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4 UTOPIA E FICÇÃO BIOMÉDICA

4.1 O desejo utópico e a ficção biomédica

Para a análise de Dormir al sol, julgamos importante entender o funcionamento do desejo utópico, procurando revelá-lo “em lugares inesperados, nos quais está oculto ou reprimido”52 (JAMESON, 2005, p. 03, tradução nossa). Acreditamos que esse impulso utópico está, por um lado, na base da medicina cientificista de Samaniego e, por outro, é motor da possível paranoia do narrador-personagem, como veremos em capítulos mais adiante. No momento, cabe-nos justificar por que consideramos o romance de Bioy Casares como uma ficção biomédica e como o desejo utópico determina seu funcionamento.

A ficção biomédica mantém seu interesse temático especialmente na biologia e suas ramificações – bioquímica, biomedicina, biogênese... O termo bios, originário do grego, é entendido como “forma de vida” ou “vida qualificada”; diferencia-se do termo zoé por conter em seu significado uma complexidade que este último dispensa, sendo ele uma “expressão biológica mais simples” (ESPOSITO, 2010, p. 31). Devido a esse interesse, é comum que os relatos da ficção biomédica abordem procedimentos médicos e pseudomédicos. Conforme aponta Graciela Ravetti, trata-se de um tipo de ficção que “focaliza indivíduos em perigo de serem sacrificados com o álibi do aprimoramento, não por adição de partes mecânicas ou por processos de robotização, mas por misteriosos procedimentos e secretas cirurgias mirabolantes” (RAVETTI, 2010, p. 184-185).

A ficção biomédica, por vezes, toca num tema que se une ao impulso utópico corriqueiramente, isto é, aquilo que Jameson (2005) chamará de “corporeidade utópica”53, marcada pela onipresença do materialismo numa atenção desmedida ao corpo “que visa corrigir qualquer idealismo ou espiritualismo persistente neste sistema”54 (JAMESON, 2005, p. 06, tradução nossa). Nesse sentindo, a corporeidade utópica torna-se algo recorrente, “que investe até mesmo nos produtos mais subordinados e vergonhosos da vida cotidiana, tais como aspirinas, laxantes e desodorantes, transplantes de órgãos e cirurgias plásticas, todos eles abrigando promessas silenciosas de um corpo transfigurado.”55 (JAMESON, 2005, p. 06,

52“in unsuspected places, where it is concealed or repressed.” (JAMESON, 2005, p. 03) 53“Utopian corporeality”.

54“which seeks to correct any idealism or spiritualism lingering in this system” (JAMESON, 2005, p. 06) 55 “which invests even the most subordinate and shamefaced products of everyday life, such as aspirins, laxatives

and deodorants, organ transplants and plastic surgery, all harboring muted promises of a transfigured body.” (JAMESON, 2005, p. 06)

tradução nossa) A corporeidade utópica torna-se, assim, motor de uma infindável produção comercial, sendo fácil e cruelmente assimilada pelo Capitalismo.

Enquanto isso, a política liberal incorpora parte deste impulso nas plataformas políticas que oferecem melhorias na pesquisa médica e no estabelecimento de uma cobertura sanitária universal, embora o atrativo da eterna juventude encontre lugar mais apropriado no programa secreto da direita e dos ricos e privilegiados, em fantasias sobre o tráfico de órgãos e as possiblidades tecnológicas de terapia rejuvenescedora.56 (JAMESON, 2005, p. 06, tradução nossa)

Vimos que o médico Reger Samaniego acredita que sua mirabolante cirurgia de troca de almas permitirá que Diana conviva tranquila e pacificamente ao lado de seu marido Lucio Bordenave. A pergunta que parece pairar após a leitura de Dormir al sol é: o que resta de humano em um corpo, já demasiadamente atravessado de todos os lados possíveis pela tecnocracia, quando aberto e extirpado por procedimentos médicos? Aqui a análise da ficção biomédica se depara com uma dimensão ética que denuncia tanto os perigos encerrados na realização dos desejos utópicos quanto o processo, o meio pelo qual essa realização teria que ocorrer. Daí torna-se necessário o estudo, que faremos no capítulo seguinte, da tese de Hans Jonas de que, concebida para a felicidade humana, “a promessa da tecnologia moderna se converteu em ameaça, ou esta se associou àquela de forma indissolúvel.” (JONAS, 2015, p. 21).

Por isso a importância da hermenêutica de Bloch de desvendar os impulsos utópicos obscuros embora demasiadamente presentes em nosso cotidiano. De acordo com Jameson (2005, p. 10, tradução nossa), “ver vestígios do impulso utópico em todas as partes, como fez Bloch, é naturalizá-lo e dar a entender que ele está de algum modo enraizado na natureza humana”57. Naturalizá-lo prevê a intenção de notá-lo como parte da natureza humana; o termo não deve ser confundido, portanto, com uma possível banalização na revelação do impulso em lugares que ele permanece escondido.

