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4 A INSTITUCIONALIZAÇÃO ESCOLARIZADA DA ATIVIDADE MUSICAL

4.5 Palavras finais

Cada tipo de atividade que se pode experienciar na cultura humana é, em princípio, condição possibilitadora de algum modo de desenvolvimento. A atividade musical carrega várias possibilidades distintas de manifestação da musicalidade, seja pela diferenciação dos instrumentos específicos, seja pelos diversos estilos musicais ou de outros caracteres. Há muito trabalho investigativo ainda por ser feito. Poder-se-ia perguntar, por exemplo, quais seriam as peculiaridades das distintas formas de atividade musical a serem ainda investigadas? Crê-se também que o estudo da ontogênese da musicalidade em perspectiva da psicologia Vigotskiana, algo que, pelo que se sabe, até o momento, ainda não foi edificado, seria igualmente importante para uma compreensão da atividade musical e da musicalidade. Outro ponto que também merece aprofundamento é o conceito de social. Ao que tudo indica, ele tem sido utilizado epifenomenalmente no campo de investigação da educação musical. A psicologia histórico-cultural poderia auxiliar no seu entendimento, principalmente, pelo fato de não separar nem de agregar apenas superficialmente o indivíduo e o social, concebendo-os como uma unidade. Espera-se, enfim, que este trabalho tenha contribuído para mostrar como a psicologia histórico-cultural enseja alguma compreensão acerca da atividade humana, especialmente, a de cunho artístico. O pensamento de Vigotski, assim como o de outros grandes pensadores, atravessa a história, é atemporal. Não se deve compreender a atualidade de um autor em relação à sua distância do tempo atual. Se assim fosse, Platão, Sócrates, Freud e até mesmo Jesus Cristo, seriam ultrapassados e a própria ciência teria que reinventar suas bases, a cada nova investigação.

A noção de que o presente científico seria o ápice explicativo, que haveria um desenvolvimento que culminaria no hoje, representa a face de uma espécie de etnocentrismo científico. O presente não é o auge do conhecimento científico. Ciência é mais que essa falsa noção de atualidade. Para realizá-la, é preciso lançar os olhos para uma dimensão diacrônica do conhecimento e reconhecer os diamantes incrustados na terra, cujo valor transcende ao período em que eles lá estão e cuja permanência, de outra forma, representa seu valor. Vigotski é um desses diamantes.

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TRABALHOS PUBLICADOS COM BASE NA TESE14

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______Crítica à escolarização da atividade musical. Em Anais da VII ABEM/CO (Associação Brasileira de Educação Musical / Centro-Oeste) Brasília UnB, 2008. Aceite em 14/08/2008.

14

Trabalhos completos em anexo (formatação de cada anexo de acordo com o original).

15 Meus agradecimentos especiais à sempre presente e dedicada amiga Zoia Prestes, que com

zelo, competência e carinho traduziu o artigo para o idioma russo. Também por compartilhar sua “alma russa” e a beleza, a história e a cultura da Rússia.

16 O meu muito obrigada à Iuri Antonov, por sua participação e seu empenho na publicação desse

artigo em São Petersburgo, Rússia. .

ANEXOA

A MÚSICA SEM DOM OU A MÚSICA COMO DOM PARA TODOS QUE SE QUEREM MÚSICOS (Музыка. без дара или музыка как дар для всех, кто тex хочет быть

Patrícia Pederiva e Elizabeth Tunes

(Artigo original em português, posteriormente traduzido para o idioma russo)

(...) Só privilegiados têm ouvido igual ao seu, eu possuo apenas o que Deus me deu (...) Você com sua música esqueceu o principal (...) que no peito dos desafinados também bate um coração

(Tom Jobim)

Resumo

Este artigo é uma breve reflexão sobre a ideologia do dom ou o mito do talento inato que permeia silenciosamente o processo de ensino-aprendizagem de instrumentistas musicais. Procura-se mostrar que esse mito é uma construção social baseada em pressupostos equivocados sobre a natureza da atividade musical e que, instituído sob o monopólio de uma norma, gera a exclusão de muitos da possibilidade de expressão de sua experiência social por meio da atividade musical.

