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4 – ESTUDO DE CASO: A DIFERENCIAÇÃO DE PREÇO NAS CONCESSÕES DE RODOVIAS FEDERAIS NO BRASIL

4.2 – O ARCABOUÇO LEGAL DA FIXAÇÃO DE TARIFAS DIFERENCIADAS, POR CUSTO, NAS CONCESSÕES RODOVIÁRIAS FEDERAIS

4.2.1 O desejo por igualdade e os serviços públicos

O primeiro, e então surpreendente, apelo universal à igualdade foi feito pelo cristianismo. Nas palavras de Coulanges, a nova religião “não era a religião doméstica de nenhuma família, a religião nacional de nenhuma cidade e nem de nenhuma raça. Não pertencia nem a uma casta nem a uma corporação. Desde seu início, conclamava para si a humanidade inteira” (FOUSTEL DE COULANGES, 2001). Ocorre que, ao apelar à igualdade, o cristianismo não o fez com foco na distribuição de riquezas materiais. Ao contrário, imiscui-se o menos possível nas coisas terrenas. Coulanges, de novo:

“O cristianismo é a primeira religião que não pretendeu que o direito dependesse dela. Ocupou-se dos deveres dos homens, não de suas relações de interesses. Não vemos o cristianismo regular nem o direito de propriedade, nem a ordem sucessória, nem as obrigações, nem os processos. O cristianismo colocou-se à margem do direito, como à margem de tudo que seja puramente terreno. O direito foi, portanto, independente e pôde tomar suas regras na natureza, na consciência humana, na vigorosa noção do justo que reside em nós” (FOUSTEL DE COULANGES, 2001).

A vigorosa noção “do justo que reside em nós”, a que alude Coulanges na passagem acima citada, no lugar de ser um fruto acabado da razão humana, mostrou-se mesmo uma avaliação sujeita a notáveis transformações desde que a eclosão da concepção religiosa cristã no ocidente permitiu a laicização na produção do direito e certa distribuição de igualdades formais, depois interrompidas com a dissolução do império Romano e a instalação dos regimes feudais, caracterizados por clara estratificação social e pela prevalência dos costumes sobre as leis codificadas.

É já na fase de estados nacionais consolidados em torno de um poder real, posterior à Idade Média, que se manifestam novamente fortes os apelos por igualdade. Sandel (2005), aludindo à concepção de Rawls64, aponta para a existência de um processo de expansão

igualitária que tem início na conquista de igualdade jurídica, passa pela garantia de igualdade de oportunidades e culmina na chamada igualdade democrática. No começo, deseja-se receber do estado tratamento igualitário, sem que dele se espere muito mais do que a preservação da esfera de direitos individuais; depois, pretende-se que o estado garanta aos indivíduos habilidades preliminares mínimas, especialmente educação, com as quais se pretende diminuir a influência das contingências sociais na vida das pessoas; finalmente, exige-se do estado que se empenhe na promoção de uma justiça distributiva, elevando à categoria de direitos individuais o acesso a toda uma série de bens e serviços que possam contribuir para o bem-estar material.

É sob forte influência das idéias e do estado de ânimo acerca da igualdade existentes nessa última fase do processo de expansão igualitária que foi formulada a atual Constituição brasileira, como, de resto, outras tantas. Grotti (2006), citando objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil relacionados no artigo terceiro da Constituição – erradicação da pobreza, redução das desigualdades sociais e regionais e promoção do bem comum – diz que o sentido dado ao estado Brasileiro pelo constituinte foi o de um Estado Social, fundamentalmente voltado para a promoção do bem-estar coletivo. A autora enfatiza a importância da prestação de serviços públicos para a concretização daqueles objetivos constitucionais valendo-se das palavras de Justen65, para quem os serviços públicos representam fator indispensável para “a construção de uma sociedade social e de uma coesão social”, devendo, por isso mesmo, estar “umbilicalmente unidos aos princípios emanados constitucionalmente”.

