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O desenvolvimento da teoria da medida: Camille Jordan

Marie-Ennemond-Camille Jordan nasceu em Lyon, França, em 1838. Engenheiro de formação, atuou na área até meados de 1885, o que, entretanto, não o impediu de exercer uma intensa atividade matemática. Foi nomeado examinador na École Polytechnique em 1873 e depois professor em 1876. Entrou para a Academia de Ciên- cias em 1881 e dez anos depois sucedeu o matemático Joseph Liou- ville no Collège de France. Entre 1885 e 1921, assumiu a direção do

Journal de Mathématiques Pures et Apliquées, fundado por Liouville

em 1836. Faleceu em 1822 (Verley, 2012).

Jordan é bastante conhecido pelas suas contribuições à álgebra, notadamente nos campos dos grupos finitos e grupos clássicos. Entretanto, também foi substancial sua contribuição à análise, não

só pelo seu Cours d’analyse de l’École Polytechnique, que, conforme já apontamos (item 5.3), influenciou diversas gerações de matemá- ticos, como também, dentre outras, sua contribuição para o desen- volvimento da teoria da medida. É precisamente desse ponto que falaremos nesta seção.

* * *

Em seu trabalho Remarques sur les intégrales définies, Jordan (1892) faz um breve apanhado sobre a integral de Riemann e sobre alguns resultados de Darboux; em seguida afirma que os resultados desses dois matemáticos são bastante nítidos e deixam bem claro o papel que desempenha a função na integral. Entretanto, ressalva que essa mesma clareza não se aplica quando o assunto é o domí- nio.28 Em outras palavras, Jordan estava interessado em analisar a

natureza da medida dos conjuntos, ou ainda, em desenvolver uma teoria do conteúdo para subconjuntos do n

R. Isso porque em todas as demonstrações de Riemann e Darboux são usados dois fatos que para Jordan não eram autoevidentes: i) todo conjunto tem com- primento determinado, ii) se decompusermos um conjunto em n

partes, a soma dos comprimentos desses n subconjuntos será igual ao comprimento do conjunto original. E Jordan tinha razão, desde os gregos até Riemann, em se tratando de medida, a maior preocu- pação era simplesmente medir, e não definir ou discutir o que isso significava.29

28 Em francês, a palavra utilizada é champ, que literalmente significa campo. Embora seja essa uma tradução possível, visto que essa palavra possui sig- nificado dentro do contexto da matemática, optamos por utilizar domínio porque, em nossas referências em língua portuguesa, essa foi a tradução mais comumente utilizada para a palavra em questão. Por outro lado, sem prejuízo, conforme apontam Baroni, Batarce e Nascimento (2009), é possível ainda o uso da palavra região que, inclusive, pode parece até mais natural dentro do referido contexto.

29 Há quem afirme que nem mesmo Jordan se interessou muito por isso, visto que ele desenvolveu sua teoria da medida para satisfazer o que ele entendia como sendo uma lacuna na teoria da integração, ao contrário, por exemplo, de Lebes- gue, que desenvolveu uma teoria da medida e trouxe a sua integral como uma consequência dela. Para mais detalhes, veja Baroni, Batarce e Nascimento (2009).

Concentrando-se em subconjuntos do plano – ainda que seus resultados permaneçam válidos para n

R –, Jordan coloca:

Decomponhamos esse plano por paralelas aos eixos em qua- drados de lado r. O conjunto daqueles desses quadrados cujos pontos são todos interiores a E forma um domínio S interior aE;o conjunto daqueles que são interiores a E, ou que contêm um ponto de sua fronteira, formam um novo domínioS+S ′,ao qual E é inte- rior. Esses domínios, sendo formados pela reunião de quadrados, possuem áreas determinadas, que podemos também representar por S e S+S ′. Façamos variar a decomposição em quadrados de

tal forma que r tenda a zero: as áreas S e S+S ′ tenderão a limites fixos. (Jordan, 1892, p.77, grifo do autor)30

Portanto, ele toma E um subconjunto limitado arbitrário deR2.

Sendo P uma partição do plano em quadrados de lador, Jordan de- fine S como a união dos quadrados completamente contidos em E,

e S+S ′ a união dos quadrados que contêm ao menos um ponto de

.

E Posto dessa forma, podemos ver que S´ consiste dos quadrados que cobrem a fronteira deE.31

Na demonstração da última afirmação do excerto anteriores, Jordan utiliza sucessivos refinamentos para mostrar que a área de

S pode ser indefinidamente aumentada sem que ultrapasse um limite fixado A. Por outro lado, a área de S+S ′ pode ser reduzi-

30 Décomposons ce plan par des parallèles aux axes en carrés de côtér. L’en- semble de ceux de ces carrés dont tous les points sont intérieurs àEforme un domaineSintérieur àE; l’ensemble de ceux que sont intérieurs àEou qui con- tiennent au point de sa frointière forment un nouveu domaineS+S′, auquelE

est intérieur. Ces domaines, étant formés par la réunion de carrés, ont des aires détermines, qu’on peut également représenter parSetS+S′. Faisons varier la décomposition en carrés, de telle sorte quertende vers zéro: les aires S et

S+S′tendront vers des limites fixes.

