• Nenhum resultado encontrado

2. O diálogo como instrumento de ‘conscientização’ em Paulo Freire

2.1. O diálogo como instrumento de ‘reconhecimento’ em Sócrates

Para Sócrates o ato de conhecer processa-se com base em elementos contidos no próprio sujeito que conhece. Os indivíduos, portanto, são portadores do conteúdo dos conceitos pelos quais conhecem o mundo. Assim, não há conhecimento dado, ou passado, ou adquirido por alguém. Há uma passagem na qual Sócrates exemplifica o processo de aprendizado de seu interlocutor. Trata-se do diálogo intitulado Menão. Nesse diálogo, Sócrates desempenha o papel central, e o problema discutido é de natureza moral, entretanto o diálogo não se resolve numa conclusão positiva. (Koyré,1963:9) Sócrates afirma que seu papel não é o de emitir opiniões e formular teorias, mas sua tarefa consiste

em examinar os outros. Quanto a si próprio, a única coisa que sabe é que nada sabe.(Koyré,1963:10)

O sentido do diálogo socrático pode ser exemplificado na passagem de Menão. Nesta passagem, o diálogo transcorre de modo a questionar se a virtude pode ser ensinada e, em caso negativo, como ela pode ser adquirida: pelo exercício, ou qual sua origem? É um dom da natureza ou terá uma origem diferente? Neste diálogo, o escravo de Menão vai responder a uma questão sobre geometria proposta por Sócrates. O escravo não havia aprendido sobre aquele assunto, mas, sendo conduzido pelas perguntas, ele consegue respondê-las, não sem antes Sócrates fazê-lo perceber um erro no percurso do diálogo. Este processo é salutar, uma vez que Sócrates diz a Menão: “...achas, mesmo, que ele se

esforçaria por procurar aprender aquilo que julga saber, porém ignora, antes de ver-se em dificuldade e de adquirir consciência de sua ignorância e de desejar saber?”

(Platão,1980a, Menão, 84c)

Após interrogar o escravo, Sócrates conclui o episódio da seguinte forma:

“Presentemente, essas noções foram nele despertadas como em sonho. E se alguém o interrogasse repetidas vezes e de diferentes modos sobre o mesmo assunto, fica sabendo que ele acabaria conhecendo tudo isso tão bem como qualquer pessoa. Logo, aprenderia sem que ninguém lhe ensinasse, apenas com ser interrogado, tirando de si próprio todo o seu conhecimento.” (Platão, 1980a, Menão, 85c-d)

A conclusão proposta por Sócrates à pergunta sobre se a virtude pode ser ensinada é que para que isto seja possível, é preciso começar a investigar o que é a virtude em si. (Koyré,1963:24) Essa percepção traduz o percurso do diálogo socrático que significa a busca incessante pela definição conceitual sobre as coisas.

Neste capítulo, tentou-se recuperar o conceito socrático de diálogo para se chegar a uma primeira conclusão de que o processo de conhecimento dos seres humanos é um processo interativo. Conhecer implica alteridade. O ato de conhecer é ato cometido pelo sujeito, é um ato solitário. Pressupõe, entretanto, a insatisfação com o sabido que somente pode ocorrer quando um outro eu revela sua insatisfação com aquilo que se afirma saber. Há que haver um outro eu para que se perceba o quanto um conceito ignora o conteúdo daquilo que se pretende seja a verdade. Tanto Sócrates, como Paulo Freire, parecem não vislumbrar a possibilidade do conhecimento sem a alteridade. Para eles, portanto, o

processo de conhecimento é constituído de atos solitários que ocorrem dentro do próprio sujeito que conhece, mas que não podem ocorrer sem a presença de um outro eu que põe questões e revela o quanto pouco se sabe sobre o objeto que se pretende conhecer. Isso parece revelar que o processo de conhecimento é constituído de atos dialogais. O diálogo é a interação dos sujeitos envolvidos no processo de conhecer. Essa interação consiste na afirmação do conceito por um eu e na afirmação dos limites do conceito por um outro eu. Como resultado desse processo dialogal são conhecidos novos aspectos do conceito até então conhecido, inclusive o aspecto no qual o conceito é considerado expressão do quanto pouco se sabe sobre o real.

Sócrates encerra o episódio do diálogo com o menino, escravo de Menão, afirmando de forma conclusiva a seu interlocutor: “De muita coisa do meu discurso não tomarei a defesa; porém que nos tornamos melhores quando estamos convencidos de que é preciso procurar o que não sabemos, mais corajosos e menos desamparados do que quando pensamos que nem podemos encontrar, nem é possível procurar o que ignoramos: a esse respeito, me disponho a lutar com todas as minhas forças, por atos ou por palavras”.(Platão, 1980a, Menão,86c)

Uma segunda conclusão deste capítulo concerne à consideração do processo pedagógico em confronto com o processo do conhecimento. Sócrates e P. Freire parecem considerar a indissociabilidade de atos educativos e atos cognitivos. Eles seriam atos análogos, e, como tais, também os atos educativos são atos solitários somente cometidos com a intermediação de um outro eu. E essa intermediação é dialogal uma vez que há um sujeito que conhece, que produz, dá à luz novos conceitos ou novos aspectos de melhores conceitos, e há um sujeito que auxilia o trabalho do parto. Mediante perguntas e interrogações são revelados os limites dos conceitos obtidos. Assim, o processo educativo quer, no ato de ensinar, quer no ato de aprender, não se processa pela transmissão de conteúdos cognitivos de um interlocutor para o outro. O ato de conhecer ou de aprender processa-se no interior daquele que conhece. Esse processo, porém, implica a interação de sujeitos.

É possível afirmar que Paulo Freire adota uma perspectiva, no que se refere à maneira de entender o processo de conhecimento e de interpretar o ato educativo, de forma dialogal, semelhantemente ao que propõe Sócrates. O processo educativo ocorre por meio

do diálogo entre diferentes interlocutores, isso é o que neste capítulo se tentou defender. Tanto nas sugestões de Sócrates, quanto nas interpretações de Paulo Freire, os atos de conhecer e de aprender, ou ensinar, são análogos. Assim, conhecer e educar (aprender e ensinar) são atos de reconhecer e conscientizar-se, atos esses que, para Sócrates e Freire, só se realizam por meio do diálogo.

Capítulo II