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Reexame de provas pelo STF em matéria de assistência farmacêutica

4 O Direito à Assistência Farmacêutica na experiência do Supremo Tribunal Federal

4.2 A jurisprudência do STF sobre assistência farmacêutica

4.2.2 A segunda fase: o reconhecimento do direito independentemente de política pública específica e o debate de questões próprias à assistência farmacêutica

4.2.2.3 Reexame de provas pelo STF em matéria de assistência farmacêutica

Como já salientado, o STF possui julgado colegiado que, aplicando a Súmula nº 279, rejeitou o reexame de provas por intermédio de RE também nas matérias que envolvem a assistência farmacêutica222. De outra parte, indicou-se no presente trabalho que esse tipo de restrição ao exame de provas pela Corte Constitucional não se coaduna com a essência do direito à assistência farmacêutica, cuja pertinência dependerá invariavelmente das circunstâncias envoltas no caso concreto.

Ocorre que, no julgamento do RE nº 393.175/RS, o Ministro relator, e depois a Segunda Turma, aceitaram reexaminar a prova existente nos autos, contrariando a jurisprudência do próprio STF223.

De todos os casos analisados nesta dissertação, esse se destaca como o único em que os recorrentes foram particulares e recorrido foi o Poder Público.

No caso concreto, dois irmãos pleitearam judicialmente medicamentos para tratamento de esquizofrenia paranóide e doença maníaco-depressiva, amparando as suas pretensões na já referida Lei gaúcha sobre medicamentos excepcionais (Lei nº 9.908/1993). A antecipação de tutela foi deferida e o Estado contestou a demanda apenas processualmente, alegando que não havia se recusado administrativamente a fornecer os tratamentos. A

221 CPC, Art. 557. “O relator negará seguimento a recurso manifestamente inadmissível, improcedente, prejudicado ou em confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior. § 1o-A. Se a decisão recorrida estiver em manifesto confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior, o relator poderá dar provimento ao recurso”.

222 Confira-se o acórdão que julgou o AgR no AIRE nº 486.816/RJ, Relator Ministro Carlos Velloso, Segunda Turma. Julgamento: 12.04.2005. Publicação: 06.05.2005.

223 AgR no RE nº 393.175/RS, Relator Ministro Celso de Mello, Segunda Turma. Julgamento: 12.12.2006. Publicação: 02.02.2007.

sentença confirmou a medida liminar e julgou procedente a ação. O Estado apelou sustentando apenas que, de sua parte, inexistia resistência em relação à pretensão de direito material, pelo que não haveria interesse de agir dos autores.

O TJ/RS, negou provimento à apelação do Estado. Ainda assim, reformou-se a sentença em reexame necessário. Considerou-se que, para concessão de medicamentos excepcionais, a Lei estadual exigia prova do risco de vida, o que não teria sido provado pelos autores. Eis trecho o voto do relator, Desembargador Araken de Assis, que foi acompanhado pelos seus pares:

(...) o art. 1º, da Lei 9.908/93 estipula: O Estado deve fornecer, de forma gratuita, medicamentos excepcionais (...). Parágrafo único – consideram-se medicamentos excepcionais aqueles que devem ser usados com freqüência e de forma permanente, sendo indispensáveis à vida do paciente. A lei é clara ao mencionar “medicamentos excepcionais”. “Excepcional”, é aquilo que constitui exceção, ou seja, o que não é comum. No caso, os apelados não se desincumbiram do ônus de provar serem os medicamentos excepcionais e, portanto, indispensáveis à sobrevivência. Assim, não há prova de perigo de vida iminente a justificar a imposição do fornecimento dos medicamentos Zyprexa, Topamax, e Clozapina (Neponex). Vale assinalar, que o Estado não pode, de forma indiscriminada, fornecer todo e qualquer tipo de medicamento solicitado. Há de ser feita uma triagem rigorosa, neste sentido, a fim de que possamos determinar o que realmente é medicamento excepcional indispensável à vida224.

O acórdão concluiu pela “falta de prova idônea quanto ao risco de vida”. Os demandantes, então, interpuseram recurso extraordinário. Nesse contexto, a decisão do TJ/RS possui dois pontos relevantes: 1) assenta a matéria de prova num sentido que desautoriza a pretensão dos demandantes; e 2) valora a prova dos autos em face da legislação infraconstitucional do Rio Grande do Sul.

