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O CURRÍCULO COMO ORGANIZAÇÃO DE SABERES SOBRE (O ENSINO

PARTE II – SENTIDOS DO CURRÍCULO DA ESCOLA BILÍNGUE PORTUGUÊS-

Capítulo 5 – Pygmalion: o discurso institucional e a legitimação

6.2 O CURRÍCULO COMO ORGANIZAÇÃO DE SABERES SOBRE (O ENSINO

6.2.1 (O ensino d)a língua como mediação: um saber sobre algo pela língua 6.3 O currículo bilíngue regulamentado: espaços de (des)regulação

A categoria Bilinguismo: o discurso científico e a taxonomia do

impossível vincula-se ao discurso científico, especificamente ao discurso da

linguística e da sociolinguística, em que há um trabalho de determinação de classificações e designações em torno do significante “bilinguismo”, produzindo lugares de sentidos legitimados sobre o ensino e a aprendizagem de línguas. Tais sentidos emergem no dizer dos sujeitos na posição de professores e coordenadores das escolas bilíngues como “verdades”, mas sempre funcionando na heterogeneidade discursiva e no equívoco da língua; daí a impossibilidade de uma taxonomia, pois a tentativa de designação fixa de ‘bilinguismo” está sempre em processo de deslizamento e de produção de outros sentidos, não controlados pelo sujeito.

A categoria Pygmalion: o discurso institucional e a legitimação vincula-se ao discurso institucional, especificamente às representações imaginárias que sustentam os dizeres dos sujeitos sobre a escola, sobre seus alunos e sobre sua própria identidade profissional. A designação “Pygmalion” refere-se a uma dupla alusão: 1) ao personagem da mitologia grega Pigmaleão, que se apaixonou pela estátua que ele mesmo havia esculpido na busca pela imagem de uma mulher ideal; 2) à peça Pygmalion, escrita por George Bernard Shaw em 1912 e que retrata a trajetória do professor de fonética Henry Higgins em seu trabalho obcecado de treinamento linguístico da florista Eliza Doolittle, consumando seu desejo de transformação da imagem da moça simples em uma imagem de duquesa, de fala “impecável”, ou se a, fala a ustada aos moldes do que era considerado padrão pela alta sociedade britânica da época. Tanto o Pigmaleão da mitologia grega quanto o Professor Higgins da literatura britânica do início do século XX são movidos pelo desejo de alcançar um ideal e constroem esse ideal para si: a mulher estátua tão venerada por Pigmaleão que é transformada em mulher de carne e osso por comiseração de Afrodite; e a florista Eliza Doolittle, cu a fala “esculpida”, “lapidada” pelo Professor Higgins até chegar ao seu ideal. A dupla alusão a Pygmalion na designação da categoria de análise constitui uma imagem que se aproxima muito do funcionamento do discurso institucional que atravessa o dizer dos sujeitos professores e coordenadores das escolas bilíngues: as representações imaginárias da escola bilíngue, dos alunos e das identidades profissionais são construídas em espaços de legitimação de um ideal – práticas de ensino ideais, sujeitos ideais –,

mas um ideal construído pela própria instituição e posteriormente venerado por ela (assim como a estátua esculpida por Pigmaleão e como a “nova” Doolittle).

A categoria Currículo e sujeito: recorte e organização de saberes vincula- se ao discurso político-educacional, especificamente a um lugar de recorte e organização de conhecimentos sobre a língua, sobre o ensino e sobre os sujeitos. Para a análise empreendida nesta categoria, interpretamos o currículo como um “instrumento linguístico” (AUROUX, 1992). Embora Auroux trate apenas da gramática e do dicionário como instrumentos linguísticos, acreditamos que o currículo também possa ser incluído nessa teorização. Os instrumentos linguísticos, segundo Auroux (1992), ao descreverem e instrumentalizarem a língua, dão-lhe uma forma, interpretam-na, organizam-na. Tal instrumentalização não recai apenas sobre a língua, mas também sobre a relação sujeito-língua. Assim, podemos pensar o currículo como um instrumento linguístico que dá forma para as línguas, produzindo efeitos na relação entre as línguas na relação língua-sujeito. Essa interpretação teórica serviu de base para analisar os dizeres dos sujeitos sobre o currículo das escolas bilíngues pesquisadas.

Tendo apresentado as etapas da configuração do arquivo, as normas para transcrição das entrevistas, as limitações do corpus e as categorias de análise organizadas nos capítulos que constituem a Parte II desta tese, caminhemos para a sua leitura, a fim de compreender os sentidos do currículo da escola bilíngue português-inglês que emergem no discurso profissional.