Palavras-chave: atividade musical, talento, exclusão Abstract

This paper is a concise reflection about the myth of the "gift" that underlines the common sense in the learning process of music performers. It postulates that "gift" is a social construction and that myth promotes equivocated ideas about the nature of musical activity. Thus, one questionable consequence of that myth is a rule for the exclusion of "ungifted" people and the possibility of expression of their social experience by musical activity.

Ainda que pesquisadores e educadores musicais muito se esforcem em busca de compreender modos eficientes para o processo ensino-aprendizagem nesse campo, o mito do dom inato permanece, gerando, para os que não o possuem, um aprendizado psicologicamente fadado ao fracasso (PEDERIVA, 2005). Assim, a expressão musical por meio de instrumentos é considerada como domínio de raros “talentos” – visão que se faz presente na sociedade, de um modo geral, e, principalmente, no contexto das escolas de músicas especializadas e nos conservatórios - e o músico, o resultado de uma genialidade individualizada. Por sua vez, aqueles que não se adaptam ao padrão de aprendizagem estabelecido pela escola de música formal, ou seja, o padrão de corpos previamente aptos para a atividade; tônus muscular apropriado, audição capaz de reconhecer e identificar freqüências, resposta física rápida para a execução de ritmos, reconhecimento e reprodução de tempos e dinâmicas, entre outros, são excluídos do processo ensino-aprendizagem. São entendidos como uma espécie de seres amusicais, ou seja, pessoas que não possuem capacidade e habilidade inatas para serem músicos. A crença no talento ou no dom inato acaba por implicar, dessa forma, um distanciamento entre seres humanos e a música. Gera descrença nas possibilidades humanas e, assim, a exclusão. E, de fato, no âmbito do ensino formal da música, a exclusão é um acontecimento, ainda que veladamente praticado e discursivamente negado entre professores (PEDERIVA, 2005).

De um modo geral, o processo formal de ensino-aprendizagem da música ocorre com base no modelo tutorial. Ao professor cabe tecer a pauta de aprendizagem do aluno, marcada pela ênfase na repetição e pela busca de um padrão consensual de virtuosismo. Ao aluno cabe aderir à pauta do professor, ainda que não lhe confira qualquer sentido pessoal, abandonando seus desejos e intenções musicais, distanciando-se e alienando- se de seu ambiente social musical imediato. É assim que o ensino formal de música transmite, em seu currículo oculto (Illich, 1979), a ideologia segundo a qual há um tipo de música, a verdadeira música, de qualidade, que é ensinado na escola e outro, vulgar, de qualidade duvidosa, que faz parte do cotidiano da vida. Criam-se, então, dois universos musicais distintos, não poucas vezes até tomados como antagônicos, com pouca comunicação entre si, se alguma existir.

Entretanto, nem sempre foi assim. Em diferentes épocas da humanidade, a atividade musical humana e suas diferentes formas de expressão foram concebidas de outros modos. Cabe, portanto, indagar quando, como e em que condições emergiu o modo

excludente de conceber a corporeidade e a atividade musical humanas. Neste trabalho, pretende-se dar início a essa reflexão.

Da natureza e origem da música: a música primitiva

O que é a música? Como surgiu o fazer musical? Com que propósitos seres humanos se expressam musicalmente? Qual o sentido dessa atividade?

O mundo dos sons é o mundo da música. É um processo comunicativo, de transmissão de estados subjetivos e de emoções, de vivência e de convivência, de transmissão de cultura e valores culturais e, ao mesmo tempo, de criação e de recriação.