Diante disso, o STF, a rigor da sua jurisprudência, teria duas objeções ao conhecimento do recurso: a impossibilidade de reexame de matéria fática em sede de RE (súmula 279) e a ausência de debate de matéria constitucional pelo acórdão recorrido, com a possibilidade de ofensa apenas reflexa ao texto constitucional.

Tudo, portanto, levaria a crer que o STF sequer conheceria do mérito do recurso. Mas não foi o que ocorreu. O acórdão reexaminou provas e debateu a questão sob o ponto de vista constitucional para, ao final, dar provimento ao RE e revigorar a sentença de primeiro grau, que havia deferido a pretensão pelos medicamentos. Confiram-se trechos da decisão monocrática do relator, que depois teve os seus termos confirmados pela Segunda Turma:

Entendo assistir plena razão aos recorrentes, que são irmãos, pois o desacolhimento de sua pretensão recursal poderá gerar resultado inaceitável sob a perspectiva constitucional do direito à vida e à saúde. É que – considerada a irreversibilidade, no

224 TJ/RS. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Apelação Cível e reexame necessário nº 70004422614/2002. Julgado em 26.06.2002.

momento presente, dos efeitos danosos provocados pelas patologias que afetam os recorrentes (que são portadores de esquizofrenia paranóide e de doença maníaco- depressiva crônica) – a ausência de capacidade financeira que os aflige impede-lhes, injustamente, o acesso ao tratamento inadiável e ao fornecimento dos medicamentos a que têm direito e que se revelam essenciais à preservação da integridade do seu estado de higidez mental e de sua própria vida, porque os seus antecedentes pessoais registram episódios de tentativa de suicídio. (...) Todas essas razões levam-me a acolher a pretensão recursal deduzida nos presentes autos, ainda mais se se considerar que o acórdão ora recorrido diverge, frontalmente, da orientação jurisprudencial que o Supremo Tribunal Federal firmou no exame da matéria em causa225.

Percebe-se que a decisão agrega elementos fáticos que sequer haviam sido mencionados no acórdão recorrido. Quanto à situação clínica dos recorrentes, refere-se a supostos episódios de tentativa de suicídio e afirma-se “a irreversibilidade, no momento presente, dos efeitos danosos provocados pelas patologias que afetam os recorrentes”226.

Por outro lado, a decisão não aborda a questão central suscitada pelo acórdão de origem, de que a ausência de risco de vida afastaria a obrigação do Estado de fornecer os medicamentos. Sobre isso, talvez o Tribunal pudesse ter manifestado o seu entendimento sobre os fundamentos e objetivos da assistência farmacêutica, que se volta não apenas a evitar o perecimento da vida, mas também para contribuir à vida digna.

O ponto mais relevante do julgado, em síntese, é que o STF não aplicou a súmula nº 279 e claramente procedeu ao reexame do contexto fático-probatório, ainda que não tenha expressamente afirmado tê-lo feito. Esse foi um caso singular, que mereceu exame mais detido da Corte, o que se coaduna com o pressuposto, adotado na presente dissertação, de que as particularidades do caso concreto são fundamentais para o direito à assistência farmacêutica.

A decisão, no seu âmago, parece ter sido acertada, porém a Corte poderia ter explicitado com maior clareza que efetivamente estava a reexaminar fatos e provas, bem como que tal providência é fundamental quando se está a analisar casos concretos relativos à assistência farmacêutica.

Esse caso, o único de todos os aqui analisados que teve particulares como recorrentes e o Estado como Recorrido, teve, afinal, resultado semelhante a todos demais: o STF reconheceu a pretensão individual por acesso gratuito a medicamentos. Em nenhum desses trinta casos aqui analisados houve desfecho desfavorável aos usuários do SUS.

225 idem. 226 idem.

É de se especular se em casos futuros o Tribunal será capaz de reexaminar fatos e provas para, constatando a ausência de necessidade do medicamento para a saúde da pessoa, reconhecer a improcedência de demandas pela assistência farmacêutica.

4.2.2.4 A repercussão geral da controvérsia sobre o fornecimento de medicamentos