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CAPÍTULO 3 – COTIDIANO NO PARAÍSO TERREAL

3.3. O Dia do Milagre

Em uma daquelas reuniões, anunciou Silvestre que na noite de 25 de outubro a santa do Oratório, que sempre permanecia guardada em uma caixa, iria se revelar ao povo. Vaticinou que por ocasião da aparição da Virgem, luzes abririam clarões no meio da noite, anunciando o grande prodígio. O comentário foi tamanho que no dia do pretenso milagre acorreram curiosos e piedosos em grande quantidade. Segundo consta, ao arraial sebástico,

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Idem, p.115.

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Infelizmente o escrivão não registrou nos altos da devassa o teor total da referida oração. Idem, p. 81

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Idem, p. 81v.

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Idem, p. 55v.

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Maria Isaura Pereira de Queiroz, citando Antônio Cândido de Mello e Sousa, abriu discussão sobre este termo quando o referido autor preferiu a denominação de população rústica a cabocla ou caipira, pois aquele termo na sua origem quer dizer mestiço de branco e índio, e esse uma expressão paulista. Rústica, para Antônio Cândido relaciona-se ao universo das culturas tradicionais do homem do campo resultantes do ajustamento do colonizador português ao Novo Mundo, seja por transferência e modificação dos traços de

cultura original, seja por transferência e modificação dos traços de cultura original, seja em virtude do contato com o aborígine. QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Op. cit. p. 162. Para Marcos Antônio Villa, o

conceito de catolicismo rústico não seria o mais apropriado às formas de religiosidade do sertanejo, pois segundo suas convicções, rústico pressupõe a existência de um catolicismo mais elaborado, então adotado pela elite, e o outro, de qualidade inferior, seria o produto da falta de conhecimento religiosos. VILLA, Marco Antônio. Canudos: o povo da terra. 2ª ed. São Paulo: Editora Ática, 1997, p. 37.

apinharam-se cerca de 400 pessoas entre homens, mulheres e crianças. Rita Simplícia, branca, solteira, 25 anos, residente em Bonito, foi uma dessas devotas que crendo ou não na aparição da Virgem se dirigiu ao Rodeador na prometida noite do milagre. Ao ser inquirida pelo ouvidor Antero José da Maia e Silva afirmou que foi ali levada pela devoção e curiosidade por se ter dito que ali havia uma Senhora em um oratório, que havia de falar.291

Durante os dias que antecederam ao prometido dia em que a santa se manifestaria, registrou-se intenso rebuliço de peregrinos que abandonavam seus roçados e outros misteres em busca do prodígio. Algumas outras figuras da sociedade bonitense, levadas pela curiosidade ou pela religiosidade, também se mobilizaram e foram ao encontro de algum milagre. Para Mircea Eliade, 292 este tipo de peregrinação corresponde a uma incontida nostalgia do paraíso. O espírito latente de viver em um lugar sagrado que remonte e reviva o estado primordial da humanidade na sua intimidade com Deus induz o homem a manifestar seus sentimentos religiosos de fé, de penitência e busca de lugares que se dizem prodigiosos. Por outro lado, convictos de seu estado irregular com Deus, muitos se dão às meditações, às rezas, às romarias e até às flagelações como meio de superar suas faltas.

Chegando o dia prometido, como de hábito, o povo se reuniu em derredor do oratório, rezando e cantando os cânticos costumeiros. Nesse interregno, quando se falava dos sinais do céu e das promessas da santa, testemunharam-se no meio da escuridão, contornando as abas das serras, dezenas de luzes. Como dias antes havia-se falado em sinais que apareceriam no céu,293 os quais antecipariam a aparição de Nossa Senhora, o povo dando graça, desejou ir ao encontro do fantástico fenômeno. Naquele momento, confessou o camponês Serafim José de Oliveira, 25 anos, trabalhador de enxada no Sítio Gengibre, que olhando Silvestre para aquelas luzes, esbravejou, apontando para o misterioso fenômeno: lá estava o sinal que ele não enganava.294 Posteriormente, informou o referido camponês, findas as rezas, tiveram início as Santas marchas e ao término desta pôs-se o ferreiro José Fernandes a ler um livro.295 Na ocasião, escutaram-se sons de

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ANRJ. Devassa. P. 73.

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Apud PIAZZA, Waldomiro. Introdução à Fenomenologia Religiosa. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 1983, pp. 120-21. 293 ANRJ. Devassa, p. 11v. 294 Idem, p. 109. 295 Idem, p. 109.

cornetas, que quebravam o silêncio da noite.296 Na realidade o arraial estava sendo cercado pelas tropas destinadas a destruí-lo. Percebendo o que estava para acontecer, Manoel Gomes das Virgens rogava para aquelas pessoas que não fossem ao encontro das luzes.297

Neste ínterim presenciou o coxo Antônio Luís Rodrigues quando Silvestre se ausentou do local, dizendo ir rezar e obter da santa, informações e logo em seguida apoderou-se de uma caixa na qual estava encerrada a imagem de Nossa Senhora e a do Bom Jesus, e desaparecendo na escuridão.298 O trabalhador Serafim José de Oliveira testemunhou que na ocasião em que as cornetas ecoavam, Silvestre dizia: estamos cercados de tropas e quando alguns iam evadir, os que estavam há muito tempo na sociedade, pegando todos em armas disseram que dali ninguém se deveria sair e que todos deveriam defender el rei Dom Sebastião.299

Induzidos a lutar em nome de Dom Sebastião e na defesa da fé, os soldados do arraial sebastianista e alguns camponeses ali reunidos foram à luta, crentes que estavam invisíveis. O depoente José Fernandes Coutinho afirmou que dias ou momentos antes do cerco, um homem vindo do Povoado de Bonito foi àquele sítio, conversou demoradamente com Silvestre, pondo sobre aviso que tropas se deslocaram do Recife para intimidá-los. Posteriormente os moradores do arraial souberam que deveriam se reunir, cada qual portando suas armas, pois haveria de aparecer naquele dia o sinal que a Senhora mandava.300 Quando o ouvidor do Recife esteve em Bonito, ouviu alguns dos habitantes, entre eles Gonçalo Nunes da Fonseca, pessoa de prestígio na localidade, casado, 43 anos, que sob juramento informou que no Rodeador foi encontrado, após o cerco,

um pequeno realejo de corda com que fingia a fala de uma imagem sendo o autor desta impostura um Silvestre de Tal, um seu cunhado apelidado Paixão e um Antônio Gomes, sapateiro.301

296 Idem, p. 11v. 297 Idem, p. 110v. 298 Idem, p. 106v. 299 Idem, p. 109v. 300 Idem, p. 94v. 301 Idem, p. 59.