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Os usos criativos e instigantes do som Relações diretas com a escuta dos objetos sonoros na

7. Podemos pensar uma tradição de som para o cinema brasileiro?

7.2. Os usos criativos e instigantes do som Relações diretas com a escuta dos objetos sonoros na

Retomando o estudo de Pierre Schaeffer auxiliado por Flores, pensamos o som no cinema como objeto de percepção buscando critérios que possam descreve-los por suas qualidades tipomorfológicas. Essa é uma abordagem que nos aproxima dos sons sem pré-conceitos, conhecendo-os em sua matéria. O som ao redor, como visto anteriormente, trouxe um outro modo de ouvir e escutar o cinema, projetando os sons desmascarados assim como estão na natureza. A sequencia do sonho da menina Fernanda é bastante curiosa em seu processo criativo. Sabendo da não intencionalidade do diretor em se utilizar de trilha musical tradicional, era necessário construir o suspense e a pitada do horror com sons “concretos”. Em entrevista dada ao pesquisador, ele revela que toda a sequencia deveria sofrer um aumento gradual da intensidade sonora na mixagem, mas que durante a escuta do material bruto do som direto encontrou um som estranho sem ter ideia do que fosse. Esse som chamou sua atenção pelas qualidades de objeto sonoro e que suscitava muito bem a direção que a cena pedia. A princípio a “musicalidade” dos sentidos descritos acima viria do pulo dos garotos no portão de ferro. Mas que somado a esse som estranho, munido de qualidades sonoras próprias foi possível chegar ao ponto certo de sua concepção áudio – visual para a sequência. Curiosamente o som estranho era da rodinha do carrinho de som direto, que Nicolas Hallet deixou gravando por engano durante a movimentação do set de locação. Esse é um exemplo claro da escuta ampliada e do contato direto com a matéria dos objetos sonoros que o filme nos revela e traz para reflexão. Flores pode nos auxiliar ainda mais nesse pensamento:

Um novo som poderá ser criado a partir de outros sons, que não os de uma carroça real. Existe escolha nesse trabalho, e esta seleção leva em consideração justamente as características dos sons, sua materialidade e sua singularidade, além de todas as possibilidades imagéticas que um som pode suscitar mentalmente. [...] Um som se torna adequado quando ultrapassa a questão de realidade sonora, de uma fidelidade suposta a alguma coisa, no

caso o que vemos, e passa a figurar mais sobre a questão de transmitir um sentimento, uma ideia.” (FLORES, 2006, p.06-07-08)

É comum ouvir falar de maneira pejorativa sobre sons ruidosos. O ruído ao longo do tempo sempre foi assumido como um som indesejado, um som não musical, um som que fere o aparelho auditivo ou o distúrbio na comunicação. Esses valores negativos associados ao ruído, fazem dele algo abominável e que se constatado no desenho de som de um filme, cria-se a ideia de que será prejudicial. Evidentemente o ruído pode assumir algum desses critérios, mas muitas vezes o problema acaba sendo cultural e até mesmo do modo tradicional de escuta.

Se Murray Schafer (2001) vai criticar negativamente os sons posteriores a revolução industrial afirmando que a partir da ascensão da tecnologia e das máquinas há um descontrole do ambiente acústico das cidades. Por outro lado podemos pensar que o desenvolvimento tecnológico e a consequente industrialização dos grandes centros urbanos trouxeram um saldo favorável no que diz respeito a um enriquecimento de sonoridades e texturas sonoras que vão influenciar tanto a música quanto o som dentro dos filmes. No começo do século XX a máquina foi bem recebida pelo movimento Futurista, responsável entre tantas coisas pela penetração do ruído no universo da linguagem musical, sendo até mesmo precursor da música eletroacústica. Luigi Russolo, com seu manifesto “A arte do ruído” (1913), está muito interessado em trazer os sons dos motores, das máquinas, das indústrias para uma transformação musical como uma orquestra intoxicante de ruídos. Estamos falando de um trabalho diferenciado do ato da escuta, que gera uma outra forma de lidar com o som. A música trabalha inteiramente com o dado sonoro e talvez dentre as formas artísticas a que mais fortemente se utiliza dele. E especialmente por isso a música se torna o campo maior de referência para qualquer outra forma de arte que use o som. O cinema toma o som como metade dos elementos e materiais estéticos que compõe sua construção, portanto é natural que se estabeleça paralelos entre o cinema e a música embora se deva estar atento as limitações dessa relação, pois as concepções sonoras muitas vezes se estabelecem em ambas artes de maneiras distintas.

