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3. O património tangível e intangível da Imagem do Senhor Santo Cristo dos

3.1. Algumas dimensões do culto e da devoção

3.1.1. O culto oficial

Como já foi possível demonstrar, o culto ao Senhor Santo Cristo dos Milagres organiza-se em torno da Imagem do Ecce Homo, venerada atualmente no Santuário do Senhor Santo Cristo dos Milagres. Esta escultura representa o Cristo sofredor na varanda de Pilatos. É uma devoção cristológica, a Cristo vilipendiado, com a coroa de espinhos e o manto púrpura468.

Por culto oficial entende-se o que é promovido pela hierarquia religiosa. Aqui enquadra-se o clero, as quatro congregações religiosas que ocuparam o Mosteiro da Esperança e as senhoras recolhidas. Como podemos depreender da documentação, este culto foi aprovado e apoiado pelos provinciais franciscanos, pelo bispo diocesano e pelas autoridades civis, numa dimensão local e diocesana469. Ao nível hierárquico comprova-se a aceitação e sancionamento do culto pelo Núncio Apostólico, o qual concede Indulgências às religiosas do Mosteiro e a todos os fiéis no dia da Solenidade da dita Imagem470. A fundação da Irmandade do Senhor Santo Cristo, em 21 de abril de

1765, possibilitou uma melhor organização da festa exterior aos muros do Mosteiro, nomeadamente a organização da procissão. A esta dimensão acresce-se a institucional que uma irmandade possui na sociedade, sobretudo através dos seus membros.

A presença da hierarquia eclesiástica estava representada nos capelães do Mosteiro, que provavelmente orientavam a celebração do culto. Com a criação do Santuário do Senhor Santo Cristo dos Milagres, por D. Manuel Afonso de Carvalho, em 1959, demonstra-se o reconhecimento da Diocese da importância deste culto, procurando enquadrá-lo dentro da doutrina da Igreja, conforme consta no decreto episcopal: para que este culto de Jesus Cristo Rei não esmoreça e a Paixão do Senhor

466 Na perspetiva do culto judaico e cristão (cf. Bergamini, 1996: 501-510).

467 No quadro das relações entre as devoções e a liturgia (cf. López Martín, 1996: 562-581).

468 Sobre o culto a Jesus Cristo na liturgia e piedade popular (cf. Cuva, 1996 e Igreja Católica, 2003).

469 O bispo diocesano procedeu à bênção da capela (cf. Moreira, 2000: 91).

470 AMNSE, Carta do Núncio Apostólico às religiosas do Mosteiros da Esperança, concedendo

indulgências na Solenidade da Imagem do Senhor Santo Cristo (28-04-1813) (cf. também AMNSE, Carta do Bispo de Angra, D. Frei Alexandre da Sagrada Família, às religiosas do Mosteiros da Esperança, remetendo o documento das indulgências na Solenidade da Imagem do Senhor Santo Cristo, concedida pelo Núncio Apostólico (19-05-1817).

92 absorva plenamente as almas, sem que surja qualquer vislumbre de prática ou ato menos conforme com o espírito e a orientação da santa Igreja471. A presença de figuras

eminentes da hierarquia eclesiástica possibilitou o reconhecimento do culto numa dimensão universal da Igreja, culminando com a visita do Papa João Paulo II, 11 de maio de 1991, a rezar diante da Imagem no adro da Igreja de N. Sr.ª da Esperança, integrada na sua viagem à Diocese de Angra e Região Autónoma dos Açores472.

Ao nível fenomenológico, Maria Fernanda Enes observa que a intercessão e a protecção, impetradas pelos fiéis, dependem não apenas do que a imagem representa mas da mesma representação473. Podemos dizer, que para muitos fiéis é a

imagem/escultura que efectua milagres e é a ela que o culto deve ser prestado. Esta abordagem não coincide com a teologia católica, em que o verdadeiro culto é prestado a Deus. Por este motivo, podemos dizer que este culto não depende em exclusivo da hierarquia eclesiástica, embora seja apoiada pelo clero, que não consegue controlar a sua manifestação e vivência.

A festa ocorre no sexto domingo do tempo pascal, quinto domingo após a Páscoa. O que do ponto de vista litúrgico é incorreto, sendo o tempo quaresmal mais indicado para a sua realização. É um culto passional, ou seja, relativo à paixão de Cristo, contudo integra-se no tempo pascal. Tem um carácter penitencial e de desagravo a Cristo, que a procissão ainda hoje mantém, como que refletindo nos fiéis a Imagem sofredora474. As festas são organizadas pelo Santuário do Senhor Santo Cristo dos Milagres e pela respetiva Irmandade. No sábado há a mudança da Imagem do coro baixo para a Igreja de N. Sr.ª da Esperança. A saída da Imagem é sempre aguardada com expetativa, o momento em que a porta regral do Mosteiro se abre e as Religiosas de Maria Imaculada entregam a Imagem ao cuidado do Provedor da Irmandade. Este cortejo processional segue em torno do Campo de São Francisco e no final todos os fiéis passam defronte da Imagem na sua condição de pecadores. Por este motivo muitos fiéis na procissão descalços e de roupa escura ou fazendo de joelhos o percurso à volta do Campo de São Francisco.

Durante a noite, o andor é levado para a Igreja de S. José, onde decorrerá uma vigília que termina com a Eucaristia dos peregrinos. No domingo de manhã ocorre a

471 BEA, 1959: 404-405 (cf. Sá, 2009: 60).

472 Cf. Igreja Católica, 1991.

473 Enes, 2010: 211.

93 celebração eucarística, sempre presidida por um Bispo475. A meio da tarde, inicia-se a grande procissão e cortejo cívico476. A procissão abre com o guião, seguindo-se os irmãos da Irmandade e os homens das promessas, alternando com filarmónicas, às quais se seguem os acólitos, o clero e o andor, atrás do qual estão os diferentes turnos de carregadores; a Mesa da Irmandade apresenta-se nesta sequência, tendo atrás um grupo de filarmónicas; o cortejo religioso é encerrado pelas senhoras das promessas, envergando roupas escuras e os demais peregrinos. Posteriormente, inicia-se o denominado cortejo cívico, que integra as autoridades civis e militares, associações e representantes de diversas entidades, sendo encerrado pela Associação dos Bombeiros Voluntários de Ponta Delgada. Habitualmente a chegada da Imagem ocorre já à noite.

Segundo a tradição, a procissão respeita o itinerário definido pelo primeiro cortejo processional. A madre Teresa da Anunciada pretendeu que o andor passasse por todos os conventos e mosteiros existentes na cidade à época, desejo que a Irmandade, como entidade organizadora, tem vindo a preservar ao longo dos anos477.

As festas têm uma grande componente social, agregando todas as classes sociais e todas as faixas etárias no âmbito profano e religioso, como descreve Maria Fernanda Enes:

Esta festividade tem ainda uma componente de sociabilidade comunitária, em torno de uma mesma vivência que une pobres e ricos, letrados e iletrados. Numa sociedade ainda fortemente segmentada, a visita à igreja, para onde a imagem se desloca do coro-baixo do convento, em cortejo processional no sábado da festa, para passar em frente da imagem milagrosamente expressiva, constitui um momento impressionante de fraternidade. Todos aguardam em fila pela sua vez, todos se sentem igualmente

pecadores em face do Senhor Santo Cristo …478.

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