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4 O Direito à Assistência Farmacêutica na experiência do Supremo Tribunal Federal

4.2 A jurisprudência do STF sobre assistência farmacêutica

4.2.2 A segunda fase: o reconhecimento do direito independentemente de política pública específica e o debate de questões próprias à assistência farmacêutica

4.2.2.1 O custeio de despesas com transporte para tratamento terapêutico

No primeiro caso, o Ministro Carlos Velloso havia monocraticamente negado seguimento a agravo de instrumento do Estado do Rio de Janeiro, interposto com vistas a obter o processamento do seu recurso extraordinário. O Estado recorreu e o caso foi a julgamento colegiado, que estou assim ementado:

EMENTA: CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. MEDICAMENTOS: FORNECIMENTO A PACIENTES CARENTES: OBRIGAÇÃO DO ESTADO. I. – Paciente carente de recursos indispensáveis à aquisição dos medicamentos de que necessita: obrigação do Estado em fornecê-los. Precedentes. II. – Agravo não provido207.

A simples leitura do acórdão pode levar a crer que o caso concreto possuía as mesmas circunstâncias fáticas e nenhuma peculiaridade em relação aos precedentes do Tribunal nessa matéria, mas o caso apresentou características distintivas.

Na origem, a autora, menor representada por sua genitora e assistida pela Defensoria Pública, moveu ação ordinária, com pedido de antecipação da tutela, contra o Estado do Rio de Janeiro. Conforme a sentença de primeiro grau, a parte alegou:

Ser portadora de hepatite crônica e colangite esclerosante, estando sendo acompanhada no Instituto da Criança (USP), no ambulatório de transplante hepático, necessitando de viagens freqüentes a São Paulo. Que apresenta cinitose, sendo recomendado que viaje de avião, sob pena de risco de vida. Que necessita dos remédios descritos na inicial (...) que os medicamentos têm preços extremamente onerosos208.

A antecipação da tutela foi deferida parcialmente apenas quanto aos medicamentos. O Magistrado reservou-se para apreciar o pedido de custeio de passagens aéreas depois da contestação do Estado. Apresentada a contestação, o Juiz considerou que o Estado não argumentou no sentido de desconstituir o suposto direito ao tratamento específico, alegando apenas limites orçamentários para não fornecer o medicamento. Por outro lado, a contestação teria sido omissa quanto ao pedido de custeio de passagens aéreas.

Sobre o argumento das limitações fáticas, a sentença consignou que “não cabe a este Juízo julgar se o administrador é mágico ou não, se inventa dinheiro ou não, cabendo, apenas, a este Juízo reconhecer o direito fundamental da autora, menor impúbere, à saúde”.

207 AgR no AIRE nº 486.816/RJ, Relator Ministro Carlos Velloso, Segunda Turma. Julgamento: 12.04.2005. Publicação: 06.05.2005.

Quanto aos custos de deslocamento da requerente e de sua genitora para tratamento em outra cidade, a sentença concluiu pela pertinência do pedido, pois o Estado do Rio de Janeiro não teria demonstrado que o tratamento realizado possui similar na cidade de residência da autora.

Trata-se de demanda bastante incomum, pois, diferente do que ocorre em geral nas ações judiciais pela assistência farmacêutica, a parte não requereu ao Estado do Rio de Janeiro que passasse a lhe oferecer o tratamento que não fornecia. Optou-se por prosseguir num tratamento em outro estado, onerando duplamente o sistema único de saúde, com o tratamento em si e com as despesas de deslocamento do paciente e do seu acompanhante.

Não se comprovou nos autos que o Estado de residência da autora não possibilitava o tratamento, a autora não provou ter sido o tratamento solicitado e recusado pela rede de saúde local e o Estado não provou possuir os meios necessários para fazê-lo. Ademais, nenhum dos envolvidos no processo (Juiz, partes e Ministério Público) contribuiu para debater com clareza a principal questão relativa à assistência farmacêutica: a necessidade da prestação solicitada. O Juiz de primeiro grau, conforme o referido na petição inicial, considerou ser a requerente portadora de uma doença (colangite esclerosante), o Tribunal de Justiça afirmou ser ela portadora de HIV e o Estado do Rio de Janeiro alegou que “não houve demonstração da doença nem da necessidade dos remédios”.

A ausência de diálogo entre os atores da demanda judicial pode ser apontada como um problema. Sem debater com clareza a necessidade do medicamento sob o viés da racionalidade da assistência farmacêutica, a ação judicial torna-se um mero formalismo, onde sempre se repetem genericamente os mesmos argumentos: ausência de recursos públicos e normas programáticas versus efetividade imediata dos direitos constitucionais à vida, à saúde e à assistência farmacêutica. Teses que se rechaçam mútua e aprioristicamente.

A necessidade de apreciação do caso concreto na sua inteireza e a relevância da instrução das demandas judiciais pela assistência farmacêutica é apontada pelo Professor Gilmar Mendes:

Em todo caso, é imprescindível que haja instrução processual, com ampla produção de provas, o que poderá configurar-se como um obstáculo à concessão de medidas cautelares. Assim, independentemente da hipótese levada à consideração do Poder Judiciário, há a necessidade de adequada instrução das demandas de saúde, para que não ocorra a produção padronizada de iniciais, contestações e sentenças, peças processuais que, muitas vezes, não contemplam as especificidades do caso concreto (...)209.

Retornando ao julgamento do caso pelo STF, o Estado do Rio de Janeiro sustentou, em sede de agravo regimental, que não haveria precedentes da Corte que amparassem a sua condenação ao pagamento de passagens aéreas para tratamento de doença em outro Estado da Federação. Sobre essa questão, o acórdão evitou manifestar-se sob o fundamento de que o recorrente não teria argüido a sua irresignação no momento oportuno.

O colegiado negou provimento ao agravo regimental e confirmou a inadmissão do recurso extraordinário por suposto vício formal, pois “para apreciação da questão constitucional invocada no RE, ter-se-ia, no caso, que examinar matéria fática, o que não é possível em recurso extraordinário (Súmula 279)”. A rejeição do recurso foi também justificada porque, “ao contrário do alegado pelo recorrente, o acórdão recorrido deu correta aplicação ao art. 196 da Constituição, ao asseverar o caráter geral, amplo e irrestrito do acesso à saúde”.

Sobre a aplicação da Súmula nº 279 aos casos que envolvem o direito à assistência farmacêutica, na linha do entendimento aqui já manifestado (v. nota de rodapé nº 185), esse caso concreto demonstra como era importante ao Tribunal examinar a prova dos autos no sentido de proferir julgamento especificamente sobre cada um dos dois pedidos contidos na petição inicial (custeio do tratamento e de despesas com passagens aéreas).

A resolução de casos concretos por meio de defeitos formais e de referências genéricas a precedentes que teriam decidido questões supostamente idênticas revela, ao que parece, postura que não contribui para o aperfeiçoamento da prestação jurisdicional nesse campo.

4.2.2.2 A possibilidade de bloqueio e sequestro de verbas públicas para cumprimento