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O destino da diversificação

4 A INSTITUCIONALIZAÇÃO ESCOLARIZADA DA ATIVIDADE MUSICAL

4.3 O destino da diversificação

A atividade musical escolarizada não tem o sentido autêntico de atividade convivencial13,

que é o reverso da produção industrial. Na atividade escolarizada, o músico é ele próprio o instrumento a ser lapidado. A técnica ocupa o lugar do humano. A padronização rege a atividade. Esse é o sentido do monopólio radical que, para o autor, é uma espécie de domínio muito além do controle exclusivo. Ele transforma o que é artificial em aparentemente natural, reduzindo a escolha das pessoas. A escola exerceria um monopólio radical sobre o saber, ao redefini-lo como educação. Nesse avesso da realidade, os autodidatas, por exemplo, seriam os não-educados. Quando a ferramenta programada despoja o indivíduo de sua possibilidade de fazer, aí existe o monopólio radical. O domínio da ferramenta instaura o consumo obrigatório e, com isso, limita a autonomia da pessoa. A industrialização dos valores é o reflexo do monopólio radical. Nele, limitam-se os recursos, provoca-se a subida do custo unitário da prestação de serviços e as pessoas são instaladas dentro da dependência.

Mas as atividades musicais afrontam o monopólio radical. Diversas manifestações musicais não se atrelaram e ainda resistem à escolarização. A escola de música, diferentemente da escola comum, não se constitui como um monopólio radical. A nosso ver, a atividade musical admite, seja do ponto de vista de sua gênese, de sua estrutura e de sua função, elementos que lhe imprimem o destino da diversificação. Dado o seu caráter, ela opõe certa resistência à escolarização, que visa à padronização. Assim, a escolarização da atividade musical, pelo menos até o momento, ainda não conseguiu capturar a grande maioria das formas diversas de expressão musical.

Como qualquer atividade criadora, a música emerge do drama próprio da vida, de necessidades reais. Quaisquer imposições de uniformização, que são próprias do processo de escolarização, subtraem o que lhe é essencial, ao desenraizá-la da vida

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Para Illich (1976) “a convivencialidade é a liberdade individual realizada dentro de um processo de produção, no seio de uma sociedade equipada com ferramentas eficazes”.

concretamente vivida, de onde provém o material que, artisticamente, é enformado. Talvez, seja por isso mesmo que não se pode dizer que haja, na sociedade, a hegemonia de uma determinada forma musical, embora, sem dúvidas, haja tentativas, inclusive com intervenção da própria economia, de valorizar certas formas de expressão e de desvalorizar outras tantas.

Algumas reflexões em educação musical na atualidade têm se acercado de perspectivas da aprendizagem musical para além dos muros da escola. Elas têm demonstrado que, independentemente de currículos, das escolas de música e dos conservatórios, muitas pessoas continuam buscando desenvolver suas musicalidades, aprendendo a tocar muito bem um instrumento e se acercando dos meios necessários para isso, das diversas ferramentas culturais, sem, muitas vezes, nem terem passado perto do portão das instituições socialmente responsáveis pelo ensino de música. Essas pessoas utilizam-se de modos diferenciados de aprender, de acordo com suas necessidades e possibilidades. Buscam acercar-se de pessoas e estilos a que atribuem sentido verdadeiro. Delimitam seu tempo de estudo, gastos, materiais, métodos, modos de aprender e responsabilizam- se por si mesmas em suas próprias trajetórias individuais. Muitos deles são hoje reconhecidos como músicos competentes e atuantes (RECOVA, 2006). Contudo, é interessante que também, muitos desses mesmos músicos costumam duvidar de suas próprias habilidades, o que é uma conseqüência da crença na escolarização, por não possuírem uma educação formal ou uma certificação escolar. Grupos diversos em comunidades que têm um acesso mais difícil à escolarização também têm procurado seu próprio caminho de expressão musical, criando seus tipos e formas de expressão musical e suas identidades artísticas.