A música, em sua origem, foi somente uma atividade muscular de membros e laringe, integrada às condições de luta pela vida. Desenvolveu-se com o aparecimento e crescimento das sociedades humanas. Esteve vinculada à magia, à religião, à ética, à terapêutica, à política, aos jogos e ao prazer, constituindo aspecto fundamental das civilizações antigas. De geração em geração, pela imitação, assegurou-se a sua transmissão, que depois foi garantida pelo ensino sistemático (CANDÉ, 1994).

A música seria, segundo Candé (1994), um privilégio da espécie humana, já que o som musical, definido como variações periódicas de pressão, cuja freqüência e amplitude são variáveis em limites definidos, acontece quando provocados pelo próprio ser humano. Desde sua origem, o som era um artefato exigindo uma atividade projetiva e um conteúdo informativo. No paleolítico, a música surge a partir de combinações criadoras, de novas associações realizadas por um indivíduo, e que, quando transmitidas a outros, não mais perecem com ele.

Há 50.000 anos, o Homo Sapiens surge concomitantemente ao Homo Musicus, cuja parte anterior do cérebro evolui significativamente do homem de Neandertal. Mas, só se pode falar em música, quando as manifestações sonoras acontecem para além de situações esporádicas e individuais,supondo uma organização mínima, e um projeto de adaptação dos corpos sonoros, indicando uma finalidade prática, e, para, além disso, artística.

As atividades pré-musicais, segundo Candé (1994), podem ter surgido em várias partes do mundo pré-histórico, simultânea ou sucessivamente. Dada a escassez de evidências empíricas, somente é possível supor sucessões hipotéticas das etapas evolutivas dos

fenômenos musicais. Assim, primeiramente, parece ter havido uma organização rítmica rudimentar, por meio de batidas com bastões, batidas percutidas nos corpos, e por meio de objetos que podem ser sacudidos ou entrechocados em função dos movimentos vitais. Seqüencialmente, também se supõe que tenha havido imitação dos ritmos e dos ruídos da natureza tanto pela boca quanto pela laringe. Válvula de escape das sensações e emoções primárias, o grito também é um meio de expressão das necessidades elementares. Posterior a isso, é possível que o homem primitivo tenha cultivado a intenção expressiva de estados subjetivos e emoções, provocando variações na altura e no timbre da voz, adaptando-a progressivamente às variações voluntárias.

O Homo sapiens inicia, então, a fabricação de instrumentos sonoros moldados para a expressão artística, imitando também os ruídos da natureza, que possuíam significado mágico. Em sua evolução encefálica e muscular, o homem torna-se apto a falar e a cantar. É quando se pode distinguir, de maneira clara, a expressão gestual sonorizada da linguagem falada da dança e da música instrumental. Isso acontece no contexto das sociedades em formação, onde os fenômenos sonoros são provocados e organizados de modo sistemático. Então, proximamente a 9.000 a.C., nascem as primeiras civilizações musicais (CANDÉ, 1994).

Da tradição oral à notação musical

A música, durante milênios, foi uma arte de tradição oral, como também o foram diversas outras atividades (a literatura, por exemplo). A preocupação de conservar e transmitir a idéia musical com exatidão à posteridade é recente e comum à civilização ocidental. A transmissão da cultura musical puramente oral restringia-se, essencialmente, a regras fundamentais. Fosse pelo improviso, ou pela interpretação renovada de fórmulas tradicionais, a música vivia em constante devir. Era mais um modo de recitação do que uma composição musical, tal como hoje se concebe.

É a partir do século XVI que a partitura passa a ser o objeto da música por excelência. A influência da notação cria uma categoria de músicos executantes, diferenciada dos criadores, acentuando a especialização que se dá em prejuízo da cultura da música coletiva. É nesse momento que os anjos musicistas das iconografias, a inspiração angélica, perdem lugar para os profissionais lendo, e para a engenhosidade dos compositores. Assim, por meio da notação, estabelece-se a priori como os sons devem

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