CAPÍTULO 4

BILINGUISMO: O DISCURSO CIENTÍFICO E A TAXONOMIA DO IMPOSSÍVEL

A ordem é ao mesmo tempo aquilo que se oferece nas coisas como sua lei interior, a rede secreta segundo a qual elas se olham de algum modo umas às outras e aquilo que só existe através do crivo de um olhar, de uma atenção, de uma linguagem; e é somente nas casas brancas desse quadriculado que ela se manifesta em profundidade como já presente, esperando em silêncio o momento de ser enunciada. (FOUCAULT, [1966] 1999, p. XVI)

No prefácio a As palavras e as coisas, Foucault analisa o texto de Borges que o inspirou, descrevendo as classificações organizadas por uma taxonomia de “uma certa enciclop dia chinesa” que coloca em funcionamento um lugar impossível através da linguagem. Mas, como afirma Foucault ([1966] 1999, p. XI), “o impossível não é a vizinhança das coisas, é o lugar mesmo onde elas poderiam avizinhar-se”, e tal impossibilidade de pensamento não se estabiliza nem se fixa na linguagem, pois é apenas organizado por ela, segundo determinada ordem, sempre passível de novos lugares impensáveis – novos impossíveis.

O “absurdo” da taxonomia criada por Borges e retomada na bela análise de Foucault não está longe de qualquer outro processo de classificação pela linguagem. Entre as palavras e as coisas, figuram os recortes do real, sempre contingentes e sujeitos às falhas da incompletude dos sistemas de representação produzidos pelo discurso científico da linguística para funcionar como objetos reais e não como objetos de conhecimento (HENRY, [1977] 1992), como analisamos no capítulo 1.

Partimos dessa reflexão de Foucault para designar uma das categorias de análise de nosso corpus de pesquisa, compreendendo o bilinguismo como um conceito da linguística e, portanto, um lugar legitimado de produção de saberes sobre as línguas e sobre os sujeitos, classificando-os e qualificando-os nos limites entre possibilidades e impossibilidades de determinados falares e fazeres.

Tendo em vista discussão, desenvolvida mais longamente no capítulo 1, procuraremos compreender neste capítulo como os dizeres dos sujeitos de pesquisa, na posição de professores e coordenadores das escolas bilíngues, estão perpassados por essa taxonomia do impossível evocada pelo significante “bilinguismo”, tendo em vista as condições de produção especificas nas quais se produzem tais dizeres. Para abordar esse funcionamento discursivo, delineamos

quatro momentos de nossa leitura do arquivo: o bilinguismo entre sentidos ontológicos e institucionais; sentidos de bilinguismo como efeitos de um processo parafrástico; sentidos de ensino bilíngue entre tautologias e espaços de equívoco; o bilíngue como máquina lógica.

4.1 O BILINGUISMO ENTRE SENTIDOS ONTOLÓGICOS E INSTITUCIONAIS

A maioria das definições e conceituações de bilinguismo que emergiram no dizer dos sujeitos nas posições de coordenadores e professores foram produzidas como respostas à pergunta 1 do roteiro de entrevistas, em que havia uma demanda explícita a tais definições: A partir da sua experiência, como você define bilinguismo?

Veremos que o dizer desses sujeitos constitui-se de conceituações produzidas por um lugar de sentidos ontológicos estabelecidos pela linguística – o que poderíamos sintetizar, parafrasticamente, nos enunciados “o bilinguismo”, “o bilíngue” – e, ao mesmo tempo, conceituações que demarcam um funcionamento discursivo de legitimação de um fazer/saber vinculado a discursividades de construção de uma identidade institucional – o que poderíamos sintetizar, parafrasticamente, nos enunciados “o nosso aluno bilíngue”, “o bilinguismo na

nossa escola” – produzida por um imaginário de unidade em termos de valores, missões, princípios, métodos, conceitos, etc194.

Nas sequências discursivas 1, 2 e 3 a seguir, esse parece ser o funcionamento discursivo predominante.

