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O reflexo da sociedade, questões sobre erotismo e referencialidade

2 O ESTUDO SOBRE O PRIMO BASÍLIO

2.5 O reflexo da sociedade, questões sobre erotismo e referencialidade

Compagnon (2010) analisa quatro funções que a literatura têm tido ao longo dos tempos: a função de aprendizagem, a função de consenso social e ópio do povo que se relaciona com a função de moral social e a função subversiva. De qualquer maneira, “do ponto de vista da função, chega-se também a uma aporia: a literatura pode estar de acordo com a sociedade, mas também em desacordo; pode acompanhar o movimento, mas também precedê-lo”. (COMPAGNON, 2010, p.37).

Eça de Queirós, atento aos ideais do Realismo e aos ideais reformistas da geração de 70, produz sua obra em concordância com a função literária de ensinar e de estabelecer uma moral social subversiva. Seu intuito acompanhava toda uma vasta corrente literária que buscava explicar e influir na sociedade de modo a provocar alterações benéficas ao corpo social. Nesse sentido, a subversividade não se refere a um choque de valores, mas a uma modificação nas estruturas profundas da sociedade; o que justifica os ataques à família portuguesa.

Eça de Queirós se enfileira entre os escritores realistas que buscavam influir na sociedade de onde tirava seus modelos. Por isso, é válido apontar uma “vocação apostólica” (ASSIS, 1986, p. 906) ao autor. Com O primo Basílio, Eça de Queirós atacava o que supunha ser a base da sociedade portuguesa, a família. Para o autor,

“Primo Basílio não está inteiramente fora da arte revolucionária”. (QUEIRÓS, 2012, p. 436). Descortinam-se, assim, sua atitude explicitamente política; o propósito literário da obra confunde-se com o desejo de influir e modificar a sociedade.

O autor português pretendia, por meio da representação da família e de alguns tipos portugueses, promover uma crítica contumaz dos modos de seu país e produzir uma mudança profunda na sociedade. Havia uma tentativa propedêutica de preparar a sociedade portuguesa para suplantar seus vícios e ser capaz de tornar-se mais evoluída.

A representação proposta por de Queirós foge ao retrato fiel da sociedade ao expor um mundo diverso da verdadeira pequena burguesia de Lisboa à época. A mensagem crítica chega ao leitor por vários mecanismos que não apenas a tipificação, como no caso de Acácio, e o espelhamento, demonstrado pelo conjunto social que cerca o casal protagonista. Luísa funciona como metáfora de uma classe acéfala, pronta para divertimentos baratos e para ser conduzida sem refletir sobre sua própria condição. Nesse sentido, sua crítica à burguesia é ainda mais atual do que se poderia supor. Também Juliana serve para denunciar a exploração da classe mais miserável, para reclamar sobre a animalização dos empregados. Por outro lado, a denúncia social é o que há de menor na construção da criada. Sua concepção revela questões maiores sobre a natureza humana, o que a transforma em uma crítica universal à maneira como os homens lidam com suas paixões e desejos.

A questão da crítica social complica-se quando outros aspectos da estética eciana são somados à análise do texto. O sensualismo, por exemplo, é um traço poderia fragilizar a doutrinação social do romance, uma vez que atentaria aos bons costumes da época. De toda sorte, seu tratamento no romance não se dá apenas mediante sinais negativos.

Evidentemente que há opiniões discordantes. Há quem descreva o erotismo em Eça de Queirós como outro elemento contra a falsidade da sociedade portuguesa. Significaria ou uma demonstração da fraqueza moral da sociedade portuguesa ou um diagnóstico de seu comportamento imoral. Assim:

[Esse] desejo de aniquilar a falsidade da sociedade portuguesa confere ao autor um certo pendor para a imoralidade. Seus temas são escândalos morais: um padre que desvirginiza uma rapariga, o adultério entre primos, a hipocrisia e a manipulação da fé, o relaxamento dos costumes. Suas figuras femininas, considere-se nesse sentido, tanto Luísa quanto Amélia, Juliana e a Sra. Joaneira, estão imersas na licenciosidade. Portugal aparece, aí, como

composto de pervertidos, venais e caracteres fracos. Em suma, na pena do romancista é delineado um ambiente de vício ante o qual todos sucumbem. (ROANI, 2003, p. 3).

