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O discurso antigênero: uma ameaça à escola democrática

Rogério Diniz Junqueira

Assistimos nos últimos anos à emergência de um discurso reacioná- rio que afirma, entre outras coisas, haver uma conspiração mundial contra a família. Segundo os promotores desse discurso, os autodenominados “defensores da família”, a escola tornou-se o espaço estratégico para a im- posição de uma ideologia contrária à natureza humana: a assim dita “ideologia do gênero”. E não param aí. Segundo eles, os professores, en- gajados nessa agenda global anti-família, em vez de cumprirem o currículo, buscariam usurpar dos pais o protagonismo na educação moral de seus filhos para doutriná-los com ideias contrárias às convicções e aos valores da família tradicional cristã. Para aniquilá-la por meio do cancela- mento das diferenças naturais entre homens e mulheres, esses inimigos da família procurariam confundir as crianças, obrigando, por exemplo, os meninos a vestirem saias e a brincarem de bonecas, enquanto as meninas seriam instigadas a se livrarem de sua natural propensão a cuidar dos ou- tros. Em um esforço de “erotização das crianças” desde a mais tenra idade, os alunos seriam estimulados a se interessarem por masturbação, homos- sexualidade, transexualidade, prostituição, aborto, poligamia, pornografia, pedofilia, bestialismo, etc. Alarmados, pais são convocados a se unirem em uma cruzada em “defesa da família” (referida sempre no singular), emba- lados em lemas como: “Abaixo a ideologia de gênero!”, “Salvemos a

família!”, “Respeitem a inocência das crianças”, “Meninos vestem azul; meninas vestem rosa!”, e assim por diante.

Esses “defensores da família” organizam verdadeiras cruzadas com vistas a reafirmar e impor valores morais tradicionais e concepções religi- osas em diversos âmbitos sociais. Trata-se de um projeto de poder regressivo que busca reforçar o estatuto de autoridade moral das institui- ções religiosas e salvaguardar sua influência na vida social, cultural e política, desde a esfera íntima, privada, até a gestão pública. Ao sabor de intensos embates em torno de controvérsias morais, essas ofensivas anti- gênero1 têm se mostrado eficazes para bloquear avanços e impor

retrocessos nos campos das políticas públicas e no mundo da vida. De fato, a arena pública de dezenas de países tem sido tomada por mobilizações voltadas a eliminar ou reduzir as conquistas feministas, a obstruir a adoção de medidas de equidade de gênero, a reduzir garantias de não discriminação, a entravar o reconhecimento dos direitos sexuais como direitos humanos, e, por outro lado, a fortalecer visões de mundo, valores, instituições e sistemas de crenças pautados em marcos morais, religiosos, intransigentes e autoritários.

Esse ativismo ultraconservador, geralmente religioso, mostra-se obs- tinado em contrapor-se à afirmação dos direitos humanos e sexuais de mulheres e lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e intersexuais (LGBTI). Entre outras coisas, esses ativistas engajam-se contra a adoção da perspectiva de equidade de gênero e o enfrentamento ao preconceito, à discriminação e à violência sexista, heterossexista e transfóbica. Opõem- se ao reconhecimento da diversidade sexual e da pluralidade dos arranjos familiares, à educação para sexualidade, ao acesso de adolescentes à infor- mação sobre saúde sexual, à proibição das terapias de reconversão sexual (popularmente conhecida como “cura gay”), à despatologização das trans- generidades e assim por diante. Segundo eles, tais adoções seriam vetores

1 “Antigênero”: a posição contrária à adoção da perspectiva de gênero e à promoção do reconhecimento da diversi-

da assim dita “ideologia de gênero”, uma ameaça à “família natural” e à sociedade.

Neste artigo, procurarei abordar sinteticamente o tema, conside- rando a gênese do discurso polêmico em torno da “ideologia do gênero”, as principais estratégias adotadas nessa ofensiva e algumas de suas impli- cações no campo da educação. Afinal, escolhida como um dos principais alvos dessa ofensiva reacionária transnacional, a escola foi colocada no centro de um debate público em que os desafios relativos às garantias ao direito à educação cedem lugar a abordagens voltadas a deslegitimar a li- berdade docente e a desestabilizar o caráter público e laico da instituição escolar como espaço de formação crítica e de socialização para o convívio social, plural, cidadão e democrático.

