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10. Percepção sonora no cinema

10.1. O didático exemplo do filme Home, de Ursula Meier

Para pensarmos a percepção sonora no cinema, optamos pela análise do filme

Home (2008), primeiro longa-metragem franco – suíço da diretora Ursula Meier. A

escolha se deu pelo ponto de discussão que o filme levanta. A obra trabalha um caos psicológico dos personagens que sofrem pelo transtorno da própria convivência com o som. Nesse caso, a narrativa sonora se transforma em personagem causando claramente interferências nas ações, no espaço e no desenho de som.

Home é um exemplo muito claro da percepção sonora afetando o cotidiano

humano, onde o contato excessivo com sons intensos causa sérios transtornos psíquicos. Sabemos de como emoções são resgatadas quando ouvimos determinado tipo de música, ou mesmo o desconforto sonoro causado por conta de uma obra na casa vizinha etc. A memória auditiva é muito importante dentro do trabalho do editor de som, que relaciona determinadas sonoridades, objetos sonoros dotados de diferentes características, ruídos e sons ambientes para ampliar toda uma relação áudio-visual que é construída na montagem do filme. Em Home, o som tem grande papel e faz parte desde a primeira etapa do roteiro – assunto que estamos a todo momento resgatando, pois sabemos que a transformação narrativa através do som começa desde o início do projeto em conjunto com a imagem.

Uma família atípica reside no interior afastado do centro urbano, tendo apenas o pai como contato com o “mundo externo”. O cenário causa estranheza pelo fato do jardim da casa ser um trecho de uma autoestrada desativada ou inacabada. O desenho sonoro se mantém realista, poucos elementos sonoros, o som do vento que balança a folhagem rasteira e os ruídos que as personagens produzem em suas ações. A noite o som do grilo predomina devido ao grande silêncio do interior, lugar o qual o pai tem grande satisfação e prazer por se sentar e fumar um cigarro relaxado. Talvez seja o demasiado silêncio que faz com que mãe e filha mais velha estejam sempre acompanhadas de um rádio, no caso a mãe que ouve o noticiário e a filha que escuta músicas de heavy metal. Tais sons são os que mais se destacam dentro do conjunto sonoro, contudo da noite para o dia as máquinas surgem anunciando a inauguração da

nova rodovia. Numa construção cômica, a família ouve pelo rádio o entusiasmo do radialista ao anunciar o nome do motorista do primeiro veículo transitando pela rodovia. Na mesa do café, o som do rádio premedita a mudança drástica e quase trágica daquela família.

O cotidiano então se transforma e o desenho sonoro acompanha o crescimento do caos que passa a tomar conta daquele espaço impactando as personagens em suas ações. O que antes era ouvido com sutilezas, numa intensidade mediana inclusive em ritmo calmo e bem humorado, agora passa a ter uma textura sonora constante, gradualmente se elevando em alta intensidade e dentro de frequências mais graves. Como espectador, sentimos a diferença partir para outro modo de escuta, um pouco mais acuada devido ao impacto sonoro que fica presente. Os sons dos carros passando no chamado efeito doppler são muito bem construídos, o trabalho de desenho de som manipula de forma exemplar os sons externos que invadem o interior conforme portas e janelas se abrem e fecham. A sensação literalmente é de uma invasão, pois devido aos sons e a poluição de CO2 a família passa a não se sentir mais à vontade naquele lugar. Por exemplo, a cena da mãe muito irritada ouvindo seu precioso rádio no fundo esprimido da casa, de frente para um muro cinza e sem nenhum horizonte, como o sonho que se esvazia.

A partir do aumento da circulação dos carros pela rodovia, a situação só piora e o que era uma casa “freak show” e divertida, se torna um manicômio. Essa relação com o som intenso do ambiente começa a alterar o estado psicológico das personagens, fazendo-as gritar ao falar, se tornando violentas e até paranoicas. Pelo fato da permanência dos sons da estrada, mesmo com as janelas e portas fechadas, aliados as ações mais agressivas das personagens (que produzem mais sons em seus atos e falas), em alguns momentos com o rádio ligado numa tentativa de fuga daquele estado, o mínimo silêncio não fica possível e esvazia qualquer chance de respiro.21

É muito interessante perceber as personagens ouvirem a si mesmas dentro da cenografia sonora, pois a atuação em cena se expande e o espectador acaba interagindo muito mais com a construção áudio-visual. No ápice da trama, a família se fecha

                                                                                                                         

21  Lembro-me de notícias sobre algumas práticas de tortura realizada pelos EUA na prisão de Guantánamo (Cuba) e

outras prisões no Oriente Médio. Entre uma delas estava o “quarto” do som. Era uma espécie de câmara escura em que músicas, nos mais variados estilos, tocam incessantemente numa altíssima intensidade sonora, fazendo com que os prisioneiros perdessem as principais funções do corpo, falhando toda uma linha de pensamento e vontade própria. Sendo uma verdadeira surra sonora. (http://motherboard.vice.com/pt_br/read/entenda-como-a-tortura-sonora- machuca; http://super.abril.com.br/blogs/superlistas/8-musicas-que-ja-foram-usadas-como-tortura/)

completamente dentro de casa, tampando as portas e as janelas com espumas acústicas na tentativa de vedar qualquer entrada do som externo. A situação se torna calamitosa pela falta de ar, luminosidade e extremas insônias. Nem mesmo o alcance desejado do silêncio foi capaz de trazer a paz interior e a boa convivência na casa. Pelo contrário, o abandono de tudo se tornou inevitável.

Nesse filme o som demonstra a capacidade informativa e psicológica num melhor sentido de percepção, vai de encontro com nossas hipóteses de que os ruídos e sons ambientes são grandes potências do engrandecimento fílmico, sem ter que recorrer as facilidades emocionais de uma trilha musical narrativa.

10.2. Construção da percepção sonora no cinema. Referências significativas nas