1_SC_1_A: é tem o bilinguismo que a gente pode definir DENTRO da escola... que::.. diz respeito:: uhn/ao ENSINO que a gente pode proporcionar aos alunos AQUI... e tem também o bilinguismo que EU vivi como pessoa então na fami::lia:: uhn/ em relação aos meus pais que são belgas então eu sempre convivi com muitas línguas na minha família... então tem essa questão de:: de você se sentir mais à vontade falando certas palavras em uma língua ou outra então é algo muito NATURAL e cultural e de convivência mesmo... e é isso que a gente TENTA uhn... promover aqui dentro da escola porque eu sinto que o quanto... mais DADOS ou mais conforto você dá em relação ao ensino da língua e você cria essa cultura

194 Embora tal funcionamento apareça, em certa medida, nas definições de bilinguismo que emergem nos dizeres dos sujeitos, abordaremos esse processo discursivo marcadamente institucional detalhadamente na segunda categoria de análise do corpus.

esse GOSTO por falar uma outra língua de USAR um vocabulário diferente de se EXPRESSAR e de se relacionar de um modo uhn/ único... é o que motiva as crianças a/ a quererem aprender então não é só a/ a língua em SI que/ que:: é o foco do bilinguismo né? é claro que é um instrumento muito importante pra você... ter uma CARREIRA pra você conhecer mais gente pra você viajar... que muitas vezes é o foco número um dos pais aqui é/ é poder viajar especialmente pros Estados Unidos (que está) sempre em alta... mas é... você TER um:::: um outro jeito de se comunicar eu acho que o bilinguismo é isso eu acho que quando você tem só uma língua fica mais difícil você conhecer mais gente se comunicar... e ter mais coragem de enfrentar:::: uhn::... outros::::... outros desafios... acho que abre possibilidades acho que te dá mais confiança

2_SC_1_B: ah:::: para mim... o bilinguismo é::: eu vou falar partindo de criança porque ele pode acontecer também na vida adulta né? uma pessoa pode se tornar bilíngue depois eh da/ na/ na idade adulta mas é... desenvolver na criança a habilidade de usar outra língua efetivamente... isto é na vida real né?... não é aprender uma estrutura eh::: frases pré- fabricadas mas é desenvolver a habilidade de usar uma outra língua na vida... de verdade ((rindo))

3_SC_2_C: então eh::: eu acho bastante difícil eh::: se/ eh pensar BILINGUISMO como eu sou educadora então eu penso educação bilíngue... eu mudo um pouquinho esse termo... bilinguismo para mim parece muito mais a pessoa SER... né? a pessoa que é bilíngue está dentro de um contexto bilíngue então ela tem pai ou mãe que é de outro lugar e daí ela... INTERAGE na vidinha dela separado da escola... quando eu penso bilinguismo e quando eu penso a minha INSERÇÃO dentro da educação eu penso a educação bilíngue... e já aí é INTENCIONAL PROPOSITAL e:::: ORGANIZADA de uma forma a PROPORCIONAR um contexto bilíngue... para uma criança para um adulto para uma situação para um estudante

Os sentidos em torno da definição de bilinguismo são construídos por um imaginário sobre a prática de ensino na escola bilíngue, que constitui, no dizer dos su eitos, um lugar em que o bilinguismo promovido para propiciar algo “al m da língua” aos aprendizes mais oportunidades de comunicação (sequência 1); o desenvolvimento da habilidade de uso da língua de modo efetivo (sequência 2); a vivência em um contexto bilíngue (sequência 3).

Na sequência discursiva 4 a seguir, a qualificação “bilíngue” atribuída aos sujeitos segundo as quatro habilidades linguísticas pressupostas e difundidas pela

abordagem comunicativa na década de 1970195: compreensão, fala, leitura e escrita.

A conceitualização de bilinguismo desliza para a conceitualização de sujeito bilíngue, circunscrita pelas quatro habilidades linguísticas referidas pelos sintagmas “falar”, “entender”, “escrever” e ler”

4_SC_2_A: pois … bilinguismo uma coisa bastante VAGA... então tem pessoas que falam que são bilíngues porque elas FALAM uma segunda língua... outras pessoas porque elas ENTENDEM uma segunda língua... outras porque elas ESCREVEM outras porque elas LEEM... então assim BILINGUISMO é uma palavra bastante ampla... né? existem pessoas que:: que entendem uma segunda língua... tramitam nela de uma maneira bastante EFICAZ mas elas não se comunicam muito na fala... elas não tem uma FALA maravilhosa... mas elas podem ser consideradas bilíngues... às vezes até são RESIDENTES de um outro país e são originalmente de um OUTRO país... então essa coisa de chamar de BILÍNGUE é uma palavra bastante... ampla... e na literatura você vai achar vários tipos de bilíngues... né?