Em oposição a essa leitura, entendemos que o erotismo é um tema recorrente nos romances de Eça de Queirós. Esse elemento, embora tivesse relação com as tendências do Realismo (ROSA, 1963, p. 124) não é, na obra eciana, intrinsecamente ruim. Apesar das conotações moralistas, o sexo não é sempre um vício de suas personagens.

Em O primo Basílio, o erotismo e a sensualidade não se ligam diretamente ao adultério. Na verdade, esses elementos se relacionam de maneira múltipla. Constituem elementos de força social, logo de crítica, fortalecendo o ataque às falsas bases de felicidade burguesa, mas também funcionam como motores do enredo e como elementos estéticos.

Enquanto estrutura plenamente social, as relações amorosas e carnais são ora negativas ora positivas. O conselheiro Acácio, cujas “neves que na fronte se acumulam, termina por cair no coração...” (QUEIRÓS, 2012, p. 54), rejeita D. Felicidade ao mesmo tempo em que se mostra um homem sério e respeitoso. Ao fim do livro, descobrimos a falsidade dessa posição casta, e a crítica eciana firmemente recai sobre o conselheiro. Nesse caso, as relações carnais revelam a hipocrisia.

A positividade dessa temática é apresentada na relação sensual entre Luísa e o marido, que provoca ira na empregada. Como mencionado, Juliana, enquanto antagonista, é um ser de paixões, mas sem amor e sem sensualidade. Sua descrição negativa bate-se com a caracterização positiva de Luísa e com a união sensual do casal, fato que despreza. Dessa maneira, a sensualidade de Jorge e Luísa são traços positivos opostos a ausência de sexualidade de Juliana.

Enquanto força do enredo, o erotismo e a sensualidade, às vezes, são vistos como o motor maior da obra. Significaria dizer que seria a sensualidade o motivo da fascinação e do adultério. Trata-se de uma hipótese é frágil, porque seleciona episódios sem se deter no quadro geral proposto pela narrativa. Luísa não começa o relacionamento com seu primo por desespero carnal.

Mesmo não sendo o motor da obra, o sexo é a ferramenta com que Basílio arrebata temporariamente Luísa. A famosa cena do “Paraíso” é uma expressão de força, ao mesmo tempo em que uma inversão do paradigma de licenciosidade feminina. É preciso lembrar que essa cena ocorre após um desentendimento entre o casal, quando,

numa rara ocasião, Luísa parece demonstrar algum nervo. Como forma de reconquistar Luísa, o primo utiliza de “sensações novas”. Entre Basílio e Luísa, ele é o licencioso e quem ludibria através do sexo.

Na verdade, a queda de Luísa não está ligada à licenciosidade feminina porque todos os personagens do romance, exceto, Sebastião e Julião, têm uma dimensão sexual. Joana, Luísa, Leopoldina, Acácio, Jorge e Basílio são personagens sexualmente ativos e, no caso de D. Felicidade, ela é uma personagem com desejos sexuais. De fato, o sexo adquire tons de normalidade; a única personagem contrária ao sexo é Juliana, exatamente a antagonista. A descrição de Eça da condição da criada, por sinal, é bem instrutiva sobre a moral que reputa aos relacionamentos e ao sexo:

E nunca tivera um homem; era virgem. Fora sempre feia, ninguém a tentara; e, por orgulho, por birra, com receio de uma desfeita, não se oferecera, como vira muitas, claramente. O único homem que a olhara com desejo tinha sido um criado de cavalariça, atarracado e imundo, de aspecto facínora; a sua magreza, a sua cuia, o seu ar domingueiro tinham excitado o bruto. Fitava-a com um ar de bitídogue. Causara-lhe horror - mas vaidade. E o primeiro homem por quem ela sentira, um criado bonito e alourado, rira-se dela, pusera-lhe o nome de "Isca Seca. Não contou mais com os homens, por despeito, por desconfiança de si mesma. As rebeliões da natureza, sufocava- as; eram fogachos, flatos. Passavam. Mas faziam-na mais seca; e a falta daquela grande consolação agravava a miséria da sua vida. (QUEIRÓS, 2012, p. 92).

