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CAPÍTULO 2 EPIMÉLEIA HEAUTOU NO ALCIBÍADES

2.3 Prosopografia

2.3.2 Atmosfera dramática

2.3.2.1 O daimon e o éros socrático

Se não há detalhes sobre o ambiente físico do encontro, há vários indícios sobre as condições historiográficas e psicológicas das personagens que permitem, ao leitor, acompanhar o ritmo do texto. O retrato histórico de Alcibíades já foi delineado. A paisagem social também,

99 NEPOS, Cornelius. Three Lives: Alcibiades, Dion and Atticus. Bristol: Bristol Classical Press, 1987. p. 15. 100

PLATÃO. Symphosium. Arckhaia Ellenike Grammateia. Atenas: Kactus Editions Odysseas Hatzopoulos & Co., 1993. (Oxford Classical Texts). 217 a - 219 c. Neste diálogo, Alcibíades já estaria mais velho, em torno de 35 anos, em plena atividade política. Sobre a presença de Alcibíades nos diálogos platônicos, ver PRADEAU, J.-F. Présentation. In: PLATON. Alcibiade. Traduction inédited par Chantal Marboeuf et J-F. Pradeau, Paris: Flammarion, 2000. p. 19. O Alcibíades Segundo é considerado um diálogo apócrifo.

101 Cronologia dramática conforme PRADEAU, J.-F. Présentation. In: PLATON. Alcibiade. Traduction inédited par

como visto no Capítulo 1, é conhecida dos diálogos de Platão: um jovem da elite com pretensões políticas busca o conselho de Sócrates sobre como proceder para adentrar a vida pública. No

Alcibíades, porém, ocorre uma inversão de papéis. É Sócrates quem se dirige ao jovem,

oferecendo seu auxílio, após tê-lo seguido misteriosamente em silêncio por toda parte, por algum tempo.

Sócrates tem uma explicação para ter passado tanto tempo seguindo Alcibíades, apenas observando-o, sem lhe dirigir a palavra. A causa disso, diz ele, “não é humana, mas daimoníaca” (ouk anthrópeinon allá ti daimónion enantíoma, 103 a), uma espécie de força divina que o impedia de agir, a despeito de sua vontade.

O daimon é personagem conhecido dos chamados “diálogos socráticos” de Platão102, e atua como “sinal” (daimonium semeioni, 103 a), uma espécie de vetor moral, voz interior que orienta a conduta de Sócrates por meio da interdição. Quando se manifesta, Sócrates deve abster- se de seguir o seu intento, mesmo que o deseje. Portanto, é a “voz” do daimon – fazendo-se entender em Sócrates como silêncio aprovador – que inicia de fato o diálogo.

Há muito, Sócrates quer dirigir-se a Alcibíades; e este é o momento, é a hora determinada por esta entidade intermediária entre deuses e homens, para abordar quem também se encontra em um interlúdio: Alcibíades está deixando a adolescência e passando à idade adulta, concluiu o processo convencional de educação e quer participar da vida política. “Porque tal impedimento (do daimon) cessou”, explica Sócrates, “aproximo-te de ti, com a esperança de que daqui por diante não mais se manifeste” (103 a).

102

A palavra grega daimon não tem a conotação negativa atribuída ao seu correlato moderno demônio. Na Antiguidade, desde Homero, daimonoi eram designados semideuses que mantinham relações privilegiadas com os deuses, e de quem, em última instância, dependiam os destinos humanos. O daimon socrático, cuja orientação é intimamente percebida e absolutamente obedecida por Sócrates, é descrito por Platão em vários textos, entre eles, Apologie (31 c-d), Phédre (242 b), Politeia (620 d). Sobre a noção de figura intermediária entre o Olimpo e os mortais, ver Symphosium 202 d-203. O texto do Symphosium ainda ajuda a esclarecer sobre o amor (éros) que desde cedo une Sócrates e Alcibíades. Segundo PRADEAU, J.-F. Présentation. In: PLATON. Alcibiade. Traduction inédited par Chantal Marboeuf et J-F. Pradeau, Paris: Flammarion, 2000. p. 31, todos os retratos antigos de Sócrates mencionam a existência desta figura, objeto de longas explicações, entre elas a possibilidade do daimon não ser exatamente uma visão, mas sobretudo percepção de uma inteligência. Tal percepção seria extremamente desenvolvida por Sócrates graças ao equilíbrio excepcional de sua alma. No Alcibíades (103 a), Sócrates refere-se a uma “oposição daimoníaca da qual aprenderás o poder mais tarde”. O termo daimon está na raiz da palavra eudaimonia (Cf. PETERS, F. E. Termos filosóficos gregos. Lisboa: Calouste-Gulbenkian, 1974). Lembrando que, para Heráclito, o daimon de um homem é seu ethos, seu caráter, sua conduta (DIELS, H.; KRANZ, W. Die

