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2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

2.2 O discurso como estrutura e acontecimento

Para a análise do acontecimento discursivo promovido pelo início das transmissões televisivas no Brasil, este trabalho filia-se à perspectiva discursiva de estudos da linguagem, somando-se aos estudos produzidos pela Análise de Discurso. Esta teoria, tal como compreendida neste trabalho, tem a sua origem na França, no final da década de 1960, e como marco inicial, a publicação do texto “Análise Automática do Discurso – AAD 69”, por Michel Pêcheux (1997a). Concepção pós-estruturalista da linguagem, a análise de discurso não vê o discurso apenas como estrutura, com o sentido restrito à linguagem verbal empregada, mas também como acontecimento, tendo a sua compreensão dependente da consideração do extralingüístico, como as suas condições de produção.

Reformulada por Pêcheux em suas obras seguintes (1990, 1997, 1997a, 1997b), a Análise de Discurso é desenvolvida no Brasil a partir da década de 1980, inicialmente por Orlandi (1983), e adquire características próprias nas muitas pesquisas realizadas em

instituições brasileiras13. Enquanto uma semântica discursiva, a Análise de Discurso ocupa- se “da determinação histórica dos processos de significação” (ORLANDI, 1996, p. 22). Trata-se de uma disciplina de entremeio que busca compreender o discurso em seu funcionamento; para isso, “é preciso fazer intervir a relação com a exterioridade”, uma vez que o “repetível em nível do discurso é histórico e não formal”. A determinação pela exterioridade faz com que todo discurso faça remissão a outros discursos, seja pela reafirmação do mesmo ou pela sua ausência, o que caracteriza o discurso como um eterno dizer “em curso”.

Compreendido como efeito de sentidos entre locutores, o discurso não se restringe à língua enquanto estrutura, mas à combinação entre língua, sujeito e história. O discurso compreende, desta forma, o acontecimento que se encerra na relação entre um enunciado e os vários enunciados em circulação. A noção do discurso como estrutura e acontecimento coloca em relação a língua e a história, e traz a questão da historicidade para a análise do discurso. Como afirma Orlandi (1996, p. 37-38), os discursos “não são objetos empíricos” e não podem se confundir “nem com a evidência dos dados empíricos, nem com o texto”, para fins de análise, pois são construídos sempre “a partir de hipóteses histórico- sociais”.

Por isso, segundo Pêcheux (1990, p. 17), “o confronto discursivo prossegue através do acontecimento...”, uma vez que um enunciado pode remeter a um mesmo fato, mas produzir significações distintas. A noção de discurso como estrutura e acontecimento é formulada por Pêcheux em 1983 (PÊCHEUX, 1990), a partir da compreensão da existência de múltiplas possibilidades de interpretações para um mesmo dizer.

Ao compreender o discurso como estrutura e acontecimento, que enquanto tal não prescinde da língua em sua estrutura, ou da história como exterioridade, e constitui sujeitos do (no) discurso, a análise de discurso configura-se como uma disciplina de

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Diante do desenvolvimento da Análise de Discurso no Brasil, com a diversidade de questões teóricas que se colocam em seus trabalhos, autores como Orlandi (2002a) falam em uma escola brasileira de Análise de Discurso. Em seus termos: “Na relação entre a ‘tradição’ lingüística brasileira e a lingüística geral, minha prática nessa história aponta para o deslocamento e a presença simultânea, no Brasil, de uma ‘escola’ de análise de discurso ‘aqui’. Podemos mesmo falar em uma Escola Brasileira de Análise de Discurso, em cuja fundação me situo (...) na sua relação com a Escola Francesa de Análise de Discurso...” (ORLANDI, 2002, p. 36-37).

interpretação. Segundo Orlandi (1996, p. 37), a análise de discurso, ao percorrer “o caminho que vai redefinir o político”, também concebe “a própria língua no processo histórico-social”, o que resulta na abordagem do sujeito e do sentido “como partes desse processo”.

É pela interpretação que o discurso, definido por Orlandi (1996, p. 40) como “conjugação necessária da língua com a história”, produz sentidos para sujeitos do discurso. A interpretação, na perspectiva discursiva, é deslocada da noção tradicional da mesma, uma vez que o gesto de interpretação do discurso não consiste na observação de seu conteúdo, ou na soma de resultados de análises realizadas sob diferentes perspectivas, por disciplinas distintas. A interpretação, própria do discurso e considerada enquanto gesto de interpretação, dá-se, segundo Orlandi (1996, p. 42), na relação entre “o simbólico e o político”, entre a ordem da língua enquanto estrutura, na sua indissociável relação com a história.

Ainda no dizer de Orlandi (1996, p. 20), em razão da incompletude da linguagem em sua materialidade discursiva, “o gesto de interpretação passa a ser visto como uma relação necessária (embora na maior parte das vezes negada pelo sujeito) e que intervém decisivamente na relação do sujeito com o mundo (natural e social), mesmo que ele não saiba”; desta forma, é possível dizer que o sentido depende da interpretação, posto que “não há sentido sem interpretação” (ORLANDI, 1996, p. 21).

Nesta perspectiva, compreende-se o discurso como um novo objeto de estudos, que encerra em si uma ordem própria. A ordem do discurso, segundo Orlandi (1996), distingue-se da noção de organização, configura-se a partir da relação entre duas outras ordens: a ordem da língua, “enquanto sistema material”, e a ordem da história, “enquanto materialidade simbólica”. A análise do discurso consiste na análise desta ordem própria do discurso, com a relação permanente entre língua e história, que constitui ao mesmo tempo sujeito e sentidos.

Compreender o discurso como estrutura e acontecimento é trabalhar com a possibilidade de interpretação própria do dizer, de modo a observar os seus efeitos de sentido, que se produzem no jogo entre regularidades e rupturas. O batimento entre a repetição e a inovação, entre o mesmo e o diferente, é próprio da produção discursiva, que

traz sempre consigo uma memória do dizer, enquanto interdiscurso, e uma atualidade. A produção discursiva é concebida pela análise de discurso como o resultado desta relação permanente entre um eixo vertical, que se marca pelo interdiscurso, e um eixo horizontal, do intradiscurso (Cf.: COURTINE, 1985). O discursivo inscreve-se neste encontro de uma atualidade com uma memória, sob condições de produção específicas. Assim se constituem os sentidos e, ao mesmo tempo, os sujeitos do discurso: no movimento constante entre repetições e rupturas14.