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O desvio de finalidade no momento de instituição da exação

6. A INCONSTITUCIONALIDADE DO DESVIO DE FINALIDADE E DA

6.1. PLANO NORMATIVO

6.1.2. O desvio de finalidade no momento de instituição da exação

Conforme aduz Paulo Ayres Barreto, no plano legal existem algumas possibilidades de desvio de finalidade a serem contempladas. O legislador infraconstitucional poderia, hipoteticamente, na lei instituidora da exação: (a) não prever qualquer tipo de vinculação do produto arrecadado a órgão, fundo ou despesa específica; ou (b) prever a vinculação do produto da arrecadação dos tributos finalísticos à despesa ou finalidade diversa daquela originariamente estatuída no texto constitucional. Não obstante, poderia também o legislador infraconstitucional, mediante edição de nova lei e após a criação da exação em conformidade com o texto constitucional, entender por bem (c) destinar o produto de sua arrecadação a outro fim que não aquele inicialmente previsto na lei instituidora da exação; (d) ou destinar parte do produto de sua arrecadação para o custeio de despesas genéricas.

Nas duas primeiras hipóteses ventiladas acima, não estaríamos, ipso facto, diante de um tributo finalístico. Isso porque, conforme analisado até o momento no presente trabalho, diante das finalidades concebidas pela Constituição de 1988, não

se pode conceber, para os tributos cujo modelo de validação é eminentemente finalístico, qualquer forma de desprezo ou inobservância do aspecto efetivamente distintivo dessa espécie tributária217.

A previsão legal da destinação é tão importante que levou Roque Antonio Carraza, com estribo nas lições de Pontes de Miranda, a invocar a injuridicidade da própria cobrança, se feita nesses termos. Segundo o autor, é imperativo que a lei instituidora da exação faça previsão expressa do destino que se dará às receitas das contribuições, sendo inconstitucional eventual delegação que porventura venha prevista na lei criadora do tributo218.

Ademais, se a finalidade e a consequente destinação do produto da arrecadação dos tributos finalísticos condicionam, inclusive, o exercício regular da competência impositiva, é imperioso reconhecer a existência de um critério finalístico na composição da estrutura normativa, não podendo o legislador infraconstitucional “esquecer” de destacar o órgão, fundo ou despesa específica para o qual os valores arrecadados com o tributo se destinarão.

Como a denominação pouco importa para aferição da natureza jurídica de um tributo, conforme informa o art. 4º, inciso I, do CTN, tais exações seriam tributos outros, que não os finalísticos, mesmo se denominados como tais.

Quanto às duas últimas hipóteses mencionadas linhas acima, essas poderão ser analisadas e rebatidas conjuntamente enquanto analisamos previsões expressas da

217

Ao se debruçar sobre esse mesmo problema, Paulo Ayres Barreto fez a seguintes elucidações: “A norma que estabelece a vinculação do pagamento de contribuição a órgão, fundo ou despesa tem, para fins tributários, o mesmo relevo da regra-matriz de incidência. Contribuição, como espécie tributária autônoma, pressupõe o cumprimento de duas condutas distintas: (i) o dever jurídico do contribuinte de pagar o tributo; e (ii) o dever jurídico de o ente tributante de aplicar o crédito tributário recebido no respectivo órgão, fundo ou despesa. Cumpridas ambas as condutas, estará, de uma lado, extinto o crédito tributário e, de outro, restará desonerado o ente tributante da devolução do montante recebido. Pago o tributo, mas desviado o montante arrecadado, tem o contribuinte assegurada o direito subjetivo de repetir o indébito tributário. Se o tributo não for pago pelo contribuinte, assegura-se ao ente tributante o direito subjetivo de exigir, de forma coativa, o adimplemento da obrigação.”(BARRETO, Paulo Ayres. Contribuições: regime jurídico, destinação e controle. São Paulo: Noeses, 2011, p.168).

218

CARRAZA, Roque Antônio. Curso de direito constitucional tributário. 28ª ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 595.

Constituição, de modo a verificar casos em que eventualmente tais medidas poderiam ser tomadas pelo legislador infraconstitucional e suas consequências.

Veja-se as contribuições previstas no art. 195, inciso I, alínea a, e do inciso II, da

Constituição de 1988.219 A primeira, devida pelo empregador, empresa ou entidade

equiparada incide sobre a folha de salários e demais rendimentos do trabalho. A segunda, por sua vez, é devida pelo trabalhador e demais segurados da previdência social.

Nos dois casos, como é cediço, a própria Constituição de 1988 vinculou o produto da arrecadação de ambas as contribuições exclusivamente para o financiamento das despesas relativas ao pagamento de benefícios da previdência social de que trata o art. 201220. Tal vinculação, promovida pelo constituinte derivado, encontra guarida no inciso XI, do art. 167, da CF/88221. Em outras palavras: a Constituição vinculou os recursos obtidos com tais contribuições somente para o custeio da previdência social, e nada mais. Nem para saúde, nem para a assistência. O produto da arrecadação dessas contribuições deverá ser totalmente voltado para a previdência social.

