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5 MODERNIDADE, UTOPIA E A AMEAÇA TECNOLÓGICA

5.2 Techné e literatura fantástica

Prometeu, um trickster da mitologia grega que rouba para os homens o fogo dos deuses, inicia o processo de desmistificação da natureza ao conceder aos mortais a possibilidade

de fazer a natureza ser útil à sobrevivência humana. O domínio do fogo é a origem da techné. Dele à criação das primeiras ferramentas e à invenção da roda são pelo menos 700.000 anos. Da roda à pólvora, mais 4.000, o que se deu já no século IX. Um milênio depois os cientistas conseguiram entender e dominar as origens da eletricidade, que se tornou a força motriz da Segunda Revolução Industrial89. Aqui a natureza já não é mais apenas útil à sobrevivência humana. No século XIX, ela já pode ser transformada e, especialmente, superada pela inteligência dos mortais guardiões do fogo de Prometeu, que agora começam a se deparar com uma velocidade assombrosa dos avanços tecnológicos.

É nesse século que a individualidade burguesa é colocada no centro da vida social e biológica, tornando-se um tema característico da modernidade. Enquanto tema, aborda, de um lado, de acordo com Remo Ceserani (2006), um “eu” que planeja a própria história e evolução de uma forma linear e unitária, que formula hipóteses e maneiras para enfrentar a realidade que o circunda, que se projeta sobre as coisas como uma identidade inquestionável ou submete as coisas à sua identidade determinante; de outro, um “eu” que, bem ao contrário, representa-se “em suas próprias descontinuidades, nos saltos e mutações de desenvolvimento, nas rupturas, nas hesitações e nas dúvidas que acompanham inevitavelmente a afirmação do modelo forte da individualidade auto-afirmada [sic]” (CESERANI, 2006, p. 82).

Essa individualidade autoafirmada é constante na literatura do século XIX, entre a qual merece destaque a grande produção e recepção de literatura fantástica90, um tipo de narrativa que forneceu ao imaginário desse século “a possibilidade de representar de maneira viva e eficaz os seus momentos de inquietação, alienação e laceração, e de deixar essa tradição como legado para a tradição moderna – como uma das descobertas expressivas mais vitais e persistentes.” (CESERANI, 2006, p. 07). Um conto do início do século XIX que já marca essas inquietações que ganharam ainda mais espaço na segunda metade do século é o Der Sandmann, de E. T. A. Hoffmann, publicado em 1816 e considerado por muitos como a obra inaugural da literatura fantástica. Nesse conto, podem ser observados alguns temas e motivos que percorrerão a literatura, especialmente a fantástica, durante todo esse século, como, por

89 A Segunda Revolução Industrial, que marca o advento dos EUA e da Alemanha, junto à França e ao Reino

Unido, até então as principais potências industriais, iniciou-se na segunda metade do século XIX com avanços da indústria química, elétrica, petroleira e de aço. Foi uma época marcada também pelos grandes navios de aço e pelas locomotivas movidas a vapor, além das investidas para o desenvolvimento do avião. Inicia-se também, nesse período, o enlatamento de comidas, a refrigeração mecânica, a produção de bens de consumo em massa, a invenção do telefone e a estabilização da fotografia.

90 A respeito dessas considerações sobre a literatura fantástica, desenvolvemos pesquisa mais detida a respeito em

trabalho anterior. Cf. DRUMMOND, Ana Luíza. Indagações sobre o modo fantástico. Monografia de graduação. Orientador: Prof. Dr. Carlos Eduardo Lima Machado. Universidade Federal de Ouro Preto, Instituto de Ciências Humanas e Sociais. Mariana, 2013.

exemplo, o tema do duplo, que em Der Sandmann aparece tanto na figura de Olímpia, uma autômata, e de certa forma duplo de Clara, quanto nas figuras de Copéllius, o alquimista amigo do pai, e Copolla, o vendedor de binóculos. Mencionamos esse conto de Hoffmann porque ele fornece uma chave de temas que percorrem a literatura do século XIX e se estendem e se ampliam no século seguinte, ocupando a mente de muitos estudiosos da literatura e de outras áreas, especialmente a psicanálise, que teve em Sigmund Freud um ávido leitor desse conto de Hoffmann. Em “O inquietante” (Das unheimliche), Freud (2010) destaca temas do conto que foram posteriormente demasiado estudados, como a castração, o duplo, o medo do desconhecido, o recalcado, a angústia, a irrupção do inconsciente, a simbologia coletiva etc.

