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7 O DIREITO À CIDADE E SEU ASPECTO SÓCIO-JURÍDICO

A cidade surgiu a partir do momento em que a agricultura passou a ser capaz de suprir a demanda por alimentos das pessoas que trabalhavam em atividades diversas da atividade campestre. Tal fato foi nomeado pela literatura como “revolução neolítica”, porque, a partir desse período da história humana, também chamado de “Pedra Polida”, que a agricultura passou a produzir excedentes para a subsistência de outras pessoas, além da alimentação dos produtores diretos (SOUZA, 2008).

As cidades se desenvolveram ao longo do processo histórico e a cidade atual é o local onde é desempenhada a grande maioria das atividades propulsoras do desenvolvimento humano. Indústrias, bancos, universidades, hospitais, museus, teatros são alguns dos equipamentos que têm no espaço urbano suas localizações e raios de atuação. A convivência das pessoas em cidades tem inúmeros fatores positivos como a criação de alternativas de progresso, pois os contatos sociais intensos são geradores de soluções para os problemas humanos. Conforme Milton Santos (2000, pag. 21), “[...] um outro dado de nossa era, indicativo da possibilidade de mudanças, é a produção de uma população aglomerada em áreas cada vez menores, o que permite um ainda maior dinamismo àquela mistura entre pessoas e filosofias”.

Na urbe, estão a maioria dos equipamentos que contribuem para a formação dos habitantes em consonância com o projeto de cidade que objetiva a classe dominante. Mais do que um aglomerado de pessoas, a cidade possui funções e regulamentações que, embora sejam imperceptíveis aos olhos do leigo, contribuem para a consecução de objetivos específicos. Nesse sentido, as palavras de Raquel Rolnik:

Na verdade, esta regulação de fluxos está presente o tempo todo no cotidiano das cidades: são o semáforo e a faixa de pedestres, as entradas de serviço e social nas portarias dos edifícios, as filas de ônibus, os impostos urbanos etc. São regulamentos e organizações que estabelecem uma certa ordem na cidade definindo movimentos permitidos, bloqueando passagens proibidas (ROLNIK, 1995, pag. 20).

Com a revolução industrial do século XIX, na Europa, as cidades europeias tiveram grande crescimento urbano devido ao contingente de pessoas que foi arrastado para elas, como consequência das transformações técnicas que abalaram as relações sociais no campo. No Brasil, isso foi sentido a partir da década de 1940, pois com o projeto estatal de industrialização nacional, as cidades passaram a atrair grande número de pessoas oriundas das zonas rurais paupérrimas. Esse êxodo rural foi crescendo paulatinamente ao longo do século XX.

De acordo com Souza (2008), baseado em dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil possuía, no ano 2000, 82% de sua população vivendo em áreas consideradas urbanas (cidades e vilas) e, em termos mais amplos, na América Latina, mais de três quartos da população viviam em áreas urbanas e, no âmbito global, metade da população habitava espaços urbanos.

Entretanto, apesar das coisas boas oriundas da urbanização brasileira, devido às facilidades geradas por nossas cidades, nossos espaços urbanos sofrem bastante com a falta de estrutura e suas mazelas sociais, motivada em grande parte pela falta de vontade e planejamento públicos. Nesse contexto, Marcelo Lopes de Souza assim se expressa:

A cidade, especialmente a grande cidade de um país periférico ou semiperiférico (países periféricos, semiperiféricos e centrais), é vista como um espaço de concentração de oportunidades de satisfação de necessidades básicas materiais (moradia, saúde...) e imateriais (cultura, educação...), mas, também, como um local crescentemente poluído, onde se perde tempo e se gastam nervos com engarrafamentos, onde as pessoas vivem estressadas e amedrontadas com a violência e criminalidade (SOUZA, 2008, pag. 20-21).

O contexto acima, exposto por Marcelo Lopes de Souza, expõe um componente bastante importante, no que se refere às cidades de países periféricos e semiperiféricos, que é a mobilidade urbana. A mobilidade urbana, integrante do feixe de itens formadores do direito à cidade, pode ser efetivada por vários meios, inclusive a pé. As escalas espaciais das grandes cidades brasileiras, juntamente com o uso do solo feito de maneira deficiente, com longos trajetos para a satisfação das necessidades básicas como trabalho, estudo, moradia e lazer, dificultam uma qualidade de vida propiciadora de bem-estar a seus habitantes e, consequentemente, contribuem para que o direito à cidade, inserido na Constituição de 1988, seja indisponibilizado aos habitantes urbanos do Brasil. Conforme o filósofo Henri Lefebvre (2001, pag. 117), “[...] o direito à cidade não pode ser concebido como um simples direito de visita ou de retorno às cidades tradicionais. Só pode ser formulado como direito à vida urbana, transformada, renovada”.

O Direito à cidade teve sua origem nos trabalhos do filósofo Henri Lefebvre, que lançou em 1968, na Cidade de Paris, França, o livro “Direito à cidade”, obra crítica ao urbanismo higienista e gentrificador, ou seja, aquele que expulsa os pobres dos lugares objetos de obras de urbanização. Isso foi muito significativo, pois tal trabalho fez surgir uma noção política impulsionadora de movimentos de lutas que exigiam a efetividade de direitos propiciadores de cidades mais justas. Seu legado foi criar uma categoria conceitual discutida por movimentos sociais até hoje, inclusive penetrando no Direito (BELLO; KELLER, 2018).

