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No presente tópico, terá continuidade a análise do regime jurídico constitucional do direito à saúde. Para tanto, será investigado se os direitos sociais, entre os quais o direito à saúde, desfrutam da proteção especial resultante das cláusulas pétreas enquanto limites materiais à reforma constitucional. A inclusão dos direitos fundamentais no rol das cláusulas pétreas, também chamadas garantias de eternidade, presente no artigo 60, §4º, da CF/88 manifesta o nível máximo de proteção conferido pela Constituição Federal a essa categoria de direitos, o que acaba “impedindo a supressão e erosão dos preceitos relativos aos direitos fundamentais pela ação do poder constituinte derivado.”157



156 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Agravo no Recurso Extraordinário n. 271.286/RS. Segunda Turma.

Relator: Ministro Celso de Mello. Brasília, 29 de novembro de 2000. Disponível em <http://www.stf.gov.br> Acesso em: 06 out. 2013.

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A controvérsia cinge-se em saber se os direitos fundamentais sociais recebem a proteção decorrente das cláusulas de intangibilidade. Bonavides aponta as duas posições existentes. A primeira advém da interpretação literal do texto constitucional, o qual apenas se refere aos direitos e garantias individuais. Essa posição flui “de imediato, e sem qualquer intermediação doutrinária, do formalismo jurídico da Constituição-lei e dos códigos onde se pormenorizam os conteúdos normativos do ordenamento.”158 Consoante tal entendimento, apenas os direitos fundamentais da primeira dimensão, de matriz liberal-burguês, consagrados pela primeira vez no seio do Estado Liberal de Direito seriam destinatários desse grau máximo de proteção.

Nesse sentido é a posição de Dimoulis e Martins ao aduzirem que a expressão “direitos individuais” exclui de pronto os direitos sociais da proteção conferida pelo artigo 60, §4º, já que tais direitos poderiam sofrer restrições e até serem abolidos se respeitado o procedimento constitucionalmente previsto para reforma da Lei Maior.159 Os referidos autores concluem que “é protegida pela cláusula do art. 60, §4º, IV, da CF tão somente uma parcela dos direitos fundamentais que, grosso modo, corresponde aos direitos de resistência que podem ser exercidos individualmente.”160

Contudo, a interpretação restritiva antes exposta, na qual a letra da lei é aplicada rigorosamente, já não é mais viável frente à nova face assumida pelo constitucionalismo contemporâneo, com o qual houve o “advento de novos direitos que penetram a consciência jurídica de nosso tempo e nos impõem outorgar-lhes o mesmo grau de reconhecimento, em termos de aplicabilidade, já conferido aos [...] direitos e garantias individuais.”161 Desse modo, o grau máximo de intangibilidade conferido pelo §4º, do artigo 60 abarcaria tanto os direitos individuais quanto os direitos sociais. Atribuir a característica de cláusula pétrea aos direitos fundamentais sociais significa a imposição de uma vedação material às Emendas Constitucionais que intencionem aboli-los162.

Não obstante a redação do inciso IV, do §4º, do artigo 60, da CF/88, não se referir expressamente aos direitos sociais, a interpretação do dispositivo suprameniconado deve ser inclusiva, devendo os direitos sociais “ser reconhecidos como protegidos contra uma supressão e erosão pelo poder de reforma constitucional.”163 Isso porque, independentemente

 158 BONAVIDES, 2011, p. 652. 159 DIMOULIS; MARTINS, 2007, p. 55. 160 DIMOULIS; MARTINS, 2007, p. 5l. 161 BONAVIDES, 2011, p. 653.

162 ARAUJO; NUNES JÚNIOR, 2010, p. 395-396. 163

da dimensão na qual se enquadram, enquanto direitos fundamentais, foram retirados da esfera de disponibilidade dos poderes constituídos, pois visam à concretização da dignidade humana, princípio fundamental norteador da ordem constitucional brasileira164. Dessa maneira, ilógico seria limitar a reforma constitucional no tocante aos direitos fundamentais individuais e permitir que os direitos fundamentais sociais estejam expostos à vontade do constituinte derivado. Caso contrário, os próprios direito à vida e à liberdade correm o risco de perecer.

O direito à saúde também se encontra-se protegido pelo disposto no inciso IV, §4º, do artigo 60, da CF/88, o que significa dizer que ele constitui cláusula pétrea e impõe limites à reforma constitucional. Consoante Piovesan, apesar de o referido dispositivo apenas mencionar que os direitos e garantias individuais constituem cláusulas pétreas, deve-se atentar para o sistema jurídico e principiológico no qual o direito à saúde está inserido, o que implica a sua inclusão ao regime das cláusulas que impõem tal rigidez material e formal. Desse modo, os direitos sociais “são, portanto, direitos intangíveis, direitos irredutíveis, de forma que tanto a lei ordinária como a emenda à Constituição que afetarem, abolirem ou suprimirem os direitos sociais padecerão do vício da inconstitucionalidade.”165

Conferir proteção máxima aos direitos sociais é um resultado lógico e necessário à concretização dos objetivos da República Federativa do Brasil ditados pela Lei Fundamental:

Sem a concretização dos direitos sociais não se poderá alcançar jamais a ‘sociedade livre, justa e solidária’, contemplada constitucionalmente como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil (art. 3º). O mesmo tem pertinência com respeito à redução das desigualdades sociais, que é, ao mesmo tempo, um princípio da ordem econômica e um dos objetivos fundamentais de nosso ordenamento republicano, qual consta respectivamente do art. 170, VII, e do sobredito art. 3º.166

A inserção dos direitos sociais na categoria das cláusulas pétreas resulta da interpretação dos princípios e objetivos da República Federativa do Brasil constantes no Título I da CF/88. Essa garantia tão reforçada revela “uma intangibilidade que os coloca inteiramente além do alcance do poder constituinte ordinário, ou seja, aquele poder constituinte derivado, limitado e de segundo grau, contido no interior do próprio ordenamento jurídico.”167 Sendo assim, tanto as Emendas Constitucionais quanto as leis infraconstitucionais que abalarem ou suprimirem os direitos sociais estarão eivadas de

 164 SARLET, 2011, p. 70. 165 PIOVESAN, 2010, p. 56. 166 BONAVIDES, 2011, p. 657. 167 BONAVIDES, 2011, p. 657.

inconstitucionalidade, devendo tal vício ser declarado pelos órgãos do Poder Judiciário incumbidos pela guarda da Lei Fundamental168.

As diligências interpretativas dos doutrinadores que estendem o nível de proteção das cláusulas pétreas aos direitos sociais são baseadas na dignidade da pessoa humana. Tanto os direitos individuais quanto os direitos sociais possuem o mesmo grau de importância e são indispensáveis à salvaguarda efetiva desse valor supremo antes mencionado. A dignidade da pessoa humana constitui-se uma regra hermenêutica aos direitos sociais, devendo-se, por esse motivo, interpretar os direitos fundamentais da segunda dimensão de modo que seja reconhecido ao seu conteúdo material o nível máximo de proteção outorgado pelo §4º do artigo 60169.

Bonavides sintetiza o que foi exposto até então ao aduzir:

Enfim, só uma hermenêutica constitucional dos direitos fundamentais em harmonia com os postulados do Estado Social e democrático de Direito pode iluminar e guiar a reflexão do jurista para a resposta alternativa acima esboçada, que tem por si a base de legitimidade haurida na tábua dos princípios gravados na própria Constituição (art. 1º, 3º e 170) e que, conforme vimos, fazem irrecusavelmente inconstitucional toda inteligência restritiva da locução jurídica ‘direitos e garantias individuais’ (art. 60, §4º, IV), a qual não pode, assim, servir de argumento nem de esteio à exclusão dos direitos sociais.170

A equiparação dos direitos sociais aos direitos individuais, de acordo com a perspectiva acima traçada, objetiva conferir aos primeiros o mesmo nível de normatividade dos segundos, sem a intenção de revelar superioridade ou derivação. Isso porque, ainda há os que resistem à assimilação pretendida sob o argumento de que o conteúdo dos direitos sociais é indeterminado, por não esclarecer a priori qual prestação deve ser fornecida pelo Estado, diferentemente do que ocorre com os direitos individuais que ostentam clareza, pois visam à liberdade e não demandam uma ação complementar do legislador para definir o seu conteúdo. Outro argumento contrário à equiparação entre as duas dimensões de direitos fundamentais é a escassez financeira, pois sem recursos o Estado não consegue efetivar prestações positivas. Por fim, argumenta-se que os direitos sociais não estão amparados pelos mesmos mecanismos processuais de proteção imediata outorgados aos direitos individuais171.

Nesse sentido, Sarlet e Brandão asseveram que

 168 BONAVIDES, 2011, p. 657. 169 BONAVIDES, 2011, p. 658. 170 BONAVIDES, 2011, p. 659-660. 171 BONAVIDES, 2011, p. 662.

[...] integram o DNA da nossa Carta tanto a preocupação em proteger o indivíduo do exercício arbitrário do poder, quanto o dever de o Estado propiciar condições materiais que sejam necessárias para a preservação da dignidade humana. Deste modo, a leitura sistemática da CF/1988 conduz a considerar cláusulas pétreas não apenas os direitos de primeira dimensão ou os direitos de defesa, mas igualmente os direitos de segunda e terceira dimensão, sejam eles direitos a prestações estatais negativas ou positivas, ainda que se admita que os direitos prestacionais apresentam dificuldades adicionais no plano da eficácia. Devem ser incluídas, portanto, no rol das cláusulas intangíveis, por exemplo, as liberdades fundamentais, os direitos sociais, econômicos e culturais, os direitos à nacionalidade e políticos, e os direitos difusos e coletivos172.

Por fim, ressalta-se que muitos doutrinadores atribuem um “peso definitivo ao elemento gramatical”173 e não estendem a proteção decorrente das cláusulas pétreas aos direitos sociais e, por consequência, ao direito à saúde. E o fazem tendo em vista que a redação do dispositivo constitucional refere-se apenas aos direitos e garantias individuais, sem atentar para o fato de que, independentemente da dimensão da qual faz parte o direito fundamental em voga e da sua natureza prestacional ou defensiva, todos os direitos fundamentais consagrados pela Lei Maior constituem um sistema que se caracteriza pela unicidade, indivisibilidade e interdependência.