“Ideologia de gênero”: uma invenção católica

A maioria dos estudiosos2 do tema concorda que o sintagma “ideolo-

gia de gênero” é um neologismo produzido a partir da segunda metade da década de 1990 em reação às deliberações aprovadas na Conferência In- ternacional sobre População, no Cairo (de 1994), e na Conferência Mundial sobre as Mulheres, em Pequim (de 1995). Convocadas pela Organização das Nações Unidas (ONU), ambas as conferências são marcos importantes em favor da igualdade entre homens e mulheres e na prevenção e elimi- nação das injustiças e da opressão sexual e de gênero. No entanto, setores religiosos mais conservadores enxergaram nessas deliberações novas ameaças a seu poder político e prestígio social. Diante disso, o Vaticano conduziu um conjunto de ações com vistas a reafirmar a doutrina católica (reforçar posições religiosas tradicionalistas, seus pontos doutrinais dog- máticos e seus princípios “não negociáveis”), produzir e disseminar discursos de naturalização da ordem social e moral tradicional que

2 Ver: Case (2011), Garbagnoli (2014), Junqueira (2016, 2017, 2018, 2019), Paternotte, Dussen, Piette (2015), Rosado-

contribuíssem para conter ou anular avanços e transformações em relação a gênero, sexo e sexualidade.

Mais precisamente, pode-se afirmar que “ideologia de gênero” é uma invenção católica que emergiu sob os desígnios do Pontifício Conselho para a Família e da Congregação para a Doutrina da Fé, entre meados da década de 1990 e no início dos 2000. A expressão foi, assim, urdida no âmbito da formulação de uma retórica reacionária antifeminista, sintoni- zada com o pensamento e o catecismo de Karol Wojtyla (papa João Paulo II). O pontificado do papa polonês marcou-se pela radicalização do dis- curso da Santa Sé sobre moralidade sexual (especialmente quanto a aborto, contracepção e homossexualidade) e por um virulento ataque à “modernidade”. Essa teologia foi reunida em Homem e Mulher o Criou, de

1984, e encontrou uma de suas mais nítidas formulações na Carta às Fa- mílias, de 1994. O pontífice, ao fazer da heterossexualidade e da família

heterossexual o centro de sua “antropologia” e de sua doutrina, produziu uma teologia cujos postulados situam a heterossexualidade na origem da sociedade e definem a complementaridade heterossexual no casamento como fundamento da harmonia social. A Teologia do Corpo forneceu fun- damentos e parâmetros para a elaboração de uma retórica antifeminista que animaria a ofensiva antigênero. Atualmente, mesmo quando acionado por atores de diversas orientações religiosas ou laicos, o discurso antigê- nero permanece pautado por sua matriz católica.

Para a construção do sintagma e da retórica antigênero, além da Cú- ria Romana, foram mobilizadas figuras ultraconservadoras de conferências episcopais de diversos países, movimentos pró-vida, pró-fa- mília, associações de terapias reparativas da homossexualidade e grupos de ultradireita. Nesse processo, foi marcante a atuação de grupos religio- sos radicais estadunidenses e de movimentos eclesiais, dentre os quais a Opus Dei. E, embora se trate de um fenômeno urdido de maneira trans- nacional, é importante também observar a nem sempre suficientemente considerada contribuição da América Latina nesse processo. Era colombi- ano o cardeal que presidiu o Pontifício Conselho para a Família, de 1991 a

2008, exatamente nos períodos de construção e emergência do discurso antigênero: o ultraconservador Alfonso Lopez Trujillo. Ostensivamente re- acionário em relação à sexualidade e bioética, na fase mais aguda da epidemia de Aids o cardeal manteve oposição intransigente quanto à pro- ibição do uso de preservativos e a campanhas de prevenção não circunscritas à abstinência e fidelidade conjugal. Juntamente com a Con- gregação para a Doutrina da Fé, o colombiano sustentou um ataque contumaz à Teologia da Libertação em todo o continente.