O dizer do sujeito-coordenador aparece atravessado por sentidos do discurso científico que, como vimos no capítulo 1, oscilam entre definições ontológicas, marcadas por um movimento de homogeneização de sentidos, e, ao mesmo tempo, pela emergência de conceitos discordantes por meio de processos de ressignificação de sentidos de bilinguismo. Assim, em [4_SC_2_A], os significantes “vaga” e “ampla” deslocam a estabilidade do sentido de um conceito ontológico de bilinguismo e evocam uma pluralidade de sentidos possíveis para o sujeito bilíngue. Ainda assim, o dizer está circunscrito a possibilidades de sentido do discurso científico a partir das especificidades das “quatro habilidades” e das definições legitimadas pela literatura sobre bilinguismo.

Na sequência 5, o significante “bilinguismo” tamb m desestabilizado no/pelo dizer do sujeito-coordenador. Vejamos a seguir:

5_SC_2_B: bilinguismo? primeiro assim... bilinguismo eh::: para mim está relacionado à identidade tá?... está relacionado ao seu eu quem eu sou né?... quando você fala de bilinguismo você não separa as duas línguas né?... na verdade/ uhn::: na verdade a gente/ né? utilizar o termo BI né? esse BI na verdade se torna uma coisa só né? porque é uma

coisa só... né?... eu não consigo ser uma hora a Nadir196 brasileira e uma hora a Nadir que

transita numa cultura americana... ÀS VEZES eu/ eh::: é/ é/ é tão natural e espontâneo começar a falar inglês ou... uma IDEIA chega para mim em inglês primeiro apesar de eu estar falando português... então eu estou pensando em inglês e falando em português... sabe? é uma coisa meio eh::: é uma coisa só né? e/ e/ e isso foi muito gratificante para mim poder estudar um pouquinho sobre Jim Cummins né? então quando você fala sobre underlying proficiency... você se/ fala puxa vida eu não sou anormal né?... na verdade eu não sou dois monolíngues né?... dentro de uma pessoa... eu sou uma pessoa só... que ORA eu... né? eu vou buscar eu vou né? utilizar como recurso uma língua porque é mais INTERESSANTE para mim... e outra... a OUTRA língua né?... então é/ é uma coisa assim... é maravilhoso... é maravilhoso... e você entender isso é/ é/ é mais gratificante ainda né? porque quando você estuda você começa a perceber né? como é o funcionamento né? do bilíngue né?

A conceitualização de bilinguismo desliza para a conceitualização de sujeito bilíngue pelo significante “identidade” e, em seguida, desliza novamente para a negação da separação entre as línguas provocada pelo prefixo “bi”. A negação do “bi”, entretanto, aparece circunscrita ao imaginário de unidade de identidade nacional (brasileira e americana) e às unidades das línguas (português e inglês), como destacamos abaixo:

“esse BI na verdade se torna uma coisa só né? porque é uma coisa só... né?... eu não consigo ser uma hora a Nadir brasileira e uma hora a Nadir que transita numa cultura americana... ÀS VEZES eu/ eh::: é/ é/ é tão natural e espontâneo começar a falar inglês ou... uma IDEIA chega para mim em inglês primeiro apesar de eu estar falando português... então eu estou pensando em inglês e falando em português... sabe? é uma coisa meio eh::: é uma coisa só né?” (5_SC_2_B)

Ao mesmo tempo, ao enunciar “isso foi muito gratificante para mim poder estudar um pouquinho sobre Jim Cummins né? então quando você fala sobre underlying proficiency... você se/ fala puxa vida eu não sou anormal né?”, o sujeito- coordenador mostra-se identificado ao discurso científico legitimador das definições de bilinguismo e de sujeito bilíngue, mais especificamente ao conceito de “underlying proficiency” [“proficiência sub acente”] proposto por J. Cummins e M. Swain no artigo

196 Os nomes dos sujeitos que participaram da pesquisa foram substituídos por nomes fictícios (cf.: Tabela 9) fim de manter suas identidades em sigilo, de acordo com o Termo de consentimento livre e esclarecido (Apêndice E).

Linguistic interdependence: a central principle of bilingual education ([1986] 1992a). O conceito de “CUP” (Common Underlying Proficiency) [“proficiência sub acente comum) proposto por Cummins e Swain ([1986] 1992a) é estabelecido em contraste com o que eles denominam “SUP” (Separate Underlying Proficiency) [“proficiência sub acente separada”]. Enquanto a SUP está relacionada a concepções de educação bilíngue que os autores atribuem ao “senso comum” – em que as proficiências na L1 e na L2 são vistas separadamente –, o modelo CUP concebe os aspectos relacionados à proficiência bilíngue como comuns ou interdependentes entre as línguas (L1 e L2)197. A representação do “iceberg duplo” (Figura 1) é utilizada por Cummins e Swain ([1986] 1992a, p. 83) para ilustrar o funcionamento do modelo CUP:

Figura 1: A representação do “iceberg duplo” da proficiência bilíngue (CUMMINS; SWAIN ([1986] 1992a, p. 83).