Kristov Cerda Neira, em seu artigo sobre a utopia e a ficção nas primeiras narrativas de Bioy Casares, aponta que “[a]s ficções de Bioy estão claramente contextualizadas no devir artificial ou artefatual da realidade no mundo contemporâneo. Inclusive indicam explicitamente

56 Meanwhile, liberal politics incorporates portions of this particular impulse in political platforms offering

enhanced medical research and universal health coverage, although the appeal to eternal youth finds a more appropriate place on the secret agenda of the Right and the wealthy and privileged, in fantasies about the traffic in organs and the technological possibilities of rejuvenation therapy. (JAMESON, 2005, p. 06)

57“To see traces of the Utopian impulse everywhere, as Bloch did, is to naturalize it and to imply that it is somehow

o protagonismo da ciência e da tecnologia como dispositivos desta ‘feitura ficcional’”58 (CERDA NEIRA, 2005, p. 40, tradução nossa). Sua consideração se aproxima à definição que Daniel Link (1994), em seu prólogo à compilação Escada ao céu59, dá à ficção científica: a de que se trata de um relato do futuro posto no passado.

Esta definição é precisa, econômica e reversível: tudo o que a ficção científica tematiza deve ser pensado em relação a alguma forma de futuro: as realidades alternativas, mesmo quando executadas a partir de (contra) um passado

“historicamente verdadeiro”, remetem a um futuro, um futuro (do passado)

alternativo.60 (LINK, 1994, p. 08, tradução nossa)

Essa interpretação da ficção científica como um relato do futuro posto no passado pode ser ampliada de forma a percebermos a capacidade do gênero de trabalhar com a ideia de um “ainda não” da ciência. Esse ainda não, se pensarmos em quesitos éticos, poderia servir como um alerta ao que é possível de vir a ser. Talvez o uso particular do grotesco (como é o caso da troca de almas) em textos do gênero sirva a isso, isto é, não como alerta de um real por vir, mas de uma possibilidade futura absurda, inquietante e latente, sempre à espreita, não para acontecer, de fato, mas para alertar sobre os horrores possíveis. Note-se que a afirmação de Cerda Neira destaca o caráter de devir artificial da realidade no mundo contemporâneo, isto é, já aponta para um mundo cada vez mais irreal, um mundo “que se enche de simulacros produzidos em série para satisfazer desejos igualmente fabricados”61 (CERDA NEIRA, 2005, p. 40, tradução nossa). Ou, para ficar ainda mais claro, conforme Umberto Eco:

Temos ficção científica como gênero autônomo quando a especulação contrafactual sobre um mundo estruturalmente possível se faz extrapolando, a partir de algumas tendências do mundo real, a própria possibilidade do mundo futurista. Ou seja, que a ficção científica adota sempre a forma de uma antecipação e a antecipação adota sempre a forma de uma conjectura formulada a partir de tendências reais do mundo real.62 (ECO, 1994, p. 63, tradução e grifos nossos)

58“Las ficciones de Bioy están claramente contextualizadas en el devenir artificial o artefactual de la realidad en

el mundo contemporáneo. Incluso, indican expresamente el rol protagónico de la ciencia y de la tecnología como

dispositivos de esta ‘hechura ficcional’” (CERDA NEIRA, 2005, p. 40).

59 Escalera al cielo. Obra que reúne trechos de obras de diversos pensadores sobre a utopia e a ficção científica,

entre os quais destacam-se Beatriz Sarlo, Roland Barthes, Borges, Michel Butor, Adorno, Umberto Eco, Ricardo Piglia, entre outros.

60 Esta definición es precisa, económica y reversible: todo lo que la ciencia ficción tematiza debe ser pensado en

relación con alguna forma de futuro: las realidades alternativas, aún cuando se postulen a partir de (en contra

de) un pasado “históricamente verdadero”, son reenvíos hacia un futuro, un futuro (del pasado) alternativo.

(LINK, 1994, p. 08)

61“que se llena de simulacros producidos en serie para satisfacer deseos igualmente fabricados.” (CERDA

NEIRA, 2005, p. 40)

62 Tenemos ciencia ficción como género autónomo, cuando la especulación contrafactual sobre un mundo

estructuralmente posible se hace extrapolando, a partir de algunas tendencias del mundo real, la propia posibidad del mundo futurible. Es decir, que la ciencia ficción adopta siempre la forma de una anticipación y la anticipación

Nesse sentido, há a possibilidade de leitura de Dormir al sol como um romance que denuncia alguns aspectos sombrios de nossa realidade de simulacros, na qual “inclusive o corpo fora inserido na produção semiótica universal, como objeto manipulável, fetiche, mercadoria”63 (CERDA NEIRA, 2005, p. 40, tradução nossa); e, podemos acrescentar, como objeto de normatização. Cerda Neira diz “inclusive o corpo”, mas bem poderíamos atualizá-lo e dizer que no século XXI – “batizado como o ‘século da biotecnologia’”, em referência “aos primeiros sinais que inauguram a chamada era do pós-humanismo ou transumanismo” (PESSINI, 2006, p. 125) – especialmente o corpo se inseriu na produção semiótica universal.