31 Dado um subconjuntoXR2, a fronteira( )X de

X é o conjunto de todos os

xX tais que qualquer que seja o aberto 2

U⊂  ,UX≠0eU∩(−X)≠0. Ou seja, todo aberto na fronteira deXcontém tanto pontos deXquanto de seu complementar.

da tanto quanto se queira sem que fique menor o limite a fixado. Ou seja, SA quando r→0, da mesma forma que S+S′→a

quando r→0. Jordan chama, então, A de área interior de E, e a

de área exterior de E. Se S´ tiver zero por limite, então E será dito quadriculável.32 Quando n

ER para n>2, Jordan utiliza outra nomenclatura, diz que E é mensurável se a extensão exterior A é igual à extensão interior a: “As considerações precedentes são evi- dentemente aplicáveis a conjuntos com um número qualquer de di- mensões. Poderemos determinar para cada um deles uma extensão

interior e uma extensão exterior. Se elas coincidem, o conjunto será

dito mensurável” (Jordan, 1892, p.79).33

Isso posto, Jordan define sua integral:

Seja f x y( , ,…) uma função que conserva um valor limitado no interior de um domínio E que supomos mensurável. Decom- ponhamos E em domínios elementares e e1, 2,… Designemos por

M, m o máximo e o mínimo da função f em E; por Mk, mk seu máximo e mínimo em ek, e formemos as somas

,

k k k k

S=

M e s=

m e . Como temos evidentemente que

mmkMkM,

S e s estarão entre

· e ·

k k

M

∑∑

e ==M E m

∑∑

e ==m Em E· ,

32 Em francês, quarrable, i.e., que pode ser dividido em pequenos quadrados. 33 Les considérations précédents sont évidemment applicables aux ensembles

d’un nombre quelconque de dimensions. On pourra déterminer pour chacun d’eux une étendue intérieure et une etendue extérieure. Si elles coincident, l’ensemble sera mesurable.

e seus módulos serão, no máximo, iguais a L E· , L designando o maior dentre os dois módulos M e m (ou o máximo de f no domínio E). O Sr. Darboux mostrou que, se fizermos variar a decomposição de tal modo que os diâmetros dos elementos ten- dam a zero, S e s tenderão a limites fixos. [...] Esse número fixo

lim

T = S se chama integral por excesso da função f x y( , ,)

no interior de E. Demonstramos analogamente que as somas s

tendem ao seu máximo t, que será a integral por falta da função

( , , )

f x y…. Temos evidentemente que Tt. Se T =t, a função será dita integrável, e T =t será sua integral, a qual poderá ser represen- tada pela notação S f x yE ( , ,…)de. (Jordan, 1892, p.81-84)34

Jordan possivelmente optou pela notação S f x yE ( , ,…)de para

diferenciar a sua integral, definida para funções com número de variáveis arbitrário, das integrais de Riemann e Darboux, defini- das para funções de uma variável. Precisamente era essa uma das motivações de Jordan para definir sua medida: para ele, a extensão do conceito da integral de Riemann para os casos n>1 não parecia clara, principalmente porque a sua definição e existência estavam baseadas em um conceito de área que não era suficientemente pre- ciso para gerar uma adequada definição geral (Baroni; Batarce; Nascimento, 2009; Hawkins, 1970). Esse ponto crítico na defini-

34 Soitf x y( , ,)une fonction qui conserve une valeur bornée dans l’interieur d’un domaineE, supposé mesurable. DécomposonsEen domaines élémen- taires mesurables e e1, ,2… Désignons par M, m le maximum et le minimum

de la fonctionf dansE; parMk,mk son maximum et son minimum dansek,

et formons les sommesS=

M ek k,s=

m ek k. Comme on a évidemment k k

mmMM, Set s seront comprises entreM

ek=M E· em

∑∑

ek==m Em E·· , et

leurs modules seront, au plus, égaux àL E· , Ldésignant le plus grand des deux modulesMetm (ou le maximum de f dans le domaineE). M Darboux a montré que, si l’on fait varier la décomposition de telle sorte que les diamètres des éléments tendent vers zéro,Setstendront vers des limites fixes. [...] Ce nombre fixeT=limSse nomme l’intégrale par excès de la fonctionf x y( , ,…)

dans l’intérieur deE. On démontre de même que les sommess tendent vers leur maximumt, qui sera l’intégrale par défaut def x y( , ,…). On a évidemment

Tt. SiT=t, la fonction sera dite intégrable, et T=t sera son intégrale, laquelle pourra être représentée par la notationS f x yE ( , ,…)de.

ção de Riemann já havia sido notado anos antes pelo matemático italiano Giuseppe Peano (1858-1932) em sua obra de 1883 (Peano, 1883).

Considerando que Darboux dividiu o intervalo

[ ]

a b, em um número finito de subintervalos, e, que Jordan admitiu conjuntos mensuráveis arbitrários, podendo ser, em particular, intervalos, fica claro que para o caso n=1, se f é integrável a Riemann, e, con- sequentemente, à Darboux, é também integrável a Jordan. Nessa direção, é possível pensar: podemos generalizar o conceito de inte- gral por meio de uma generalização do conceito de medida? Sim, na realidade, a medida de Jordan influenciou fortemente Émile Borel e Henri Lebesgue, e permitiu o desenvolvimento de um novo concei- to de integral por meio de sua conexão com o conceito de medida, como veremos nas seções seguintes (Wasiolek, 2010).

O desenvolvimento da teoria da medida: Émile