Sócrates ama Alcibíades. Foi seu primeiro amante (protos erastés)103 e o único que lhe permaneceu leal. O diálogo está repleto de remissões à afeição entre Sócrates e Alcibíades do início (103 a) ao fim (135 e)104. O sentimento de Sócrates, entretanto, não é o “amor comum”, dependente do corpo, dos bens ou da influência, mas aquele que se vincula à alma (130 a): Alcibíades é, sem dúvida, o discípulo favorito de Sócrates, e o mais amado.

Sócrates sabe que Alcibíades alimenta grandiosos projetos políticos, e considera-se o único capaz de ajudá-lo. A erotika socrática, portanto, tem cunho pedagógico. Mesmo durante o tempo em que não podia aproximar-se dele, Sócrates não o olhou ou admirou simplesmente, mas observou, examinou, “escrutinou” no sentido mais exato do termo grego skopein (103 a), para identificar em que estado encontrava-se Alcibíades. O resultado desta investigação: um jovem orgulhoso, ambicioso e, sobretudo, despreparado.

Pela importância do preâmbulo, que cria toda uma “atmosfera espiritual”105 ao diálogo, invocando desde o início a figura do daimon e a força de éros, cita-se o trecho completo da abertura do diálogo por Sócrates:

Ó filho de Clinias, estás sem dúvida surpreso (thaumázein): veja que eu, que fui seu primeiro amante (protos erastés) permaneço sozinho, leal, depois que os outros te deixaram e tu te lembras como eles te importunaram com suas conversas, enquanto eu, durante tantos anos, não te dirigi mesmo uma palavra. A causa disto não era humana, mas alguma oposição daimoníaca (ouk anthrópeion, allá ti daimônion enantíoma), da qual aprenderás o poder (dynamin) mais tarde: porque agora ele não faz mais obstáculo, aqui estou eu; e tenho boa esperança de que no futuro, ele não me impeça mais. Durante este tempo, examinei (skópein) como te comportavas a respeito de teus amantes (erastas) e eis o que observei. Tão numerosos e confiantes que fossem, não há um que tua arrogância e desdém não tenha desprezado. A razão desta arrogância (hyperephania), quero te dizer: tu finges não precisar de ninguém; os meios de que dispões são tão grandes, que não tens necessidade de nada, começando pelo corpo e finalizando pela alma (apo toû sómatos archámena, teleutônta eis tèn psykhén) (103 a).

103 A educação erótica era uma instituição grega, e consistia na relação entre dois homens, um mais velho (erasta) e

outro mais jovem (erômeno) que concede seus favores ao erasta em troca de educação que lhe traga sabedoria (sophós) e bem (agathós). Alcibíades teve muitos amantes, mas isto não lhe proveu uma boa educação (103a-104 c). Veja-se CROISET, Maurice. Notice. In: PLATON Alcibiade. Texte établi et traduit par Maurice Croiset. Introduction de Marie-Laurence Desclos, texte bílingue grecque-français. Paris: Les Belles Lettres, 2002. p. 2.

104 Remissões explícitas a éros em 104c, 104 e 105 a e 135 d e. A erótika tem muita importância na filosofia

platônica e sua importância pedagógica está descrita em detalhes em PLATÃO. Symphosium. Arckhaia Ellenike Grammateia. Atenas: Kactus Editions Odysseas Hatzopoulos & Co., 1993. (Oxford Classical Texts).

105

Trata-se de um “preâmbulo espiritual”, conforme CROISET, Maurice. Notice. In: PLATON Alcibiade. Texte établi et traduit par Maurice Croiset. Introduction de Marie-Laurence Desclos, texte bílingue grecque-français. Paris: Les Belles Lettres, 2002. p. 3.

Alcibíades se acha “muito belo e muito importante” (kallistós tè kai mégistos), o que fez com que desprezasse vários amantes; as qualidades que acredita possuir o tornam autossuficente, do corpo à alma. Sócrates por contraste, apontará as limitações e as falhas da educação de Alcibíades, abordando critérios que colocarão em cheque suas ambições e evidenciarão qualidades até então desconhecidas. Por intermédio de Sócrates, Platão apresenta o elenkhos, método de refutação e indução, a arte (tekhné) de perguntar e responder, que constitui uma das etapas do que ficou conhecido como maiêutica socrática106.