Outra figura importante foi Michel Schooyans, um jesuíta belga que viveu no Brasil de 1959 a 1969. Anticomunista, se destacou pelas críticas ao aborto e ao uso de contraceptivos. Em seu livro O Evangelho perante a desordem mundial, de 1997 (a edição em português é de 2000), que conta

com prefácio de Ratzinger, dedicou amplo espaço à denúncia de um com- plô da “ideologia de gênero”: os organismos internacionais estariam à deriva do interesse de minorias sexuais subversivas, promotoras de uma cultura antifamília, do colonialismo sexual e da ideologia da morte. Nessa obra, Schooyans reserva um capítulo específico para expor o que considera ser a coligação ideológica do “gênero” com o socialismo, o malthusianismo, o eugenismo e o liberalismo. Nota-se, ali, um dos primeiros empregos do sintagma – ou talvez o primeiro. Essa possibilidade, aliás, não autoriza desconsiderar que processos de incubação, emergência e circulação do sin- tagma e da retórica a ele relacionada, se desdobraram a partir da formação e articulação de redes de atores, significados e representações, segundo tramas que ainda exigem estudos. Mais do que demarcar esse (ou outro) como o possível primeiro emprego do sintagma, é oportuno notar que, ali, ele aparece revestido de sentidos e amparado em elementos retóricos que encontrarão eco em futuras manifestações antigênero.

Em abril de 1998, a Conferência Episcopal do Peru publicou a nota A ideologia de gênero: seus perigos e seus alcances, produzida pelo ultracon-

servador monsenhor Oscar Alzamora Revoredo, Bispo Auxiliar de Lima, opusdeísta. Foi a primeira vez em que o sintagma foi empregado em um

documento eclesiástico. A nota teve ampla divulgação e se tornou uma re- ferência central na construção do discurso antigênero.

O documento do episcopado peruano teve como base um artigo redi- gido pela estadunidense Dale O’Leary para subsidiar os trabalhos preparatórios de grupos pró-vida e pró-família para a Conferência de Pe- quim. Também ligada à Opus Dei, a atuação dessa jornalista e ensaísta católica foi extremamente importante no processo de construção e disse- minação do discurso antigênero. Por anos, ela esteve ligada a um poderoso

lobby católico dedicado à defesa da “cura gay”, o Family Research Council

e da National Association for Research & Therapy of Homosexuality e

manteve intenso trânsito junto à Cúria Vaticana, inclusive em interlocução direta com o cardeal Ratzinger. Seu principal livro, o Agenda de Gênero,

de 1997, foi traduzido em várias línguas e é uma das bíblias do movimento antigênero. Grande parte dos argumentos e estratagemas retóricos em- pregados na ofensiva antigênero em todo o mundo já estão presentes nessa obra.

Na esteira dessas articulações, sob a batuta do cardeal Trujillo, o sin- tagma compareceu pela primeira vez em um documento da Cúria Romana com a publicação de Família, Matrimônio e “uniões de fato”, em julho de

2000. Nesse ínterim, o colombiano já vinha trabalhando para conduzir a elaboração do mais amplo, incisivo e polêmico documento sobre o tema: o

Lexicon: termos ambíguos e discutidos sobre família, vida e questões éti- cas. Publicado em 2003 pelo Pontifício Conselho para a Família, trata-se

de uma espécie de dicionário enciclopédico sobre temas relativos a gênero, sexualidade e bioética, para o qual colaboraram mais de 70 autores conse- lheiros do Vaticano ou atuantes em suas instituições de ensino. O Lexicon,

a suma teórica do discurso antigênero, ataca vigorosamente todo um con- junto de valores e referências que se consolidou sobretudo em sociedades secularizadas e que se disseminava pelo mundo. Seus verbetes tornaram- se textos de iniciação para interessados em aprender sobre a “ideologia de gênero” e a combatê-la. Suas traduções em português e espanhol foram publicadas em 2004.

O cardeal colombiano se valeu de dois textos para orientar o grupo encarregado de redigir os verbetes do Lexicon: o artigo acima mencionado

de Alzamora Revoredo e um artigo da teóloga alemã Jutta Burggraf intitu- lado “¿Qué quiere decir género? En torno a un nuevo modo de hablar” publicado em 2001 pela editora Promesa, em São José da Costa Rica. O artigo de Burgraff, professora da Universidade de Navarra e numerária opusdeísta, depois de revisto pelo Vaticano, recebeu novo título [“Gênero

(Gender)”] e passou a integrar o Lexicon, juntamente com o artigo de Al-

zamora.