A roda de choro é um exemplo dessa resistência. De acordo com De Lara Filho (2008), a marca principal dessa atividade é a informalidade. Nela, não se costuma definir as pessoas que irão tocar, tratando-se mais de um encontro entre músicos. Com freqüência, a roda de choro é um encontro entre pessoas, estando vinculado ao lazer. Não costuma haver ensaio para esses encontros, permitindo-se a participação de outros instrumentistas, que não os músicos que habitualmente tocam. O contexto é originado pela própria música e é em função dela que a atividade acontece. As pessoas e as relações que se estabelecem nessa atividade são fatores de grande importância na roda. Assim, a roda de choro representa uma vivência autêntica de atividade musical que evidencia um campo de resistência à escolarização.

Mesmo a internet tem sido hoje ambiente de troca de conhecimento musical, ambiente este que se expande cada vez mais, ampliando a possibilidade de uma busca liberta dos cercos a que a escola tem submetido a vivência da expressão musical. Illich (1979) parecia antever a situação que começa a se instaurar nesse início de século XXI, nesse terceiro milênio. Trata-se de um novo contexto, onde, por meio da internet, abrem-se possibilidades de novos diálogos, sem limite de distância e de agrupamento por interesses. Cursos não presenciais, salas de bate papo, discussões via internet, informações em tempo real e, ainda, autonomia e administração pessoal do conhecimento que se deseja adquirir.

Para Postman (2003), a tecnologia poderia levar a uma maior liberdade em relação à busca do conhecimento e de agrupamentos igualmente livres, com base em reciprocidades sobe o que se deseja aprender. Isso não significa, em hipótese alguma, a morte da figura do professor, já que sempre haverá pessoas que, por sua experiência, podem compartilhá-la. Crê-se que a partir de livres organizações em torno dos conhecimentos e que possuam maior sentido para quem os compartilha seja possível intercambiar também problemas e soluções de ordem social. Para o autor, a idéia de uma escola consistiria em indivíduos que deveriam aprender em um ambiente em que as necessidades individuais existiriam em relação aos interesses grupais.

Como afirma Illich (1979), a escola apenas enseja instrução, porém, não garante aprendizagem. O sistema escolar monopoliza sua distribuição. A maior parte dos conhecimentos significativos para os indivíduos acontece fora da escola. Desescolarizar o conhecimento pode não parecer uma tarefa tão fácil assim e parece algo altamente subversivo, à primeira vista, a destruição de um legado da sociedade. Mas crê-se que Illich (1979) indica caminhos viáveis para reestruturação desse sistema dentro dessa mesma sociedade. Tal caminho passaria pela reutilização dos espaços escolares, nas bases de agrupamento por interesses, pela concessão de créditos para todos para que possam acessar os conhecimentos que lhes interessam e que seriam ampliados e utilizados de acordo com as necessidades pessoais. Já que tais pessoas também se constituem em meio a uma sociedade, provavelmente não desconsiderariam os desejos grupais. Talvez fosse uma forma mais legítima de se viver em sociedade. As mudanças estão aí. Resta à comunidade escolar analisar aonde chegamos com o modelo secular de escola instituída em nossa sociedade e, ainda, como situar o conhecimento em meio a

tais mudanças em prol de uma humanidade que seja mais digna e menos excludente. Qual seria então o papel do professor diante de tudo isso? Ainda haveria lugar para ele? No XIX capítulo de Psicologia Pedagógica, Vigotski (2001 b) apresenta suas idéias sobre o trabalho do professor e da natureza psicológica desse trabalho. Segundo ele, atuar no papel de mera fonte de conhecimentos, como livro, como dicionário de consulta ou ainda como um manual ou um demonstrador é um recurso auxiliar de educação, o que constituiria nove décimos do conteúdo do trabalho do professor. Um mestre deveria instigar o aluno a procurar conhecimento por conta própria, incitando as suas energias ativas. Uma aula recebida de forma pronta transforma o aluno em um ser passivo. É um preconceito afirmar que o mestre educa, pois o segredo verdadeiro da educação é não educar. O aluno é educado por ele mesmo. O processo educativo é um ato constante de criação que deve ser orientado para o cultivo da vida. Por isso, professores são artistas e, como tal, devem estar imbuídos de partilhar a vida como ato criativo, buscando resolver as questões da vida. O processo de desenvolvimento está subordinado às leis da natureza, como tudo o mais. Desse modo, o papel do professor é o de organizador do meio social, podendo ser substituído quando ele atua no papel de inundar os alunos com conhecimento por dicionários, manuais, ou mapas. O professor que atua como um gramofone, que canta o que lhe dita o disco, que não possui a sua própria voz, é apenas instrumento da educação; está em perigo. Essa é a caricatura tradicional do professor, figura humorística, objeto de brincadeiras e zombarias.