No Brasil, movimentos sociais passaram a pressionar as estruturas governamentais para que fosse desenvolvida uma política de reforma urbana para as cidades

brasileiras, ou seja, objetivavam um reconhecimento jurídico para a questão da vida nas cidades. Isso foi concretizado através da inserção de um capítulo sobre política urbana na Constituição Federal de 1988 e, posteriormente também obtiveram êxito com a criação do Estatuto e Ministério das Cidades (BELLO, KELLER, 2018). Conforme os mesmos autores, Bello e Keller:

Na escala nacional, o Brasil foi o primeiro país do mundo a positivar o direito à cidade e o fez na esteira da efervescência do movimento constituinte ocorrido entre 1968 e 1988. Em pleno período da redemocratização do país, movimentos sociais apresentaram, durante o processo constituinte, a Emenda Popular pela Reforma Urbana (BELLO; KELLER, 2018 pag. 121).

No âmbito global, houve muita luta para que houvesse uma agenda que atendesse os anseios urbanos, particularmente a luta pela construção por cidades mais justas, acolhedoras e propiciadoras do bem-estar do homem citadino. Até a Organização das Nações Unidas (ONU) foi envolvida na busca de uma solução para as cidades caóticas existente no planeta (BELLO, KELLER, 2018).

A Carta Mundial pelo Direito à Cidade foi um documento produzido a partir do Fórum Social Mundial Policêntrico de 2006 e ela dispõe em seu preâmbulo que as cidades estão distantes de oferecerem condições e oportunidades equitativas aos seus habitantes e que a maioria da população urbana está privada de satisfazer suas necessidades básicas em virtude de suas características econômicas, culturais, étnicas, de gênero e idade. Conforme a referida Carta, isso propicia o surgimento de lutas urbanas, as quais ainda estão fragmentadas e incapazes de produzir mudanças significativas.

A mesma Carta Mundial pelo Direito à Cidade define a categoria criada por Henri Lefebvre da seguinte forma:

2. O Direito a Cidade é definido como o usufruto equitativo das cidades dentro dos princípios de sustentabilidade, democracia, equidade e justiça social. É um direito coletivo dos habitantes das cidades, em especial dos grupos vulneráveis e desfavorecidos, que lhes confere legitimidade de ação e organização, baseado em seus usos e costumes, com o objetivo de alcançar o pleno exercício do direito à livre autodeterminação e a um padrão de vida adequado. O Direito à Cidade é interdependente a todos os direitos humanos internacionalmente reconhecidos, concebidos integralmente, e inclui, portanto, todos os direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais que já estão regulamentados nos tratados internacionais de direitos humanos. Este supõe a inclusão do direito ao trabalho em condições equitativas e satisfatórias; de fundar e afiliar-se a sindicatos; de acesso à seguridade social e à saúde pública; de alimentação, vestuário e moradia adequados; de acesso à água potável, à energia elétrica, o transporte e outros serviços sociais; a uma educação pública de qualidade; o direito à cultura e à informação; à participação política e ao acesso à justiça; o reconhecimento do direito de organização, reunião e manifestação; à segurança pública e à convivência pacífica. Inclui também o respeito às minorias e à pluralidade étnica, racial, sexual e cultural, e o respeito aos migrantes. O território das cidades e seu entorno rural também é espaço e lugar de exercício e cumprimento de direitos coletivos como forma de assegurar a distribuição e o desfrute equitativo, universal, justo, democrático e

sustentável dos recursos, riquezas, serviços, bens e oportunidades que brindam as cidades. Por isso o Direito à Cidade inclui também o direito ao desenvolvimento, a um meio ambiente sadio, ao desfrute e preservação dos recursos naturais, à participação no planejamento e gestão urbanos e à herança histórica e cultural.

Então, percebe-se que o direito à cidade envolve várias dimensões, incluindo o transporte e outros serviços sociais. No contexto das cidades brasileiras, vemos que muitos direitos são inviabilizados devido à mobilidade urbana deficiente e excludente. As classes menos favorecidas são as que mais carecem do usufruto pleno da cidade, pois longos trajetos casa-trabalho, casa-escola, casa-lazer são empecilhos para a satisfação das necessidades mais básicas, prejudicando, dessa forma, o potencial criativo e produtor do homem urbano. Quanto mais tempo se gasta em congestionamentos no trajeto diário para as diversas atividades, menos tempo sobra para as atividades favoráveis ao desenvolvimento humano, como o estudo, o esporte, o lazer e o cuidado espiritual que o homem deve ter consigo mesmo.

A Constituição Brasileira de 1988 pode ser um instrumento de mudanças no âmbito da proteção dos mais vulneráveis, pois deve haver a conciliação do desenvolvimento nacional, no que se refere à indústria e tecnologia, com o nivelamento social do povo brasileiro. Deve haver o pleno desenvolvimento nacional, com base no desenvolvimento econômico e social, concomitantemente, conforme as palavras do economista Celso Furtado (CABRAL, 2018).

No contexto da mobilidade urbana, o Brasil ainda não satisfez os anseios de seu povo, principalmente, as necessidades dos mais vulneráveis, e a Carta Mundial pelo Direito à Cidade afirma:

ARTIGO II. PRINCIPIOS E FUNDAMENTOS ESTRATÉGICOS DO DIREITO À