Nos anos que antecederam a produção do Lexicon e nos seguintes,

não se registraram muitas manifestações públicas contra a “ideologia do gênero”. Em geral, elas se restringiam a pronunciamentos de Ratzinger, da Congregação para a Doutrina da Fé, por ele presidida (com a crucial

Carta aos Bispos da Igreja Católica sobre a colaboração do Homem e da Mulher na Igreja e no Mundo), e de alguns episcopados. Desse período,

vale destacar a fala do alemão na abertura da V Conferência Geral do Epis- copado Latino-americano e do Caribe, em maio de 2007, em Aparecida, no Brasil. A moralidade sexual foi um dos temas abordados nesse discurso e recebeu várias menções no “Documento de Aparecida”. O enfoque rever- berava disposições da Teologia do Corpo e já se mostrava engrenado na retórica antigênero. Ainda no mesmo ano, o livro Agenda de Gênero foi

publicado em espanhol pela Promesa e em português pela Canção Nova. Nos anos seguintes, presenciou-se um gradual e sustentado acionamento desse discurso antigênero.

Uma tematização mais intensa sobre a questão começou a se dar a partir de 2008, com forte empenada a partir de 2012, especialmente na Europa. Em 2008, Ratzinger, na condição de papa Bento XVI, proferiu dis- cursos sobre o tema, nos quais, mesmo expressando uma ideologia religiosa, abordava-o de maneira a soar como algo de interesse público universal. Como já tinha feito em O Sal da Terra (publicado em 1996, na

Alemanha), ele defendeu que a reflexão sobre a identidade sexual e as construções sociais relativas ao gênero poderiam desintegrar o ser

humano. A Igreja teria a responsabilidade de intervir para impedir isso. Os seus pronunciamentos por ocasião do Natal em 2008 e, especialmente, o de 2012 parecem ter representado um sinal verde para a eclosão em moldes transnacionais da ofensiva antigênero, que, em pouco tempo, con- quistou a arena política de diversos países, com manifestações oceânicas3.

Não há elementos que nos levem a crer que o Brasil tenha desempe- nhado uma liderança no alvorecer do movimento antigênero no continente. No entanto, pode-se dizer que havia traços da retórica antigê- nero em circulação no país pelo menos desde 2004, especialmente entre religiosos e defensores das terapias de reorientação sexual – ou, de certa forma, nas publicações do ativista católico Júlio Severo, desde o fim dos anos 1990. Ao sabor da oposição ao programa do governo federal Brasil Sem Homofobia (2004), ao projeto de lei sobre a criminalização da homo- fobia (PLC 122/2006), às normas deontológicas que proibiam a “cura gay” e ao Plano Nacional de Direitos Humanos III (2009), houve um gradativo acionamento desse discurso. Embora detratores das políticas de equidade de gênero e reconhecimento da diversidade sexual nas escolas viessem fa- zendo um uso enfático da retórica antigênero desde novembro de 2010, o sintagma “ideologia de gênero” não apareceu quando houve o veto ao kit anti-homofobia do Ministério da Educação, em maio de 2011.

Ainda naquele mês, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a união estável para casais do mesmo sexo e, em agosto, religiosos começa- ram a falar publicamente em “ideologia de gênero”. O ativismo religioso antigênero intensificou-se nos anos seguintes, com ataques às políticas pú- blicas de educação e saúde, por meio, por exemplo, da disseminação de informações imprecisas e acusações infundadas, do questionamento dos

3 A galáxia antigênero possui diversos nomes que também se destacaram nesse processo e que cumprem papel im-

portante na ampliação da ofensiva. Dentre eles: o monsenhor francês Tony Anatrella, a escritora alemã Gabriele Kuby, a jornalista estadunidense Marguerite Peeters, o cardeal guineense Robert Sarah. No caso da América Latina, entre os vários nomes que se destacam, vale lembrar os de JJorge Scala, Elida Solórzano, Marco Fidel Ramírez, Marisa Lobo, Felipe Nery, Rozangela Alves Justino, Ives Gandra da Silva Martins, Paulo de Barros Carvalho, Olavo de Car- valho, Nicolás Márquez e Augustín Laje. São, entre outros, atores importantes na disseminação da vulgata do discurso

vaticano sobre a “ideologia de gênero” no continente. Em maior ou menor medida, segundo cada caso, suas obras tendem a alcançar públicos conservadores de diferentes níveis de instrução e de distintas orientações religiosas ou sem religião.

indicadores sobre violações de direitos humanos de mulheres e pessoas LGBTI e do pânico moral. Nesse ínterim, em maio de 2013, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou resolução obrigando os cartórios a re- gistrar o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo e a converter em casamento as uniões estáveis.

