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Capítulo 5 – Dos Republicanos a Caracas.

5.5. O divisor de águas.

Assim, a X Conferência interamericana de Caracas passou a ser vista como um divisor de águas para as relações bilaterais Brasil-EUA, mesmo que não se tivesse a certeza de que ela havia aproximado ou distanciado os dois países. Nahum Sirotsky considerava que “[a]s relações entre a América Latina e os EUA serão inspiradas, doravante, pelas lições aprendidas em Caracas”. 350 Dulles teria declarado que a conferência tinha sido ‘quite instructive’ para os EUA, pois “descobriram que seus amigos latinos já haviam atingido a maturidade política e estes, por sua vez, chegaram à conclusão de que, para negociar com Washington, devem falar com franqueza e sobriedade”. 351

O grande consenso entre os latinos estava na importância dos temas econômicos que seriam discutidos de modo mais detido em uma reunião entre Ministros da Fazenda, agendada para novembro de 1954, no Rio de Janeiro. No entanto, os brasileiros julgavam que a orientação política das Américas deveria ser ‘ainda’ a mesma dos EUA. Assim, fez agir sua diplomacia no sentido de mediar os diferentes interesses e cobranças feitas aos EUA. Por isso, “os americanos não davam um só passo sem antes consultar a delegação brasileira”.352 Visão romântica ou não, o fato

é que a diplomacia brasileira consegue que os temas econômicos fossem inseridos nas discussões e trazem para o Rio de Janeiro o já referido encontro de ministros das áreas econômicas do continente. Tal conquista, através de uma declaração de princípios econômicos, teria feito o Secretário de Estado dos EUA entender “que existe uma diferença fundamental entre o problema comunista nos EUA e na

349 Telegrama confidencial do MRE à BrasEmb de 1/04/1954. 350 Visão, 02/04/1954, p.13.

351 Idem. 352 Idem.

América Latina”. 353 Porém, a lição não parecia ter sido aprendida de modo ‘sincero’,

pois Dulles retornou aos EUA apressadamente após conseguir a declaração anticomunista. Percepção agravada pelo fato de, ao chegar aos EUA, ele não ter feito referência aos temas econômicos tão debatidos durante o encontro. Assim, segundo o representante boliviano na conferência, Walter Guevara Arze, “os EUA jogaram seu prestígio em Caracas (...). O certo, porém, é que, neste encontro pan- americano, seu prestígio não aumentou. E o resultado pode favorecer o triunfo dos movimentos extremistas no hemisfério”. 354

Os ‘serviços prestados’ aos EUA pelo Brasil podem ser comprovados pelo memorando em que se relata a visita do Embaixador dos EUA no Brasil, Kemper, ao Chanceler brasileiro.

In Dr. Ráo’s office, after introductions, you expressed to the Minister Secretary Dulles’s warm appreciation for the assistance given to the US program at the Caracas Conference by the Brazilians delegation. Dr. Ráo replied that it had been a great privilege for the Brazilians to cooperate with their US colleagues at the Conference and that he, personally, had often taken part in the debates and discussions in defense of the American theses.355

O clima de ‘camaradagem’ continua ao se fazer referência à tradicional amizade entre os dois países e o fato de o Brasil ter barrado a tentativa argentina de criar um bloco antiamericano. O diplomata americano se surpreende com o entusiasmo pouco comum com o qual Raó se referia à solidariedade existente entre as duas delegações durante a conferência. Tal entusiasmo parecia resultado da percepção criada entre os brasileiros de que teria conseguido lugar privilegiado na política exterior dos EUA e que poderiam reviver ou inaugurar uma ‘amizade especial’ que traria importantes frutos ao país. No entanto, o futuro demonstraria que tais expectativas eram superestimadas. A decepção que seria novo combustível a alimentar o sentimento antiamericano de importantes setores da diplomacia brasileira.

Outro importante fato agravaria as relações entre os dois países e a urgência da situação econômica do Brasil: a alta do preço do café e a consequente diminuição do consumo nos EUA, principais compradores do produto. Tais condições

353 Idem, p.14. 354 Idem, p.15.

colocavam o Brasil em rumo de deterioração econômica, não sendo capaz de investir nos projetos necessários para a sua industrialização.