É importante ressaltar que a teorização de Cummins e Swain ([1986] 1992a) surge nos EUA no contexto de grandes polêmicas que giravam em torno do ensino das línguas “minoritárias” dos imigrantes nas escolas estadunidenses, pois se acreditava que o ensino dessas línguas poderia “pre udicar” a aprendizagem da língua inglesa e de outros conteúdos curriculares estabelecidos pelas políticas de ensino da época. Os pesquisadores se dedicaram especialmente ao estudo dos

197

“[…] we must posit a CUP model in which the literacy-related aspects of a bilingual’s proficiency in L1 and L2 are seen as common or interdependent across languages.” (CUMMINS; SWAIN, [1986] 1992a, p. 82).

programas bilíngues ucraniano-inglês, punjabi-inglês e espanhol-inglês, defendendo uma educação bilíngue que priorizasse a máxima exposição dos aprendizes a um insumo acadêmico compreensível nas línguas em questão (e não simplesmente a máxima exposição às línguas). Embora se constitua nessas condições de produção específicas, a pesquisa de Cummins e Swain ([1986] 1992a) propõe uma teorização baseada em princípios de funcionamento cognitivo do sujeito bilíngue – constituído, assim, ontologicamente nessa teorização – em sua relação com a abordagem de ensino adotada, com a exposição às línguas e com a motivação do sujeito para aprender:

Na medida em que a instrução na Lx seja eficaz na promoção da proficiência em Lx, a transferência desta competência para Ly ocorrerá desde que haja exposição suficiente à Ly (seja na escola ou no ambiente) e motivação adequada para aprender a Ly. (CUMMINS; SWAIN ([1986] 1992a, p. 87, tradução nossa198).

A equação elaborada pela teorização dos pesquisadores está recoberta pelo efeito de evidência dos significantes “proficiência”, “transferência”, “exposição suficiente” e “motivação adequada”, produzindo sentidos de generalização do funcionamento do sujeito bilíngue em seu contato com as línguas. Embora reforcem constantemente em seus textos que sua pesquisa está limitada por diversos fatores, os autores não têm controle sobre a interpelação ideológica imposta pelo recorte da discursividade científica que sustenta sua teorização. Tal interpelação produz o efeito de evidência de estabilidade do funcionamento do sujeito bilíngue, noção que emerge no dizer do sujeito-coordenador (sequência 5) ao enunciar

“quando você estuda você começa a perceber né? como é o funcionamento né? do bilíngue né?” (5_SC_2_B)

Assim, a teorização linguístico-cognitiva do “bilíngue” de Cummins e Swain ([1986] 1992a) é apagada como construto discursivo e emerge como uma verdade generalizável e unívoca, dissociada do sistema de representações que a criou199.

198 To the extent that instruction in Lx is effective in promoting proficiency in Lx, transfer of this proficiency to Ly will occur provided there is adequate exposure to Ly (either in school or environment) and adequate motivation to learn Ly. (CUMMINS; SWAIN ([1986] 1992a, p. 87).

199

Temos aqui um processo discursivo que Orlandi (2001b) denominou “transporte de processos de significação”, em oposição à “transferência de processos de significação”. O transporte implica um apagamento das marcas do espaço de enunciação específico em que os sentidos foram produzidos – são “transportados” para outro espaço de enunciação. Discutiremos esse conceito mais detalhadamente em uma análise na seção 6.3 (capítulo 6).

A instabilidade do significante “bilinguismo” emerge tamb m na sequência 6, em que o gesto de definição aparece circunscrito a uma “condição” e a uma nova taxonomia marcada pela distinção entre “língua” e “idioma”.

6_SC_1_C: bom... eh:::::... eu penso em BILINGUISMO uhn:::: como::: a:::: a condição que o ser humano tem de::: de falar mais de um:::: idioma e quando eu penso idioma ou em língua vou preferir até falar em língua porque uhn::::: às vezes a gente não tem o/ vamos dizer exatamente um IDIOMA mas você tem várias línguas que a pessoa... circula... né? e::::: e aí eu considero que essa... vivência em duas culturas em dois mundos diferentes já trazem uma condição de um ser bilíngue... né?... embora a gente saiba que hoje em/ que/ quer dizer/ que o bilinguismo é BASTANTE relacionado ao/ o/ uhn::: conhecimento de dois

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