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SINALIZANDO O PERCURSO TEÓRICO

2.2 O dicionário como discurso

Apresentaremos neste item um rápido percurso histórico da constituição do dicionário e de seu surgimento no Brasil, explorando alguns aspectos técnicos e discursivos desse processo.

Abordar o dicionário como objeto histórico e discursivo significa tratar o dicionário não como um simples manual de consulta, que apresenta sentidos evidentes e que abarca a totalidade da língua, mas como um lugar possível de questionamento dessas evidências dos sentidos e da completude da língua, onde

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se inscreve uma determinada relação dos falantes com a língua.

Os dicionários modernos têm origem numa prática milenar entre os povos antigos de listar palavras e essa prática se desenvolveu a partir da invenção da escrita e sempre esteve destinada a atender diversas necessidades: na China, encontram-se registros com listas de sinais ideográficos, classificados semanticamente; na Índia, listas lexicais de cunho religioso; na Suméria, lista de palavras de várias línguas; na Grécia, lista contendo comentários sobre a língua e o conteúdo dos textos; tanto os povos ocidentais como orientais elaboravam listas bilíngues resultantes de transações comerciais (DIAS e BEZERRA, 2006).

A lista de palavras, para Auroux (2007, p. 18), não é um dicionário no sentido moderno, mas um objeto técnico mais elementar a partir da qual ele se desenvolve, no decurso de um longo processo, como explica esse autor:

As nominalias medievais têm provavelmente o mesmo tipo de estatuto que as listas antigas. Naturalmente, quando o latim deixa de ser uma língua materna, é preciso acrescentar o vernáculo e, segundo a necessidade, dar algumas indicações linguísticas. É preciso também explicar a língua que não se fala mais. Logo se vê um novo objeto técnico, que é por assim dizer o que nós entendemos por “dicionário” em matéria de língua (AUROUX, 2007, p. 18).

Mas foi só no período do Renascimento europeu que foram elaborados os primeiros dicionários para diversas línguas do mundo, tanto dicionários monolíngues dos vernáculos europeus tais como o italiano, o francês, o espanhol, ou o português, quanto dicionários das línguas de sociedades de outros continentes conquistadas pelos europeus, como o americano, cuja gramatização foi contemporânea à das línguas europeias (ibidem, p. 37).

Para Auroux, as gramáticas e dicionários que resultaram desse processo são até hoje os pilares do conhecimento sobre a língua, fazendo parte da história das ciências da linguagem (AUROUX, 1992, p. 65).

A elaboração de dicionários como instrumentos tecnológicos respondeu ao longo da história a interesses diversos: preocupação religiosa; o interesse

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cultural, especialmente para registrar o uso de algumas línguas em extinção e para facilitar o aprendizado de uma língua estrangeira. Estes interesses mais imediatos estão na base da elaboração dos dicionários bilíngues. Em relação aos dicionários monolíngues, o interesse explícito estava na constituição de uma língua nacional, notadamente para os Estados nacionais emergentes e, a partir daí, conservar e impor uma determinada língua (AUROUX, 1992).

Observamos, então, que o processo de constituição e de fortalecimento das línguas nacionais esteve apoiado numa tecnologia elaborada num longo processo, que se iniciou com o aparecimento da escrita e das listas de palavras até a elaboração massiva de gramáticas e de dicionários monolíngues operada no Renascimento. Esse fenômeno esteve associado às profundas transformações econômicas, sociais, culturais e tecnológicas vinculadas à constituição dos Estados nacionais, tais como a emergência do capitalismo mercantil, a renovação do interesse humanista pela cultura da Antiguidade clássica, a ascensão da burguesia, a Reforma e o surgimento da imprensa (cf. Auroux 1992). Surgiu desse contexto a necessidade de uma língua comum, diferente do latim, para a expressão das atividades intelectuais das novas elites urbanas desenvolvidas fora do domínio da Igreja (como as ligadas ao comércio), bem como para a expressão religiosa daqueles que aderiram à Reforma (que promoveu a tradução da Bíblia) (ibidem). A conjugação desses fatores levou

ao estabelecimento de espaços linguísticos relativamente homogêneos sobre os quais se assentaram as línguas nacionais. Mas é preciso considerar que cada uma das línguas nacionais tem uma histórica específica de constituição e, desse modo, também os instrumentos linguísticos têm uma história singular, aí compreendidos os dicionários (NUNES, 2010, p. 9).