O sintagma “ideologia de gênero” evidenciou-se de modo ostensivo no Brasil em março de 2014, no curso das mobilizações de fundamentalis- tas e ultraconservadores pela exclusão das menções a gênero e orientação sexual dos planos nacional, estaduais e municipais de Educação (Coelho & Santos, 2016). No final do mês, o cardeal e arcebispo do Rio de Janeiro Orani Tempesta publicou a primeira nota sobre o tema, no site da Confe- rência Nacional dos Bispos do Brasil (Rosado-Nunes, 2015). A partir de então, a ofensiva espalhou-se pelo país, com forte protagonismo de lide- ranças neopentecostais.

Principais estratégias discursivas dos movimentos antigênero Nos mais de 50 países em que ocorrem, as mobilizações antigênero adotam a mesma premissa: existiria uma conspiração mundial conduzida por feministas, ativistas LGBTI, políticos de esquerda, organismos inter- nacionais e seus aliados, todos eles empenhados em disseminar a “ideologia de gênero”. Segundo os cruzados morais, por meio de discursos sedutores sobre emancipação, liberdade, igualdade, combate à violência e à discriminação, os “ideólogos do gênero” ansiariam, na verdade, extinguir a “diferença sexual natural” entre homens e mulheres, heterossexuais e homossexuais, inculcando a crença enganosa de que tais diferenças seriam meros produtos de processos de construção social e que poderiam ser alvo de simples escolha do indivíduo. A “ideologia de gênero” seria, tal como o “cavalo de Tróia”, um artifício sedutor e perigoso a serviço de uma agenda político-ideológica astuciosa que, ao pretender subverter a ordem natural da sexualidade, ameaçaria a “família natural” (composta de pai, mãe e fi- lhos), o bem-estar das crianças, a sociedade e a inteira civilização.

Uma das estratégias centrais do discurso antigênero é, portanto, re- naturalizar a ordem social, moral e sexual tradicional e apontar como antinaturais crenças, ideias ou atitudes que contrariem essa ordem. Nas

suas arremetidas polêmicas, esses cruzados morais investem esforços na rebiologização essencializadora das concepções de família, maternidade, filiação, parentesco, sexualidade, heterossexualidade, identidade e dife- rença sexual4 e rechaçam toda e qualquer compreensão fornecida pelas

Ciências Sociais acerca dos processos sociais, históricos e culturais de cons- trução da realidade.

Não por acaso, observa-se por parte desses cruzados uma frequente preocupação em ocultar a origem católica do discurso e do movimento an- tigênero, tornando o discurso o mais “desconfessionalizado” possível. Assim, para evitar que suas ofensivas sejam percebidas como uma res- posta religiosa tradicionalista, procuram conferir a elas uma feição universalista, à altura dos desafios éticos contemporâneos. Daí os seus fre- quentes apelos à “ciência”. Os “defensores da vida, da família e da inocência das crianças” partiriam de bases científicas e técnicas, enquanto os “adeptos do gênero” apenas propagariam uma enganosa e infundada “ideologia”. Sem jamais submeter suas teses a escrutínio acadêmico, os “defensores da família” costumam chamar de “ciência” aquilo que cuida- dosamente selecionam para tentar confirmar suas formulações e legitimar seus posicionamentos políticos e morais.

Ora, cabe, entre outras coisas, resslatarque, ao contrário do que os polemizadores antigênero afirmam, as compreensões teóricas construcio- nistas sociais, nas quais os Estudos de Gênero se baseiam, longe de defenderem teses voluntaristas sobre a possibilidade de produção indivi- dual e idiossincrática de corpos, sujeitos e identidades, na verdade enfatizam a dimensão social dos processos complexos, sutis e profundos

em que indivíduos, grupos, culturas, instituições se veem social e histori- camente implicados.