• Nenhum resultado encontrado

3. ARTIGO 03

4.3. Resultados e Discussão

4.3.3. O discurso do grupo misto

O grupo misto, com estudantes cotistas e não cotistas, foi composto por alunos que obtiveram índices mais elevados de heterofilia. São alunos que no cotidiano da universidade se relacionam também com pessoas de fora do seu grupo de origem, tomando como referência o tipo de ingresso na universidade (cotas ou sistema universal).

Ao expressarem suas percepções sobre as cotas os participantes denotam uma posição favorável ao sistema de cotas, destacando a importância de conviver com o diferente na universidade, bem como os ganhos para os cotistas e suas comunidades de origem.

“... a gente teve um ganho com as cotas muito grande porque você pode ter contato com mais pessoas de outras realidades, eu acho que isso enriquece bastante.”

“tem muitas pessoas na família que não tiveram acesso a universidade, e aquela

pessoa foi a única e que traz uma história diferente pra família.”

Espontaneamente, começam a refletir sobre o desempenho e a argumentar pelo mérito de superar dificuldades na formação básica. De início há certa negação das diferenças entre cotistas e não cotistas, negação que se desfaz no decorrer da discussão.

“...entrou na universidade as barreiras começam a cair, porque é um obstáculo muito grande,... mas aqui dentro... em questão de notas, em questão de relacionamento, ... isso vai acabando, as relações vão se tornando mais fluídas, os alunos conseguem aprender, assimilar e a gente não vê uma diferença tão grande de nota ou de relacionamento entre alunos cotistas e não cotistas.”

Após este primeiro momento de ênfase nos benefícios das cotas, os alunos começam a comparar o cotidiano dos não cotistas e dos cotistas e suas implicações para a formação universitária:

“Porque a biblioteca disponibiliza dois ou quatro livros, pra uma turma que tem 80 alunos, fora os alunos do noturno..., livros de 200 reais, a universidade precisa pensar muito mais nisso, não é só jogar o aluno aqui dentro...”

“... é óbvio que o desempenho de um cotista geralmente vai ser um pouco menor... a última vez que eu fui ao RU eu fiquei aterrorizada, eu sai daqui 10:40, eu cheguei ao RU 12:30, eu terminei de almoçar 14 horas, eu cheguei em casa quase 15... quem perde 4, 5 horas pra almoçar, vai chegar em casa acabada, você tem os pratos, você tem roupa pra lavar, você tem o chão pra limpar, você tem uma casa pra gerir, que horas você vai descansar e que horas você vai estudar?”

“Pessoas que têm um rendimento melhor porque têm um ambiente mais propício pra que ela desenvolva, ao contrário de outras que encontram um caminho muito mais árduo pela frente.”

A avaliação do sistema de cotas passa a ser mais crítica a partir deste momento no grupo. Surge a discussão da necessidade de ações concomitantes ao sistema de cotas, como a melhoria da educação básica e ações de assistência estudantil mais eficazes. Quando convocados a pensar nas cotas no contexto do curso de direito e na própria turma, os alunos logo tratam da distância na interação dos cotistas e não cotistas:

“A turma... tem os seus grupos formados e é nítido... que os grupos são formados por cotistas e grupos formados por não cotistas, existem as pessoas que transitam entre esses grupos, mas... digamos que a regra geral seja de que os grupos são de cotistas e não cotistas.”

Ao discorrerem sobre os motivos que conduzem à distância entre cotistas e não cotistas os alunos consideram uma ampla gama de aspectos interligados: diferenças exacerbadas na renda, associação por semelhança de hábitos, origem escolar semelhante, isolamento da faculdade de direito do restante do campus UFBA, cultura de pouca abertura a relacionamentos na faculdade de direito, práticas docentes e composição das turmas por escore.

“... a gente entra na faculdade, vai embora de manhã, entra numa aula vai embora e não tem mais nada pra viver aqui... existem pessoas que procuram e acham e outras que vivem só aquela aulinha vai embora e acabou, e aí impossibilita ter relação.”

A gestão da matrícula nas disciplinas do curso através do escore obtido no semestre anterior acaba por agrupar os alunos com notas mais altas em determinadas turmas, bem como os com notas mais baixas em outras. Após refletirem sobre os impactos dessa associação, o grupo avalia como este arranjo perpetua a desigualdade e configura formações distintas para estudantes do mesmo curso.

“... aí vem o sistema de escore pra segregar ainda mais (risos).”

“mas existe uma aproximação maior de quem tem escore maior com quem tem escore maior... e geralmente todo semestre pegar aquele dito professor melhor... aí vai tá lá sempre aquelas mesmas pessoas, porque geralmente escore é algo muito difícil de mudar, um décimo acima... é muito difícil de mudar.”

“… as vivências acabam sendo diferentes... Nós lá moramos (refere-se às pessoas

meio, outra é escore sete. Isso muda muito a percepção da faculdade, o seu escore muda muito as relações que você vai ter.”

“O escore aqui é negócio muito difícil e complicado nas relações.”

A postura dos professores em sala é bastante criticada pelos alunos. Primeiro por expressarem que a docência não é sua atividade principal por serem juízes, promotores e procuradores. Por conta disso, ostentam com frequência uma realidade financeira muito distinta da dos cotistas. Depois pelo trato claramente desigual entre estudantes cotistas e não cotistas, privilegiando os não cotistas.

“Você sente o preconceito na pele né? Porque você, pobre, ouvir que sua causa não vai poder ser julgada.”

“Tem professor que pergunta você mora onde? No vale das Pedrinhas. Eu estava discutindo usucapião..., ele tava falando justamente do Vale das Pedrinhas: ‘você sabe que aquela região do vale das pedrinhas...é invasão...’. Isso constrange, sabe?” “Os professores... não se prepararam para o sistema de cotas, essa é uma faculdade extremamente classista, faz parte dos operadores do direito valorizar...o bem sucedido.”

“Tem professores aqui nessa faculdade que não se tocam de que a posição social do alunado mudou. Tem professor. diz: ‘olha, não defenda causa de pobre, você ganha mas não leva’, isso choca os cotistas pobres que entram e estão ali ouvindo. Isso é a própria perversão do sistema de cotas, entendeu?”

Enquanto discorrem sobre causas da separação entre cotistas e não cotistas, o grupo propõe estratégias como: formação pedagógica para os docentes; promoção de espaços coletivos que viabilizem contato com alunos de outros semestres; cursar disciplinas de outras unidades da UFBA; ampliar o numero de projetos de pesquisa e extensão que agreguem pessoas de classes diferentes. O grupo finaliza retomando a questão das condições desiguais de formação para os dois grupos, considerando que esta desigualdade irá repercutir no mercado de trabalho.

Após esta narrativa do que foi a trajetória da discussão, segue uma análise comparativa dos discursos dos três grupos.