Juliana é uma personagem infeliz. Dentre suas agruras, há a de não ter tido um homem e um amor. Seu único atrativo físico é o pé, que “era o seu orgulho, a sua mania, a sua despesa”. (QUEIRÓS, 2012, p. 95). Essa sua mania reforça a impressão que temos de sua infelicidade amorosa, e o rancor que guarda das outras mulheres. O sexo, portanto, liga-se indistintamente aos diversos elementos da sociedade sem ganhar uma evidente conotação depreciativa.

Quanto ao adultério, ele tem duas faces diversas. Enquanto tema central mostra a maneira como Luísa é enredada por ele, o que apenas ocorre em razão do intuito do enredo. Luísa sucumbe ao adultério porque o narrador assim deseja. Até aqui argumentamos que as vontades de Luísa não emergem em nenhum momento. Ela não é uma personagem licenciosa a ponto de necessitar de amor. Seu pensamento, quando fora encontrar Basílio no “Paraíso” a primeira vez, era muito mais literário do que sexual. Tampouco estava insatisfeita com o casamento. Seu relacionamento com Jorge não era casto. O sentimento que nutre pelo marido, exceto no breve momento após a cena do “Paraíso”, parece sincero.

Luísa é uma personagem cujas paixões oscilam conforme a vontade do narrador. Apenas isso justifica o acesso de ciúmes quando conhece as confidências do marido a Sebastião. Nesse momento surge o segundo adultério. Também é estabelecida uma interessante distinção entre o poder e a permissividade masculina quando comparado ao mundo feminino.

Esse episódio possui um caráter polissêmico. Ao mesmo tempo em que mostra a fragilidade moral na família burguesa, também serve, se tomarmos Luísa como metáfora da classe social, para que o leitor ganhe discernimento da vacuidade existencial dessa classe. O adultério de Jorge, uma possibilidade levantada pela conversa entre Luísa e Sebastião, sugere que a existência burguesa é voltada para si. Simbolicamente essa reflexão surge quando Luísa, tomada de ciúmes, esquece sua qualidade de adúltera.

Outro viés desse mesmo episódio é a falsidade de Jorge, que não admitia Leopoldina em sua casa, mas comenta com Sebastião inconfidências equivalentes e a consequente revelação da desigualdade entre os gêneros. Sugere-se que uma traição de Jorge é mais socialmente aceita do que o adultério de Luísa. A posição de provedor permitiria ao marido ter encontros ou flertes com outras mulheres. Temos, portanto, que a sexualidade, ao ser diluída nas personagens, não se liga nem ao adultério nem ao feminino de maneiras preponderantes.

Um elemento retratado sem erotização é a cidade. “[A] Lisboa que esses olhos revelam é uma cidade em menos, está destituída de sua dimensão erótica porque, neste romance, a cidade é mais um detalhe para se compor a cena modulada por comportamentos obscuros e muitas vezes obscenos”. (MARGOTO, 2001, p.77). A feiura da cidade mostra o caráter pobre daquela sociedade, que se pretende personificada em Luísa. Se Lisboa, como propõe Margoto (2003), aproximam-se de Luísa pela ausência de luzes, cores e brilhos, por ser reles, a ausência erótica da cidade equipara-a a Juliana. Desse modo, temos a crítica formada no plano simbólico: uma cidade composta por esses tipos não tem cor, não seduz; por outro lado, esses personagens, com bases tão falsas de moral e de conduta, estão fadados ao seu destino de queda e miséria.

O erótico, conclui-se, é um traço estético apreciável por Eça, ainda que seja uma maneira de aprofundar sua crítica realista. Esse traço compõe a sociedade e serve para educar, embora se dê de maneira corruptora. “O método corruptor do libertino

consiste precisamente na nomeação das posições sexuais e das partes mais secretas do corpo, valendo-se dessa “língua técnica” cujos termos foram expulsos do léxico da decência” (MORAES, 2003, p. 3) corroborando com a visão pessimista que Ortigão aponta na obra. Esse ensinamento só é moralizante pelo inverso, mas tem o condão de igualar homens e mulheres, ou, talvez, de até pô-las em um nível superior.