Se o legislador infraconstitucional, contudo, após a instituição das referidas exações, entender por bem editar nova lei que traga em algum de seus dispositivos previsões

219

“Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais: I - do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre: a) a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício; [...] II - do trabalhador e dos demais segurados da previdência social, não incidindo contribuição sobre aposentadoria e pensão concedidas pelo regime geral de previdência social de que trata o art. 201;”.

220

“A previdência social será organizada sob a forma de regime geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial, e atenderá, nos termos da lei, a:”.

221

Eis o que prevê o dispositivo: “Art. 167. São vedados:[...] XI - a utilização dos recursos provenientes das contribuições sociais de que trata o art. 195, I, a, e II, para a realização de despesas distintas do pagamento de benefícios do regime geral de previdência social de que trata o art. 201”.

de destinação incompatíveis com a finalidade da contribuição inicialmente instituída,

a contribuição original torna-se inconstitucional.222

Fica evidente que o legislador infraconstitucional ao alterar a vinculação do produto da arrecadação de tais contribuições acaba alterando, pela mesma via, a finalidade específica do tributo. No caso hipotético tratado acima, salta aos olhos que tais exações foram pensadas para servirem de instrumento de atuação da União no custeio de despesas relativas à previdência social. Por conseguinte, se ocorrer a desafetação parcial ou total do produto de sua arrecadação, vinculando-se à assistência, por exemplo, o legislador deturpará o regime jurídico-constitucional das contribuições do art. 195, inciso I, alínea a, e inciso II.

Não obstante, seguindo o raciocínio também esposado por Marco Aurélio Greco223,

se no caso das contribuições do art. 195, inciso I, alínea a, e inciso II, o legislador, posteriormente à instituição da exação, editar nova lei prevendo a destinação das receitas dessas contribuições para outra finalidade que não o custeio da previdência social, o que terá feito, na verdade, é instituir nova contribuição. Nesse caso, tal contribuição será inconstitucional se incidir sobre as bases previstas nos dispositivos acima citados, uma vez que tais bases estão atreladas a uma única finalidade, qual seja: financiar o regime de previdência social. Do mesmo entendimento partilha

Humberto Ávila:224

Se o aspecto distintivo das contribuições é a sua vinculação a finalidades estatais permanentes, a escolha constitucional de determinadas bases de cálculo como fontes de promoção de

222

No mesmo sentido, cf. BARRETO, Paulo Ayres. Contribuições: regime jurídico, destinação e controle.São Paulo: Noeses, 2011, p.167.

223

Afirma o ilustre professor: “Esta singela constatação acarreta uma consequencia seriíssima, qual seja a de que alterada a finalidade da exigência altera-se a própria exigência e, por isso, ou ela deixa de ter fundamento constitucional, ou só poderá subsistir como nova contribuição se a nova finalidade for admitida constitucionalmente e, mesmo assim, com as restrições que eventualmente sejam aplicáveis a esta nova figura por força da Constituição. Por exemplo, uma contribuição para a seguridade social que é alterada em sua finalidade para assumir outra feição deixará de ser a contribuição de seguridade social que fora originalmente instituída; apesar disso poderá eventualmente subsistir se vier a ser instituída por lei complementar (artigo 195, § 4°, combinado com artigo 154, I, da CF-88).” (Contribuições: (uma figura ‘sui geneneris’). São Paulo, Dialética, 2000, p.150).

224

Cf. ÁVILA, Humberto. Sistema constitucional tributário: de acordo com emenda constitucional n. 42, de 19.12.03. São Paulo: Saraiva, 2004, p.261.

determinadas finalidades pré-exclui sua utilização para a promoção de outras finalidades. A própria Constituição utiliza, no caso das contribuições sociais para 'financiamento' da seguridade social, o termo 'fontes', determinando, inclusive, que a lei complementar poderá instituir 'outras fontes' destinadas a garantir a manutenção ou expansão da seguridade social. Ao fazê-lo, a Constituição vinculou determinadas bases de cálculo a determinadas finalidades e, por consequência, vedou indiretamente a utilização dessas bases como fontes de custeio de outras finalidades.

No mais, cumpre ressaltar que o desvio de finalidade e desafetação aqui estudados ofenderiam o comando constitucional previsto no art. 165, § 5°, que prevê a existência de um orçamento autônomo para a seguridade social, abrangendo as entidades e órgãos a ela vinculados, bem como fundos e fundações mantidas pelo Poder Público.

Assim sendo, tanto a finalidade como o produto da arrecadação dos tributos finalísticos deverão guardar vinculação com o desenho constitucional que lhes foi previsto. Seja no caso das contribuições, quer sejam elas sociais, interventivas ou corporativas, seja no caso dos empréstimos compulsórios, fato é que a eleição das finalidades e do destino da arrecadação não poderá ser contrária ao perfil dos tributos finalísticos traçado na Constituição.