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4 DIZER A SUA PALAVRA: ANÁLISE DOS GRUPOS FOCAIS

4.2 O DESAFIO: A TEORIA, A DOCÊNCIA E A DIVERSIDADE

Na construção do roteiro dos grupos focais, também foi incluída uma questão que motivava os educadores a apontar os principais desafios enfrentados no ingresso ao Projeto:

é um desafio trabalhar a teoria dentro de um espaço de educação popular dando a ela um valor de uso (BGF1).

um desafio que eu senti durante bastante tempo na minha entrada aqui no Alternativa é que quando você vem pra cá você não sabe muito bem o que é essa educação popular mas ao mesmo tempo você percebe que esse é um lugar diferente, você não sabe exatamente por que, geralmente num primeiro momento tu percebe que os alunos são diferentes e aí tu não sabe exatamente o que que é pra você fazer né…(AGF1).

Esse desafio inicial envolve duas questões principais: o desconhecimento sobre educação popular e como atuar nessa perspectiva e os estereótipos ligados à formação, e à trajetória escolar. Entre os estereótipos herdados da trajetória escolar está a necessidade de “vencer o conteúdo”, muitas vezes priorizado em detrimento do aprendizado na educação formal, e a noção de que você só estará “preparado” para ensinar quando concluir o curso de formação, ou, ao menos, avançar mais no curso.

a grande dificuldade que eu tenho é de fazer alguma coisa que não seja o “decorem isso, vai cair na prova” como que eu tiro isso, que não é exatamente pra isso que a gente tá aqui apesar de ser pra isso que vocês estão aqui, como que eu faço pra lidar com isso (DGF1).

tem algo interessante também que tô aqui no meu segundo ano vai fechar né e ainda não me sinto segura pra fazer algumas coisas e como isso é louco, esse espaço tá aqui, os alunos estão aqui e eu ainda tenho muito medo de propor algumas coisas (CGF1).

por muito tempo eu tive uma resistência em vim pra cá por não me sentir pronta e por não ter domínio dessas questões que, com o tempo eu fui entender que não eram, não era a proposta que eu deveria trazer pra cá, por não condizer com a proposta de educação popular (BGF2).

eu acho que todo mundo passa por esse processo quando entra, pelo menos no Alternativa, que é aquele “o que é que eu tenho para contribuir com as pessoas?” “será que eu tenho algo a contribuir?” eu entrei no terceiro semestre, tu também, né, então tu tá muito no início do curso tu tá muito entendendo que caminhos tu vai andar dentro do próprio curso tipo pensar em contribuir algo num espaço de educação já é algo muito além disso né, então é isso que tu fica se perguntando e era isso o meu dilema e eu conversava com as pessoas mais antigas então eu acho que essa foi a primeira barreira pra mim e também a primeira revelação que tu entra aqui tu aprende muito mais às vezes do que tu ensina, do que tu passa pra alguém né, e é essa… quando cai a ficha disso assim é muito legal sabe talvez tipo e isso não é errado né, tipo, tu também pensar em tá aqui pelo teu próprio crescimento, enquanto educador, enquanto profissional na área de Psicologia, ou o que quer que seja né, eu acho que essa é foi a minha primeira barreira, sem dúvida.(AGF2).

A educadora do primeiro excerto manifesta ainda o conflito gerado pela prática no Alternativa em relação às crenças em torno do aprender, e a dificuldade em superar a imposição da memorização. Outro ponto a destacar nesse excerto é o conflito já mencionado neste trabalho entre a preparação para o ENEM e a perspectiva da educação popular, isso se evidencia na passagem “como que eu tiro isso, que não é exatamente pra isso que a gente tá

aqui apesar de ser pra isso que vocês estão aqui, como que eu faço pra lidar com isso”

(DGF1).

A segunda educadora relata a dificuldade em se desvencilhar dos modelos pré- estabelecidos de práticas e relata que, embora o espaço do projeto seja propício à experimentação “ainda tenho muito medo de propor algumas coisas”(CGF1).

