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O discurso erudito como técnica de crítica à sociedade

3 A CRÍTICA BRASILEIRA AO PRIMO BASÍLIO

4 MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS, SUA REALIDADE NÃO REALISTA

4.2 O discurso erudito como técnica de crítica à sociedade

O romance machadiano, pontuado de referências eruditas e por referências à vida urbana no Rio de Janeiro da segunda metade do século XIX, permite ao leitor real se identificar com as ideias e com a mentalidade apresentada pelo protagonista, afinal, “a presença abundante de teorias científicas e filosóficas nas Memórias póstumas de Brás Cubas refletia um assunto da atualidade”. (SCHWARZ, 2008, p. 151). A aproximação dos discursos, contudo, tem uma potencialidade negativa no romance machadiano. Em vez de utilizar os discursos comuns para aproximar-se das concepções de seu tempo, o diálogo estabelecido entre o narrador que produz os discursos e o autor implícito critica o pensamento corrente daquele período.

A desconstrução ocorre na maneira como o autor implícito volta sua atenção para o modo de aproveitamento das ideias. Nesse contexto, Schwarz demonstra que as “ideias fora de lugar” (2000) produzem uma dissonância entre discurso e ação. Esse processo não nega a verossimilhança entre os discursos, apenas produz um novo significado a fim de transmitir concepções críticas sobre a realidade intelectual do país. O conflito entre a erudição do protagonista e, consequentemente, de uma classe da sociedade com que ele se identifica, e a materialização das ideias apresentadas é uma crítica velada à situação nacional.

Se sairmos do plano mimético para analisar mais profundamente o discurso proposto pelo romance machadiano, vamos descobrir que há, por trás da aproximação superficial entre os discursos culturais, uma antirrepresentação da realidade. Na verdade, o discurso machadiano, tomado por um viés cético, tem o objetivo de mostrar não a realidade, mas sim a incapacidade de se chegar a ela por meio da linguagem:

(...) O cético não crê nem descrê, antes suspende seu juízo o máximo de tempo possível, protegendo a dúvida para continuar duvidando, ou seja, para continuar investigando e pensando. (…) Nesse sentido, o ceticismo não combina e não pode combinar com o realismo. O realismo pretende descrever a realidade como ela é, enquanto o ceticismo não duvida que a realidade seja, mas duvida sempre de como o realista diz que ela é. Logo, se Machado de Assis é cético, não pode ser realista. (KRAUSE, 2011, p.108).

A concepção cética de desconfiança perpassa todo o romance Memórias póstumas de Brás Cubas, como se pode perceber na maneira dúbia com que as relações e as qualidades são apresentadas. Tanto a questão social quanto a questão existencial

são, ao longo do texto, apresentadas em termos contraditórios. Dois capítulos explicitam essas contradições. No capítulo “O verdadeiro Cotrim”, o narrador fala de seu cunhado. Após apor-lhe os defeitos dos críticos, defende-o com seus opostos ou com suavizações. No fim, admite um, porém sobre Cotrim, mas para tão logo defendê-lo novamente:

Não era perfeito [Cotrim], decerto; tinha, por exemplo, o sestro de mandar para os jornais a notícia de um ou outro beneficio que praticava, — sestro repreensível ou não louvável, concordo; mas ele desculpava-se dizendo que as boas ações eram contagiosas, quando públicas; razão a que se não pode negar algum peso. Creio mesmo (e nisto faço o seu maior elogio) que ele não praticava, de quando em quando, esses benefícios senão com o fim de espertar a filantropia dos outros; e se tal era o intuito, força é confessar que a publicidade tornava-se uma condição sine qua non. Em suma, poderia dever algumas atenções, mas não devia um real a ninguém. (ASSIS, 2012, p. 214).

A passagem anterior, bem como todo o capítulo em destaque, mostra a maneira como o discurso, para Machado de Assis, é incapaz de descrever a realidade. Tudo nela são questões metalinguísticas: o que se fala de Cotrim, como se poderia falar, como Brás Cubas percebe. Por trás disso, há ainda o leitor diegético a quem o narrador comenta o fato, e o leitor extradiegético, que, conhecendo o contexto inteiro da obra e presenciando o diálogo entre narrador e autor implícito, ainda recepciona outro texto, por trás das linhas escritas. Esse mosaico de visões corresponde à maneira cética de encarar a realidade.

O capítulo Das negativas destaca a antinomia entre negativo e positivo. No plano existencial, o narrador-defunto mostra a antinomia da existência. As negativas ganham uma conotação positiva apenas para que o leitor as reinterprete como ironia do autor implícito e, portanto, negativas:

A posição de Brás Cubas na condição de defunto-autor remete diretamente à perspectiva cética. Se considerarmos que o transcorrer da vida de Brás Cubas mostra uma sucessão de malsucedidos, culminando por fim no “Capítulo CLX – Das Negativas”; uma existência de artimanhas pérfidas e dissimuladas para forjar qualquer sucesso que seja e atingir o reconhecimento da sociedade, mas que, entretanto, todos os seus empreendimentos vão sendo sequencialmente frustrados; entendemos que essa progressão de desilusões distancia gradualmente o personagem da vida social, uma vez que vai percebendo a precariedade, a inconstância e a incerteza da condição humana. Essa situação de contínuos desenganos, com um consequente afastamento da sociedade, atinge seu apogeu com a morte. Concebemos a transição da vida para a morte como a passagem de um ponto de vista que estima e dá crédito às realizações humanas para uma perspectiva desenganada, reflexiva, cética. (TOTI, 2011, s/p.).

Memórias póstumas de Brás Cubas enquanto romance cético não pode ser classificado como Realista. Essa observação é ratificada pela análise da metaficção presente ao longo do texto de Machado de Assis. O prólogo ao leitor, assinado por Brás Cubas, destaca as influências e os traços do romance para, ao fim, terminar com a seguinte lição: “A obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-te com um piparote, e adeus”. (ASSIS, 2012, p. 53). O primeiro período é claro ao destacar a obra da realidade, o que já é reforçado no primeiro capítulo, intitulado “O óbito do autor”. Já nesse momento, a obra estabelece uma metaficção, que se denota pelo diálogo entre o autor e leitor intradiegético.

O processo de metaficção estava presente em algumas das obras que Brás Cubas arrola como influências ao seu romance autobiográfico. Lawrence Sterne (2007), em The Life and Opinions of Tristram Shandy, Gentleman, e Almeida Garrett (2012), em Viagens na minha terra, estabelecem diálogos com um leitor intradiegético para quem seus narradores explicam a obra. No caso de Machado de Assis, essas intervenções têm, entre outras, a finalidade de resgatar o leitor da ilusão da realidade. Como bem diz já no prólogo, “a obra em si é tudo”, isto é, os eventos narrados ali não têm uma ligação direta com a realidade:

Machado chama a atenção do seu leitor, através de intervenções metaficcionais constantes, para o fato de que ele mostra somente um efeito de real e não o real mesmo, exatamente porque não deseja mostrar a realidade, mas sim diversas perspectivas sobre a realidade, deixando-as ao mesmo tempo, e todas elas, sob suspeita. (KRAUSE, 2011, p. 111).