A elaboração dos instrumentos linguísticos, como vemos, está associada ao mesmo tempo a fatores técnicos e às condições históricas e políticas em que são elaborados. Tomar esses instrumentos como objetos históricos, no dizer de Orlandi (2002b, p. 8),

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como parte da relação com a sociedade e com a história, transforma esses instrumentos em objetos vivos, partes de um processo em que os sujeitos se constituem em suas relações e tomam parte na construção histórica das formações sociais com suas instituições, e sua ordem cotidiana.

No Brasil, o saber lexicográfico surge nos relatos dos viajantes, que incluem comentários e traduções de palavras indígenas. Surgem, contemporaneamente, os primeiros dicionários elaborados pelos missionários jesuítas, autores de dicionários bilíngues Língua Portuguesa-Língua Indígena e de Língua Indígena–Língua Portuguesa, durante os séculos XVI ao XVIII. Segundo Nunes (1996a, p.23), o interesse na produção desses dicionários era o de ensinar aos missionários a língua indígena, a fim de converter os nativos através da catequese; esses dicionários evidenciam, assim, a presença do discurso religioso, constituindo ao mesmo tempo instrumentos de catequese e de colonização.

Os primeiros dicionários brasileiros de português surgem no século XIX para “complementar” os dicionários portugueses de Portugal, ampliando o léxico, uma vez que muitas palavras do Brasil não eram conhecidas no português de Portugal, e que os contatos com as línguas indígenas e com as línguas africanas eram considerados responsáveis pelas especificidades da língua falada no Brasil.

Os primeiros grandes dicionários monolíngues foram elaborados na primeira metade do século XX, o que coincide com o surgimento de algumas instituições que, paralelamente à produção de dicionários, criam as condições para a publicação de obras16 de caráter nacional. Os dicionários dessa fase, segundo Nunes (2010, p. 11), não tinham mais como objetivo “complementar os dicionários portugueses” de Portugal, vez que já se tinha constituído, no Brasil, um imaginário de língua nacional; era o momento, então, de evidenciar a “imagem de

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Como exemplos de dicionários publicados na primeira metade do século XIX, citamos: Pequeno

Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, de Hildebrando Lima e Gustavo Barroso, de 1938,

publicado pela editora Civilização Brasileira; o Grande e Novíssimo Dicionário da Língua

Portuguesa, de Laudelino Freire (1939-44), pela editora A Noite é destinado a um público erudito e

apresenta exemplos de autores clássicos e o Dicionário Escolar da Língua Portuguesa, de Francisco da Silveira Bueno, publicado pelo Ministério da Educação, em 1955.

82 completude da língua falada no Brasil”.

A partir da segunda metade do século XX, consolida-se a lexicografia brasileira, quando os dicionários brasileiros17 passam a ser mais utilizados que os portugueses. Nesses dicionários, os lexicógrafos apresentam exemplos contemplando a literatura, especialmente com autores modernos, cronistas, de canções, de jornais, de revistas, da televisão e de linguajares diversos como de profissionais, regionais etc., além de exemplos edificantes elaborados por eles mesmos (NUNES, 2004).

Em um estudo sobre os Dicionários: história, leitura e produção, Nunes assinala que o percurso pela história dos dicionários brasileiros

nos permite observar que a lexicografia brasileira tem uma história, que é a história de um país de colonização, marcada pela elaboração de instrumentos específicos, que têm a ver, embora de modo redutor, com a realidade multilíngue do país. Essa história mostra a relação entre os instrumentos do colonizador e os do colonizado que pouco a pouco vão surgindo e se estabelecendo (NUNES, 2010, p. 11).

Como afirmáramos, o dicionário tomado como um objeto discursivo e simbólico não é visto, nas palavras de Nunes (2006a, p. 11), somente como uma obra de referência, como uma obra de consulta, como um dos lugares onde, imaginariamente, encontram-se todas as palavras e os sentidos, todos supostamente corretos. De um ponto de vista discursivo, o dicionário é precisamente um dos “lugares que sustentam as evidências dos sentidos, funcionando como um instrumento de estabilização dos discursos” (ibidem). Para este autor, ao se colocar nesse espaço imaginário marcado pela evidência de certezas, por guardar e acumular o saber sobre a língua, o dicionário constitui-se como um objeto sujeito a falhas, a equívocos, à incompletude e, por isso, ele se

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Como ilustração da produção desse período, citemos: Nôvo Dicionário Brasileiro Melhoramentos

Ilustrado, de Adalberto Prado e Silva (1962); o Dicionário da Língua Portuguesa, de Antenor

Nascentes, pela Academia Brasileira de Letras (1961 a 1967) e o Novo Dicionário da Língua

Portuguesa, de Aurélio Buarque de H. Ferreira (1975), considerado como o dicionário monolíngue

83 transforma, se renova e se atualiza.

