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O Desprezo pela Escatologia

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2.3 Religião na Pós-modernidade

2.3.1 O Desprezo pela Escatologia

Para essa sociedade de consumo, individualizada e em constante movimento, questões como pecado, medo da morte e vida eterna não são preocupações relevantes. No período medieval, o pecado, as superstições e o medo da danação eterna ocuparam o pensamento e regularam a vida dos indivíduos, sendo que “os monges da Idade Média aliaram desprezo do mundo e vergonha de si mesmo numa experiência global do pecado e um pessimismo arraigado do qual os mais cristãos homens da Igreja, sobretudo ele próprios, não se excluíam” (DELUMEAU, 2003, p. 33).

Na contramão desse pensamento, o indivíduo pós-moderno preocupa-se somente com aquilo que lhe é tangível, que tenha capacidade de afetar sua vida aqui e agora. Ainda na modernidade, a vida foi reconfigura e disposta de maneira a considerar somente aquilo que é relevante para a vida terrena. Enveredar pelos caminhos da especulação escatológica não é algo típico de uma sociedade refém do “hoje”. Essa transição foi possível graça a neutralização psicológica que a modernidade lançou sobre “o imperativo morte” (BAUMAN, 1998, p. 215)

Observe que Bauman chama a atenção para a maneira como a sociedade atual lida com a morte, e apresenta três pontos acerca do tratamento que a sociedade pós- moderna dispensa quando labuta com a morte: a retirada do morto e do agonizante da vida diária; fragmentar as ameaças de sobrevivência; e deixar a morte como evento privado e secreto (BAUMAN, 1998, p. 216-218).

Na retirada do morto ou agonizante da vida diária, Bauman (1998, p. 217) mostra que o cuidado com o evento morte é delegado a especialistas no assunto. São eles que cuidam dos preparativos e da rápida cerimônia, geralmente com cremação. O indivíduo preso à dinâmicas exaustivas do dia a dia não presencia tal evento.

Da mesma forma na fragmentação da morte, o indivíduo está alheio às ameaças à sua sobrevivência. A informação repassada que contenha algo sobre a morte, deve chegar ao indivíduo aos poucos, para não lhe furtar a tranquilidade. Por último, a morte a apresentada como uma decorrência natural, mas como evento continua sendo privado e quase secreto. Em decorrência do individualismo e de relações frágeis, somente pessoas muito próximas do morto estarão presentes na

cerimônia. A morte deixa de ser um evento extraordinário e público, para ser pautada pela discrição. Assim:

A morte, disposta outrora pela religião como uma espécie de acontecimento extraordinário que, não obstante, confere significação a todos os acontecimentos ordinários, tornou-se ela própria um acontecimento ordinário – mesmo se é, supostamente, o último numa cadeia de acontecimentos ordinários, o último episódio numa série de episódios. Não mais uma ocorrência momentosa, que conduz à existência de outra, de mais longa duração e mais grave significado, mas meramente “o fim da história” – e as histórias só mantêm o interesse enquanto se desenvolvem e mantêm abertas as possibilidades de surpresa e aventura. Nada ocorre depois que a história acaba – e, assim, aqueles que se fazem encarregados desse nada, os especialistas religiosos, não tem muito a oferecer àqueles que estão absortos em viver a história (BAUMAN, 1998, p. 219).

O texto acima é surpreendente em descrever o espírito pós-moderno em relação às expectativas com a religião. Se as únicas preocupações dos indivíduos estão relacionadas à vida material que levam aqui, os religiosos nada têm a dizer a eles perante o evento morte. A religião e sua escatologia perdem espaço nesta área da vida humana. A vasta produção teológica versando sobre uma vida no além, não cativa o interesse desses indivíduos que experienciam suas relações em uma sociedade individualista, tecnológica, globalizada e de consumo. Para ser relevante e abrangente, a religião ou a espiritualidade precisa estar em consonância com esses valores. Somente uma religião pós-moderna que trabalhe com consumidores, com pessoas ávidas por produtos espirituais que organizem suas vidas, por especialistas que lhes digam o que devem fazer, mas sem alterar sua “paz” ou seu estilo de vida. Assim:

Se a versão religiosa da experiência máxima costumava reconciliar o fiel com uma vida de miséria e privação, a versão pós-moderna reconcilia seus seguidores com uma vida organizada em torno do dever de um consumo ávido e permanente, embora nunca definitivamente satisfatório (BAUMAN, 1998, p. 224).

A religião pós-moderna oferece cursos, encontros, fórmulas para relacionamentos, autoestima e aconselhamentos. Longas narrativas e dogmas não usufruem de muita credibilidade nesse ambiente. Bauman diz que:

A pós-modernidade é a era dos especialistas em “identificar problemas”, dos restauradores da personalidade, dos guias de casamento, dos autores dos livros de “autoafirmação”: é a era do “surto de aconselhamento” (BAUMAN, 1998, p. 221).

Depreende-se, então, que a religião ou espiritualidade pós-moderna é profundamente marcada pela experiência. A relação com a espiritualidade deve ir de encontro com as necessidades do indivíduo, e não o contrário. Ao fazer uma analogia com a “experiência máxima” sem relatada na religião em sua forma tradicional, sendo a experiência máxima ou completa ligada a algum místico ou santos que teve contato com a divindade, Bauman (1998, p. 223) afirma que o indivíduo pós-moderno também está em busca dessas experiências “completas” ou “máximas”, momento em que ele atribui transcendência a esta busca. Ele afirma que a essência religiosa pela experiência completa ainda paira sobre a sociedade, só que a experiência é vivida “mediante exercícios, contemplação e auto-concentração, rompendo bloqueios psíquicos e constrangimentos produzidos pelas convenções (BAUMAN, 1998, p. 225). Ainda nesse sentido, Bauman afirma que:

O truque é comprimir a eternidade de modo a ajusta-la, inteira, à duração de uma existência individual. A incerteza de uma vida mortal em um universo imortal foi finalmente resolvida: agora é possível parar de se preocupar com as coisas eternas sem perder as maravilhas da eternidade. Com efeito, ao longo de uma vida mortal é possível extrair tudo aquilo que a eternidade poderia oferecer (BAUMAN, 2009, p. 15).

De qualquer forma, para Bauman, a pós-modernidade carrega essa áurea de transcendência, de experiência de completude. Novamente, a questão escatológica não tem importância. O que interessa é a experiência.

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