alusão a uma vizinha que sofre violência do marido essa senhora associa tais práticas a alguns aspectos:

Muitos homens chegam bêbados em casa e querem descontar suas raivas na mulher. Era isso que acontecia com a minha vizinha, chegou a situação em que ele quebrou vários dentes da boca dela. Ela apanhava quase todos os dias, até chegar um dia em que ela tomou a decisão de ir embora , foi para casa da mãe dela com as cinco filhas do casal. Ao chegar em casa ele percebeu que ela tinha ido embora, e foi buscar as filhas para morar com ele e elas vieram, mas depois que o Conselho Tutelar ficou sabendo exigiu que as meninas voltassem a morar com a mãe. Para o Conselho Tutelar, é a força da lei, as crianças do sexo feminino não podem ficar com o pai, devem ficar com a mãe para evitar que aja abuso sexual. Hoje ela trabalha em casa de família, é outra pessoa. Há também situações em que, segundo ela, a mulher é “atrevida”, o que pode motivar os conflitos conjugais, elencando assim a elas a culpa pelas práticas de violência masculina.

Muitos homens batem nas mulheres porque elas são atrevidas. Tiram a paciência deles. Vão buscar eles nos bares. Esculhambam com eles. Batem na cara deles. Tudo isso vai fazendo com que os homens percam a paciência. A partir disso, pode acontecer coisa pior, porque tem home que quando perde a cabeça, bate com o que tiver na frente, seja barra de ferro, faca, pau. Também não pode, né, quem já se viu uma mulher puder com um homem. Se o meu marido viesse me bater eu jamais reagiria porque sei que eu não sou nada na frente dele. Homem é bem mais forte que a mulher, não dá para se comparar. Quando existem casos de mulheres batendo em homem é porque elas são atrevidas e os homens são mongoloides, retardados, abestados.

No discurso dessa senhora existe uma fronteira clara e intransponível entre homens e mulheres marcada pela natureza. Naturalmente são diferentes, especialmente tomando como ponto de partida as diferenças corporais entre ambos. A natureza deu ao homem força física, que sendo exercida, permite a ele se impor fisicamente frente ao corpo feminino. Esse poder físico do homem é transformado em poder em outras dimensões da vida social e, particularmente, no espaço doméstico. Possuir superioridade física não significa estar imune de ser revidado, no caso, ela aponta a estratégia a ser utilizada em caso de necessidade extrema: denunciar

o marido a polícia. A denúncia é a arma feminina para conter a

Em seu discurso também ficou presente a negação ao uso da violência para resolução de conflitos conjugais:

se não tá dando certo é melhor se separar do que ficar se agredindo. Tanto é feio um homem que bate na mulher, como é feio uma mulher que apanha. E também é feio uma mulher bater num homem, como é feio um homem ter apanhado de uma mulher.

Uma vez demonstrado que através dos fragmentos do cotidiano se podem analisar as práticas discursivas de homens e mulheres sobre as relações de gênero, passo a expor como o lócus institucional de apreensão dos discursos masculinos são importantes no sentido de produção de sentidos.

4.4 Delegacias Especializadas de Atendimento a Mulher: lócus