Orlandi (2002b, p. 103) considera que, em nosso imaginário, o dicionário é o espaço que contém todas as palavras de uma língua e que, ao representá-la, a provê de realidade: “O dicionário então produz o efeito de completude da representação da língua”. Essa representação da completude, conforme a autora, pode se dar por dois procedimentos: pela menção a autores clássicos, através de exemplos e pela remissão de um verbete a outros verbetes e pela maneira como faz intervir a memória discursiva.

Essa representação da língua no dicionário remete ao que Orlandi chama de língua imaginária, por oposição a língua fluida: “as línguas-imaginárias são as línguas-sistemas, normas, coerções, as línguas-instituição, a-históricas. Construção. É a sistematização que faz com que elas percam a fluidez e se fixem em línguas-imaginárias” (Orlandi e Souza 1988, p. 28). É, portanto, o imaginário dessa língua estável, sistematizada, que tem unidade, que encontramos nas gramáticas e nos dicionários, criando a ilusão de que são “completos”, de que comportam “todas” as palavras e “todos” os seus sentidos, permitindo dominar “toda” a língua (Orlandi, 2002b, p. 105). Na medida em que se tem o “efeito da completude da representação da língua” (Ibid., p. 103) no dicionário, esse instrumento linguístico funciona como um instrumento normativo, configurando-se em um espaço sem falhas, sem faltas, sem equívocos, “espaço imaginário da certitude, sustentado pela acumulação e pela repetição” (Nunes, 2006a, p. 11), lugar do saber instituído, monumento à língua. Se deixarmos de olhar o dicionário somente em sua função normatizadora e, ao contrário, olharmos o dicionário como um objeto histórico, porque produzido na história, em dado momento, em certas condições de produção, podemos compreender como ele funciona. Isso

nos permite deslocar esse imaginário em seus efeitos, mostrando esse instrumento como produzido numa certa história de relação com a língua em suas práticas e com distintos modos de produção de diferentes formas de conhecimento sobre ela (ORLANDI, 2002b, p. 105).

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Nessa dimensão discursiva, o dicionário se mostra como um lugar no qual podemos questionar as evidências de sentidos, as certezas, as falhas e equívocos, compreender os processos históricos de sua produção, explicitar como o saber a língua e o saber sobre a língua se ligam na formulação dos verbetes, enfim, observar os modos de dizer de uma sociedade e os discursos em circulação em certas conjunturas históricas (COLLINOT e MAZIÈRE, 1997).

Tratar da constituição desses instrumentos, em outras palavras, é compreender o modo como a sociedade brasileira constrói elementos de sua identidade, “nas condições próprias da história brasileira: a história de uma colônia portuguesa que se torna um Estado independente no início do século XIX” (GUIMARÃES e ORLANDI, 1996, p. 9).

No Brasil, a articulação do método da análise de discurso à história das ideias linguísticas permite produzir um duplo conhecimento dos dicionários: “o da história dos sentidos que ele faz circular e o da história da língua que ele pressupõe” (Nunes 2006a, p.162). Esse autor explica, então, que o “método discursivo leva a compreender a historicidade da produção de sentidos, bem como a explicitar as relações sociais e os componentes conjunturais envolvidos na produção do dicionário”. A História das Ideias Linguísticas, por sua vez, com o “conhecimento produzido sobre a história das teorias, dos conceitos, dos autores, das instituições, situa o dicionário em meio à produção linguística em determinadas conjunturas” (ibidem).

Pensar no estudo desses instrumentos tecno-linguísticos relacionados à Libras, nosso objeto de análise, é entender o modo como a nação brasileira articula a língua oficial com outras línguas que fazem parte do processo de constituição da identidade, ao lado das línguas indígenas e das línguas dos imigrantes. É preciso compreender, nesse sentido, como os autores e as instituições ligadas à produção do conhecimento em Libras atualizam a produção do conhecimento sobre essas outras línguas, tendo em vista inclusive a especificidade do próprio estatuto de Libras como língua. Isto é, em que medida e como ocorreu no Brasil, a longo prazo, uma certa autonomia da produção

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dicionarística de Libras? Como se institucionalizaram esses instrumentos linguísticos?

Antes de passarmos à análise desses dicionários, apresentaremos a seguir alguns conceitos da Análise de Discurso que comporão o dispositivo teórico adotado.