Assim, a urgência dos entendimentos com os EUA era cada vez maior. E a recusa dos EUA em aceitar a lógica ‘política’ dos investimentos seria importante para o recrudescimento das posições reativas aos EUA que eram acusados de negligência com seus amigos históricos. A percepção quanto à lógica dos investimentos estava estampada na imprensa brasileira. O correspondente de Visão nos EUA, Igor Gordevitch, refletia tal percepção ao reportar que o governo dos EUA “concederá poucos empréstimos oficiais; mas incentivará os empréstimos particulares; não se criará nenhum organismo tipo plano Marshall para a América Latina”. 356

Essa recusa dos EUA em iniciar um plano de ‘resgate’ econômico para o continente teria desdobramentos importantes por ocasião da questão da Guatemala e do agendamento para uma V Reunião de Consulta dos Ministros das Relações Exteriores no âmbito da OEA. A alegada influência comunista naquele país da América Central movimentaria os círculos diplomáticos. Mais uma vez, dois campos opostos se manifestavam: os EUA em busca da contenção do comunismo privilegiavam os temas de segurança, os latino-americanos em busca de desenvolvimento enfatizavam os assuntos econômicos. Assim, ‘a questão da Guatemala’ transformar-se-ia em mais uma rodada na disputa entre esses dois campos.

Os EUA haviam chamado a nova reunião de consulta para que se estabelecessem as bases de contenção do comunismo no continente. Conforme comprova a correspondência diplomática 357, haveria já pronta uma proposta de resolução preparada pelos EUA. Tal ‘draft’, anexo à correspondência acima referida, era explícito em suas vontades. Após prelúdio em que exortava a missão histórica do continente em buscar um maior grau de liberdade, vocação que não deveria ser prejudicada pela intervenção extracontinental, chega-se ao ponto:

The objectives of the International Communist movement, as demonstrated by the coercion and repression instituted in nations and areas subjected to

356 Visão, 02/04/1953, p.16.

its dominations, are directly contrary to the aforementioned purpose of the American nations and to the principles established in the Charter of the OAS, the inter-American Treaty of Reciprocal Assistance and other inter- American Instruments.

The American republics recognize that the ultimate goal of International Communism is the domination of the whole world by unlawful processes of violence, subversions and conspiracy.

There is increasing evidence that the International Comunist Organization is attempting with special vigor at this time to establish a strong center of action in the Americas from which to extend its influence throughout de Continent. 358

Posteriormente, observava-se que o entendimento da OEA era de se tomar as mediadas necessárias para que se impedisse a intervenção comunista em qualquer parte do continente, sendo a Guatemala um caso concreto. Assim, o ‘draft’ relatava que um grande carregamento clandestino de armas e munições havia sido enviado para aquele país, sendo a origem da referida carga um território europeu dominado pelo movimento comunista internacional. Para piorar, havia evidencias de “various authoritative sources regarding the penetration of political institutions of the Republic of Guatemala by the International Communist movement”. 359

Portanto, dadas as ameaças ao continente, a V Reunião de Consulta de Ministros das Relações Exteriores deveria condenar e agir no sentido de se barrar o avanço e expelir a influência dos comunistas no continente através de dois cursos de ação:

1.As preventive measures the detention and inspection of vessels, aircraft and other means of conveyance moving to and from the Republic of Guatemala, in order to insure against the further introduction of arms and implements of war in that country;

2. In the spirit of resolution VIII of the Fourth Meeting of Consultation of Minister of Foreign Affairs of the American Republics all measures required in order to prevent travel by agents of International Communism between Guatemala and any territory dominated by the International Communism movement.360

O sentido proativo dos EUA para expurgar o comunismo no continente soava inconveniente aos brasileiros, que desejavam uma agenda mais diversificada. Neste sentido, apesar de o Brasil apoiar a ação contra o governo Guatemalteco identificado como de inspirações comunistas, não concordava com uma reunião de consulta apenas para que fossem comunicadas as ações e decisões emanadas do

358 Idem, p.3. 359 Idem, p.4. 360 Idem, p.5.

Departamento de Estado. O Brasil, assim, defende o cancelamento da reunião de consulta em face do ‘perigo’ da mesma se tornar apenas mais um pretexto para a defesa de posições dos EUA. Relatava-se que os fatos indicavam a pacificação da Guatemala e o afastamento da ameaça comunista. Assim, considerava o Ministro que não via “vantagens na Reunião de Consultas apenas para tomar conhecimento do fato”. Ele explica:

A Reunião, de acordo com o Tratado do Rio, só poderia ter por objetivo a tomada de decisão e não o simples registro de uma situação de fato. Julgo mais conveniente que ao conhecer o relatório do comitê de inquérito a Comissão Interamericana de Paz conclua pela existência da pacificação e remeta conclusão ao Conselho da OEA para que este órgão declare desnecessária a Reunião de Consulta. (...) Nada ganharíamos em oferecer pretexto para explorações e agitações comunistas em países americanos sobre o assunto praticamente encerrado. 361

A desaprovação da decisão não ter sido objeto de discussão multilateral estava implícita nas considerações do Ministro. O apoio à ação da OEA era claro contraste com a forma de resolução e intervenção adotada pelos EUA. O fato é que a derrubada do governo de Jacobo Arbenz, no dia 27 de junho de 1954, teria consequências para a imagem dos EUA, pois o plano era que as recomendadas ‘medidas severas’ contra os comunistas fossem aplicadas pela OEA e não pelos EUA. Assim, considerava-se que os comunistas teriam vencido “por meio de um trabalho hábil desenvolvido em todo o hemisfério [pelo qual] eles convenceram milhões de não comunistas de que os EUA intervieram nos assuntos de uma república americana”. 362 Prestígio que fora maculado de forma desnecessária por

muitos no Departamento de Estado que “acreditavam que o regime Arbenz seria em breve derrubado por um movimento interno”. 363

A despeito das divergências e da crise econômica e política vivida pelo Brasil que iria enredar o trágico desfecho do suicídio de Vargas em 24 de agosto de 1954, as negociações com os Estados Unidos continuavam. O Departamento de Estado, menos de um mês antes da morte de Vargas, produzia síntese das demandas bilaterais.364 O Brasil possuía demandas militares, econômicas, políticas, culturais e

361 Correspondência secreta do MRE à BrasEmb de 30/06/1954. 362 Visão, 9/07/1954,p.14.

363 Idem.

referentes à exploração dos materiais atômicos. Por sua vez, os EUA demandavam acordos nas áreas militar, econômica e política. Sendo que, neste último tópico, pedia-se que o Brasil continuasse a apoiar as posições estadunidenses em diversas organizações internacionais e que a luta contra a infiltração comunista no hemisfério fosse mantida.

Os fatos que levam ao suicídio de Vargas, por já demasiadamente conhecidos, não serão aqui descritos. Apenas serão sublinhados os termos relativos aos interesses internacionais, descritos em tons de denúncia. Evidenciava-se que tal temário, a despeito da veracidade das acusações do presidente suicida, era vívido no ambiente político e social do Brasil. Sendo as palavras abaixo suficientes para desencadear reações contrárias e violentas da população contra ‘alvos’ identificados como contrários aos interesses nacionais 365. Vargas acusou em sua última carta:

Sigo o destino que me é imposto. Depois de decênios de domínio e espoliação dos grupos econômicos e financeiros internacionais, fiz-me chefe de uma revolução e venci. Iniciei o trabalho de libertação e instaurei o regime de liberdade social. Tive de renunciar. Voltei ao governo nos braços do povo. A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se à dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho. A lei de lucros extraordinários foi detida no Congresso. Contra a justiça da revisão do salário mínimo se desencadearam os ódios. Quis criar liberdade nacional na potencialização das nossas riquezas através da Petrobrás e, mal começa esta a funcionar, a onda de agitação se avoluma. A Eletrobrás foi obstaculizada até o desespero. Não querem que o trabalhador seja livre. 366

As manifestações da população reverberavam o sentimento anti-imperialista e, conforme relatado pela imprensa, materializavam seu ódio na Embaixada e em consulados dos EUA instalados no país. O ‘antiamericanismo de cátedra’ atingira a população. No entanto, tais manifestações não foram suficientes para romper a institucionalidade no país: o vice-presidente Café Filho foi empossado como Presidente da República.

365As manifestações populares consequentes ao suicídio do presidente foram imediatas. No dia seguinte, quando a Carta Testamento chegou ao conhecimento dos brasileiros pelos rádios, manifestações de indignação e revolta contra os adversários do "pai dos pobres" tomaram as ruas do Brasil. Houve apedrejamentos da Embaixada e de Consulados dos EUA no Brasil, assim como das redações de jornais opositores a Vargas. O udenista Carlos Lacerda, um dos grandes inimigos políticos de Vargas, fugiu do país com receio da ira popular. http://www.jblog.com.br/hojenahistoria.php?query=24+de+agosto+de+1954&amount=0&blogid=57 consulta em 18/03/2012, às 23h10min.