O que essa divagação sobre o século XIX e Der Sandmann tem a ver com a ameaça tecnológica latente em Dormir al sol? Tudo. As possibilidades dos avanços óticos, o inventor enigmático, a relação infiel do olhar entre o que é visto e aquele que vê, os experimentos da pseudociência, a boneca autômata que parece humana e outros temas oriundos da techné apontam aspectos da vida cotidiana para os quais o homem do século XIX já começava a prestar maior atenção e a desconfiar. As duas Grandes Guerras do século seguinte comprovarão da maneira mais trágica possível que o advento da técnica e o consequente domínio da natureza traz consigo um lado avassalador: a destruição inevitável. O domínio da natureza, ao alcançar patamares dantes nunca vistos, traz consigo, novamente, o medo da natureza, aquele do qual o homem havia se afastado exatamente pela técnica. Mas agora trata-se de um medo racional, que relega à margem o medo do sobrenatural – marginalizado, esse medo será tema da literatura fantástica do século XIX, especialmente em seus melhores contos. Como aponta Ceserani,

Não é tanto questão de misturar as nossas crenças relativas a qualquer explicação científica do mundo natural (já que, no decorrer do século XIX, os paradigmas científicos que explicavam a natureza e as leis físicas e biológicas que a governam são substituídos um após o outro com crescente frequência); é talvez questão de usar as crenças tradicionais no sobrenatural para explorar novos e inquietantes aspectos do natural, e especialmente para explorar a vida instintiva, material ou sublimada do homem. (CESERANI, 2006, p. 99)

Esse processo de exploração de novos aspectos do natural, da vida instintiva, material ou sublimada do homem, algo que percorre boa parte da literatura fantástica do século XIX, atingirá seu auge no fim do século até sua virada para o século seguinte, com Henry James, que tornará a literatura fantástica, como destaca Italo Calvino (2004, p. 17), “mais invisível e impalpável do que nunca, mera emanação ou vibração psicológica”. Na virada do século, a literatura fantástica, embora com distintas configurações, movidas pelas profundas mudanças culturais, sociais e econômicas do século XX, manteve seu apreço e seus seguidores. Graças à

sua extraordinária capacidade de representação sempre distinta do imaginário, o fantástico atraiu a atenção de grandes escritores, entre eles, Jorge Luis Borges, Franz Kafka, Julio Cortázar e, mais tarde, na segunda metade do século, Adolfo Bioy Casares.

Ao nos voltarmos a Casares, especificamente, vemos que desde A invenção de Morel, romance publicado em 1940, o escritor argentino demonstra sua preocupação com a forma que os avanços tecnológicos invadem a vida humana. Aqui já falamos de avanços que o século anterior via quase como utopia, entre os quais destacam-se o rádio, a televisão, a aviação e o uso comum do automóvel. A techné, que, partindo do fogo, levara milênios para chegar à televisão, é agora vista pelo homem pela sua constante promessa de aumentar o conforto humano: batedeiras, liquidificadores, chuveiros elétricos, máquinas de lavar, ferros de passar, telefone móvel, controle remoto... Se no contexto de A invenção de Morel os objetos mais modernos da tecnologia eram a TV e o rádio, mesmo assim com alcance restrito às classes mais abastadas, em Dormir al sol já lidamos com um mundo que, embora apenas trinta anos (ou seja,

nada se comparado ao processo que levou do fogo à pólvora, por exemplo) distante de 1940, já

tem inserido em seu cotidiano objetos da tecnologia dos quais já não se vê desprovido, seja no campo das telecomunicações, no saneamento, na agricultura, na engenharia, na biologia, nas ciências computacionais etc. As mulheres e homens de 1973, ano da publicação do romance, já haviam encarado as grandes promessas e as maiores mazelas da tecnologia: a Shoah, a conquista da Lua, a destruição das armas nucleares, a libertação oferecida pela pílula anticoncepcional, o acesso rápido e fácil à penicilina. Ainda não sabiam o que viria na sequência: fertilização in vitro, internet, biotecnologia, nanotecnologia, cibernética, Mars Rover, Google Earth, Google Glass e pau de selfie. Embora não soubessem o que estava por vir, a rapidez incomparável com que a modernidade modificava a vida cotidiana tornou-se, em algum momento do século XX, a preocupação central de inúmeros artistas e pensadores, que passaram a dedicar maior atenção àquilo que o homem havia se tornado e poderia vir a se tornar (talvez o lado mais assustador da questão) com o avanço desmedido da techné. Dessa temática desponta a ameaça da promessa tecnológica, sobre a qual nos debruçamos agora.