Para Vigotski (2001 a), a pedagogia é uma ciência da educação que deveria compreender os modos com que sua ação se organiza, bem como suas formas de agir e seus procedimentos. Deveria esclarecer as leis de desenvolvimento do organismo sobre as quais pretende agir. Abrange, assim, várias ciências, integrando, por exemplo, as ciências biológicas no que refere ao desenvolvimento da criança ou, ainda, por seus fins e normas, às ciências filosóficas e normativas. Tem por base ciências auxiliares tais como a ética social que indica os objetivos gerais e as tarefas da educação, bem como a psicologia conectada à fisiologia que indica os modos de solução para algumas tarefas. Uma das faces da educação que o autor aponta como fator essencial no desenvolvimento é a educação pelo trabalho que colocaria as crianças em reações ativas e criadoras com os processos que lhe competem. A criança descobria o lugar e o significado de procedimentos técnicos que são partes de um todo geral. Aí, as aspirações infantis possuiriam verdadeiro sentido. A educação pelo trabalho, para o autor, funde e

integra o processo pedagógico. Ela deveria ser pensada como processo criativo da vida, inalienável de cada um.

Compreende-se que para tal mudança, é necessário que se busquem outros espaços, novos contextos, formas de livre organização que acontecem verdadeiramente no transcorrer da vida e das relações. Conceber aprendizagem e desenvolvimento como um processo pessoal e intransferível, ininterrupto, requer responsabilidade consigo mesmo, mediante o crescimento individual e perante as relações. Para esse ponto de vista, não existem seres acabados, prontos, engessados. Não há hierarquias. Nem mais nem menos, não há melhor, nem pior, mas seres que convivem, trocam, dialogam e compartilham experiências em cada atividade humana. Por meio de vivências dessa natureza, avaliações que buscam medir não seriam mais necessárias. Talvez, o significado que a palavra avaliação assumiu nesse contexto de instituição escolar como quantificadora e padronizadora de comportamentos pudesse finalmente desaparecer do dicionário. As falsas dificuldades de aprendizagem e, por conseqüência, o conceito de amusicalidade, dom, talento ou similares também deixariam de ter o significado que hoje possuem, principalmente, no contexto da escola de música.

Galvão (2007) considera que, de fato, não se pode identificar o termo talento como uma causa maior de habilidade. Ele tem sido na nossa sociedade, de certa forma, um termo de importância social positiva entre aqueles que receberam esse tipo de denominação, pois que, ao serem reconhecidos como talentosos, comprometem-se com um modo decisivo de estudo deliberado, passando a adiar gratificações sociais e recreacionais. Porém, a denominação de falta de talento, alerta o autor, poderia levar à frustração e à desistência, pois haveria uma auto-percepção negativa da própria habilidade, das possibilidades inerentes a cada pessoa. Há uma grande complexidade na aprendizagem humana que é conseqüência de múltiplas interações. Talento e desempenho seriam construtos sociais que costumam variar de modo significativo no tempo e de acordo com cada contexto cultural. Para o autor, a natureza multifacetada dos processos de aprendizagem em música requer o uso de mais estratégias de alta qualidade. Elas envolveriam o conhecimento subjacente a cada tradição cultural (GALVÃO 2007 a).

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