Como nota Hayek (1985), a justiça social, tão claramente invocada na Constituição brasileira, é apenas outra maneira de designar a justiça distributiva, há pouco mencionada. Para o autor, a ampliação constitucional das funções do estado, seguida de aumentos na tributação e na quantidade de serviços públicos prestados, torna factíveis as aspirações socialistas por igualdade, sem que se precise recorrer ao expediente revolucionário da socialização dos meios de produção.

Todavia, sendo de fato verdade que a Constituição brasileira confere aos entes governamentais uma extensa relação de atribuições, em que medida a oferta de serviços

públicos se prestaria à igualdade e, conseqüentemente, ao atendimento do princípio da justiça social, tal como hoje é interpretado66?

A resposta está em que o serviço público, assim como concebido na experiência francesa, na qual se espelha a legislação brasileira, deve sempre visar, de um lado, ao atendimento do maior número de pessoas, aspirando a um caráter universal, e, de outro, à uniformidade de tratamento daqueles a quem se destina, como extensão do princípio constitucional de igualdade dos indivíduos perante a lei (DI PIETRO, 1999).

Em relação a essas duas finalidades, Pereira (2006) distingue serviços públicos em sentido amplo e serviços públicos em sentido restrito. Neste caso, o chamado uti singuli, há uma relação jurídica concreta, que vincula o prestador ao usuário. Aqui, é a satisfação de cada usuário individual que realiza o fim público do serviço. Naquele, o chamado uti universi, o que há é um direito difuso dos beneficiários, derivado de sua condição de cidadãos. Nessa hipótese, não há uma relação jurídica concreta, mas um dever de agir do poder público. Nos serviços públicos uti universi, a finalidade de atender ao maior número possível de pessoas é inerente mesma ao serviço, o qual, dada a impossibilidade de sua fruição singular, é oferecido sem contraprestação. Nos serviços públicos uti singuli, a política da “universalização” ou da “generalização” é perseguida mediante a aplicação do princípio constitucional da modicidade tarifária67 (GROTTI, 2006).

Nos serviços públicos uti universi, a uniformidade de tratamento é garantida pela própria inviabilidade de se beneficiar indivíduos em particular. Nos serviços públicos uti singuli, o princípio da igualdade dos usuários perante o serviço, ou princípio da isonomia68, é

66 “A lógica do mercado se insere na preferência individual para produção e consumo e no poder econômico

que detêm estes indivíduos para exercer com maior amplidão sua preferência. A lógica do serviço público é a de produção para solver necessidades sociais. A primeira se reproduz pela movimentação dos valores de troca, a segunda dirige-se à produção de valores de uso social” (DERANI, apud ARAGÃO, 2004)

67 Lembra Grotti, citando Porto Neto (1998), que a “modicidade da tarifa não se confunde com a gratuidade

do serviço. Esta não pode ser considerada como um princípio comum ao conjunto dos serviços públicos, pois depende da opção política”. Para a maioria dos doutrinadores, continua, a modicidade é requisito “da contraprestação devida pelos usuários na fruição dos serviços públicos, de modo a não onerá-los excessivamente ou marginalizá-los no acesso aos serviços públicos”.

68 Para Câmara (2005), “A observância geral do princípio da isonomia deriva do disposto no caput do artigo

5 da Constituição Federal: Todos são iguais perante a Lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo- se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos seguintes termos: (...)”. Continua: “Em especial no trato com a coisa pública, é inevitável que se proceda com igualdade perante os administrados, o que se reflete na

materializado, em primeira ordem, pela exegese do texto constitucional e, em segunda ordem, pela inadmissibilidade legal de tratamento diferenciado entre os usuários, exceto se, primeiro, como discorre o art. 13 da Lei nº 8.987, de 1995 - a chamada “Lei de Concessões”, características técnicas e custos específicos provenientes do atendimento aos distintos segmentos de usuários justificarem a diferenciação de tarifas, ou, segundo, se política tarifária for concebida com o fito de beneficiar grupos sociais específicos, para os quais a aplicação do princípio da isonomia exigiria certo senso de proporção: tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais (GROTTI, 2006).