O relato da educadora da equipe de Psicologia reforça a pressão por avançar no curso antes de ir à campo, antes de se colocar em contato com o público, nas palavras dela: “eu tive

uma resistência em vim pra cá por não me sentir pronta” (BGF2). Entretanto, a mesma

educadora informa, em outra passagem, o quão positiva foi essa inserção no projeto em relação a sua postura frente ao curso:

me mudou bastante sim, mudou a forma como… a minha postura em aula, então as contribuições que eu trago pra aula assim, eu senti como muito mais abertas, muito mais múltiplas, plurais, né não só do “ah pode ser esse quadro” “pode ser essa patologia” “pode ser isso ou aquilo”, mas… enfim, muito mais humanizado e… e o próprio aproveitamento das disciplinas em si, porque quando eu entrei aqui no Alternativa no terceiro semestre eu tava tendo a cadeira de Psicologia Comunitária e Psicologia e Escola então mudou muito a forma como eu via essas duas disciplinas pra além do teórico então as professoras tavam falando e eu conseguia fazer links diretos (BGF2).

O exemplo da educadora de Psicologia foi pontual, em função das disciplinas cursadas pela mesma no curso de Psicologia, mas outros educadores relataram situação semelhante com relação a outros conteúdos ou disciplinas, como se observa no excerto a seguir:

eu consegui perceber algumas, alguns pontos positivos e principalmente negativos na área da pesquisa na academia que eu até então eu não percebia e que eu vi que muitas pessoas que não tiveram essa aproximação com o Alternativa eles deixavam passar (AGF2).

Essas passagens indicam que a atuação no PUPA, que é um ação de extensão, pode suscitar aprendizagens atribuídas até o momento apenas ao ensino, tornando a formação desses estudantes ainda mais ampla.

A expansão da rede pública e a universalização do acesso à escolarização impulsionaram um intenso debate em torno da diversidade na educação. Educar para a diversidade é um tema propalado amplamente, mas na prática, os cursos de formação de professores pouco avançaram e se estuda para ensinar alunos semelhantes, turmas homogêneas. Num espaço de educação popular como o PUPA os educadores fatalmente se confrontam com a diversidade e constroem suas estratégias de trabalho:

essa coisa de ter alunos de todas as idades e que tinha aluno esse ano… tinha alunos que sabiam tudo o que tu perguntava, o mais difícil eles te respondiam e tinha alunos que eu tenho certeza que se sentiam muito constrangidos com isso como é que tu lida com isso, como é que tu faz essa coisa tipo não posso deixar de falar determinadas coisas por que tem gente que sabe muito mas eu também não posso aprofundar demais por que tem gente que nunca viu isso, então o que eu faço, eu vou desmotivar de um lado, vou motivar do outro como que eu fico no meio termo, pra mim isso é bem difícil assim (DGF1).

você sabe que tem alunos ali e geralmente as experiências que a gente tem enquanto professor são em lugares em que os grupos são muito homogêneos e aí você chega aqui e repara que na sua turma tem, às vezes uma aluna de 40 50 anos, do lado de um aluno de 16 anos e depois de um tempo até comecei a aumentar o exemplos né daí tu chega numa turma que tem um aluno que lê Marx, que lê o Capital e tem outro aluno que é quase analfabeto então geralmente tem esse impasse de o que que eu faço agora? e a gente não sabe exatamente o que fazer a gente acaba fazendo aquele modelo tradicional de aula nem tanto da nossa formação enquanto professor num curso de licenciatura mas aquela formação que é anterior e inconsciente de quando a gente é aluno né. E até a gente perceber que isso não é que funcione ou não funcione é que isso soa meio estranho num lugar como esse é meio que perder potencial às vezes de alunos né até tu perceber que você pode continuar trabalhando enquanto um educador, enquanto um professor... (AGF1).