O dado sonoro dentro do cinema demorou um tempo para ser pensado e construído de maneira instigante. Desde seu início o cinema sonoro se apropriou mais da linguagem verborrágica e da trilha musical, muitas vezes redundantes à imagem, do que construções de sons ambientes e ruídos mais criativos. Já por outro lado, Orson

Welles, René Clair e os cineastas soviéticos por exemplo, estavam atentos a potencialidade do som nos filmes e assim pensava-os construindo verdadeiros contrapontos junto a ideia da narrativa que os mesmos poderiam exercer. A “Declaração sobre o futuro do Cinema Sonoro” (1928), manifesto dos cineastas soviéticos, buscava uma relação áudio-visual feita em “leitura” vertical, assim como uma partitura orquestral, onde todos os elementos que compõem o filme se interagem e se contrastam possibilitando diferentes percepções para distintas bandas de imagem e som. Dessa forma, outros cineastas como Clair (que escreve em 1929 o manifesto “The art of sound”) e Welles também afirmam um uso mais independente e criativo para o som, suscitam outros sentidos para a narrativa ampliando assim a capacidade de interação dentro do filme.

Com o cinema moderno, a combinação entre som e imagem ganha outros patamares principalmente pela montagem. Desenvolve-se um processo de projeção das diversas características sonoras como timbre, textura, articulação, etc. Durante a década de 1970 ocorre também um novo relacionamento com o dado sonoro no cinema. O conhecimento da acústica e psicoacústica, o desenvolvimento de ferramentas tecnológicas de gravação, edição e difusão sonora e a extensiva ampliação dos materiais usados na arte, propiciaram a frequente inclusão do som como processo de criação artística altamente referencial.

Para ter contato dessa maneira com a materialidade dos sons, Schaeffer descreve modos diferentes de escuta, “para Schaeffer todo som é musical na medida em que qualquer som tem características que podem ser classificadas e percebidas através da escuta.” (FLORES, 2006, p. 33)

A escuta causal simboliza assim como o próprio nome diz, a relação com a causa do som e a sua fonte. A escuta semântica revela o sentido / significado que tal som desperta em nós. Já as escutas acusmática e reduzida são as mais importantes para nossa análise. É através da repetição de um som, assim como um processo de loop, que o ouvinte abandona a causa daquele som e inicia a escuta reduzida valorizando assim suas qualidades de altura, forma, grão, volume, ritmo etc. interessando-se pelo som enquanto material sensível. Dessa forma fica possível tomar a consciência do som como objeto sonoro podendo extrapolar sua verossimilhança a qualquer fator causal.

tanto no ato de feitura mas também no modo de análise e interpretação. A escuta

reduzida se faz para entendermos as qualidades do som que estamos trabalhando. E são

essas qualidades que vão além do valor semântico, onde nos aproximamos de características tipomorfológicas, fatores que nos ajudam na composição musical dos ruídos, efeitos e ambientes. Mas antes disso nos ajudam no pensamento de como esses diversos elementos do desenho sonoro estão montados, se articulando a todo momento na relação do continuum sonoro. Para tal escuta nos apoiamos na necessidade de re- escutar e fixar o som. Chion nos fala que essa escuta tem a vantagem de ampliar e afinar o ouvido do realizador, técnico e estudioso que conhecerão o material de outra forma.