Esse “confronto” com o diferente pode ser considerado um aspecto positivo e, até mesmo, um diferencial ao educador que atua em espaços de educação popular em relação a educadores que tiveram apenas a formação acadêmica. A diversidade é apontada tanto em relação às faixas etárias dos educandos quanto em relação aos conhecimentos prévios não necessariamente relacionados à escolarização. Nesse ponto, os educadores precisam exercitar alguns elementos constituintes da educação popular de Paulo Freire, como a valorização do “saber de experiência feito” e criar estratégias que lhes permitam trabalhar com essa diversidade.

Ilustrando essa “vocação” de trabalhar na diversidade, o mesmo educador cita uma situação presenciada em uma escola da rede pública na qual desenvolveu atividades acadêmicas:

numa das escolas do Pibid em que eu atuei, dentre as três escolas um aluno teve que... a diretora da escola sugeriu que o aluno se retirasse da escola, procurasse uma outra escola né isso é o tipo de coisa que é paliativo só tá transferindo o aluno né porque ele é homossexual você transfere ele pra outra escola, é paliativo extremamente paliativo não resolve o problema não há esse tato ainda né, principalmente em periferia e seria importantíssimo, principalmente na periferia esse tato né essa também é uma função dos pré-universitários populares (BGF1).

Essa situação relatada pelo educador expõe a dificuldade da escola em lidar com a subjetividade dos educandos. A educação para a diversidade é um tema polêmico e que

chegou a ser definido pejorativamente como “ideologia de gênero”, especialmente na ocasião da formulação dos Planos Municipais de Educação. O que se evidencia nessa discussão é o descompasso entre a escola deve ser um espaço no qual se possa exercitar a tolerância e o respeito às diferenças. Para tanto, não pode ficar alheia ao que acontece na sociedade como um todo, como as novas configurações familiares e a diversidade de gênero. A professora Viviane Melo de Mendonça, do Departamento de Ciências Humanas e Educação (DCHE) da Ufscar, que desenvolveu um estudo sobre o preconceito sofrido por homossexuais na escola, aponta como caminho para superação do preconceito a formação dos professores, de acordo com ela:

É necessário que a formação de professoras e professores tenham um debate mais aprofundado sobre as questões de gênero e sexualidade, com disciplinas obrigatórias que tratem do tema. É fundamental também que se desconstruam as resistências para se falar da diversidade sexual e das diferenças, bem como das desigualdades persistentes e estruturais em nossa sociedade que são, sim, produtoras das violências (2017, s/p).31

A avaliação de um dos educadores relacionada à disponibilidade dos pré-universitários em acolher o diferente é expressa na passagem a seguir:

eu acredito também que em termos assim de tolerância da diversidade os pré- universitários são realmente nesse sentido espaços plenos né que tem essa possibilidade de sugerir, de experienciar essa tolerância às diversidades né (BGF1).

Superado o desafio inicial, os relatos demonstram um processo de amadurecimento, transformação, ou libertação pelo qual os educadores passam. Nesse processo, há uma espécie de “revelação” de que mesmo sem ter concluído sua formação acadêmica o estudante/educador tem como contribuir na construção desse espaço educacional. Enquanto ensina, aprende e vai construindo e reconstruindo sua identidade pessoal e profissional.

O Alternativa me fez perceber que tem como não ser assim né, tem como o professor não ser aquela coisa assim... aquela radiotransmissão de conhecimento né, que é a coisa mais pavorosa que tem, foi isso que mais significou pra mim. (AGF1).

eu tenho certeza que o Alternativa agrega muito mais pra mim do que eu agrego qualquer coisa sabe não dá pra pontuar coisas assim fora essas coisas de professor de tu não ser o centro de dessa afinidade que o professor pode sim ter com o aluno,

31 BOEHM, Camila. Pesquisa mostra que discriminação contra homossexuais está presente em escolas. EBC Agência Brasil. São Paulo. 25, mar.2016. Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2016-03/pesquisa-mostra-que-discriminacao-contra-

pode sim ter o aluno como um amigo, como… não é, não precisa ser distante, tudo isso, mas além disso, pessoalmente, politicamente, socialmente, eu acho que eu sou uma pessoa muito melhor agora do que quando eu entrei no Alternativa ainda tem muitas coisas pra mudar sabe mas foi…transformador, de verdade, muito assim (DGF1).

a partir do momento que tu põe o pé aqui, tu começa a estar presente, começa de alguma forma tentar movimentar esse espaço junto com outras pessoas, isso vai afetar o teu cotidiano, vai afetar... a ponto de tu começar a afetar outras pessoas eu vejo assim que lá no meu curso muitas pessoas não conheciam o Alternativa e eu de tanto falar muitas pessoas tem interesse de vir pra cá conhecer sabe, mas enfim muitas coisas foram, são significativas. Isso é diário (CGF1).

Esse processo de amadurecimento ocorre em diferentes tempos e direções, depende de cada educador, o que corrobora a perspectiva adotada por Pimenta (2012), de que a formação é autoformação, os professores “reelaboram os saberes iniciais em confronto com suas experiências práticas, cotidianamente vivenciadas” (p. 32). Para uma educadora oriunda do Bacharelado, esse processo dependeu muito de superar os preconceitos da formação, como se observa no excerto a seguir:

DGF1 - esse é o meu quarto ano aqui e eu comecei a participar das coisas ano passado, da metade pra cá, porque antes não participava. Já conseguia entender um pouco mais de educação popular mas eu não me aproximava muito, por que eu sou do bacharelado aí eu achava que as coisas eram muito voltadas pra licenciatura

Moderadora - se auto-excluía!

DGF1- total totalmente e por que ninguém da minha equipe ia, eu não gostava de ir sozinha então tá, não vou, essas coisas assim daí ano passado pra cá que eu comecei a participar mais e daí eu vejo que sim, é muita diferença faz muita diferença! Tanto no trabalho como na sala de aula tu participar de todas essas coisas, tu participar de reuniões, tu ir nas coisas, o ano passado eu fui na formação com a [nome da professora convidada] e antes eu não participava e eu fiquei pensando “meu Deus do céu, por que que eu nunca fui em nenhuma formação, sabe? olha tudo que a gente tirou daqui e eu nunca participei dessas coisas!” então faz muita diferença. Enfim o Alternativa só me dá… mas faz bastante diferença, de como lidar e da minha vida e como eu lido com outros quesitos da minha vida também participar de das reuniões, das deliberações tudo isso.

A resistência de participar em atividades de formação promovidas pelo PUPA também é recorrente entre os educadores das áreas das exatas, como menciona um dos participantes dos GF:

eu acredito que essa questão de não, de às vezes sentir que você é do Alternativa mas parece que você não representa o Alternativa pode ser bastante perceptível nas ciências, nas ditas ciências exatas acho que a Matemática, Química, Física, de alguma forma se mostram bastante ausentes das formações mas eu acredito que seja também é por uma questão a meu ver muito... uma mentalidade engessada de que a própria, o próprio curso de Física, Química e Matemática em licenciatura parece um bacharelado né (BGF1)

Essa percepção é reiterada pela educadora de Biologia:

é que nem tu quebrar essa coisa que tu tem que vencer o conteúdo, tu vem a vida inteira sempre vencendo o conteúdo, vencendo o conteúdo e daí tu chega aqui e não é isso que importa vencer o conteúdo, mas tu conseguir tirar isso de ti é muito difícil porque tá engessado em ti isso tá engessado em ti que tu tem exatas e humanas (DGF1).

A supervalorização do conteúdo mencionada pelos educadores relaciona-se ao que Tardif (2014) define como “saberes curriculares”, na escola esses saberes compõem os programas escolares que devem ser rigorosamente cumprido pelos professores.

Outra categoria presente nos grupos focais foi a que se refere às aprendizagens identificadas pelos educadores como obtidas através do Alternativa e é sobre elas que a próxima subseção trata.