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CAPÍTULO 4 – A PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL DE VIGOTSKI

4.2 O EMBASAMENTO MARXISTA DA TEORIA DE VIGOTSKI

As principais idéias de Vigotski (1979a; 1988a; 1996a) dizem respeito: (1) à relação dialética entre indivíduo-sociedade, as quais dão origem às características tipicamente humanas. Ou seja, à medida que o homem transforma o seu meio, transforma-se a si mesmo; (2) às funções psicológicas superiores têm origem nas relações entre o indivíduo e seu contexto sócio-cultural, ou seja, têm origem cultural; (3) à relação homem-mundo, mediada por "ferramentas" criadas pelo homem; (4) ao cérebro como a base biológica de tais funções mentais. Mas o cérebro não seria

imutável nem fixo. “Por isso, os fenômenos psíquicos, enquanto fenômenos naturais (ou

seja, não modificados), não podem explicar o desenvolvimento, o movimento, as

mudanças na história da ciência. Esta é uma verdade evidente” (VIGOTSKI, 1996, p.

Desse modo, pode-se concordar com Shuare (1990), que é o historicismo que produz a teoria vigotskiana, pois a compreensão de todos os fatos e fenômenos presentes na individualidade, encontra-se na origem histórico-social da psique humana.

Em todos os seus escritos, o psicólogo soviético reafirma o método materialista- histórico, que deveria ser adotado como geral para a análise dos fenômenos, adequado para unificar a ciência psicológica. Mas, para construção de uma Psicologia marxista no campo teórico, era preciso dominar a utilização do método proposto por Marx que, segundo Vigotski (1996b, p. 395), sem ele, esta se transformaria numa colcha de

retalhos idêntica à psicologia burguesa. “Não quero receber de lambuja, pescando aqui e

ali algumas citações, o que é a psique, o que desejo é aprender na globalidade do

método de Marx como se constrói a ciência, como enfocar a análise da psique”. (Grifo

no original).

Tal afirmação faz parte de seus argumentos quanto à necessidade de uma Psicologia geral, que viabilizasse a construção de uma Psicologia marxista. A Psicologia marxista, segundo esse estudioso russo, superaria a crise existente nessa área, caracterizada pela contradição entre o acúmulo de dados obtidos por intermédio das pesquisas empíricas, e pela completa fragmentação da Psicologia fundamentada em hipóteses pouco sólidas.

Vigotski (Ibid.) considerava a construção da Psicologia marxista como o processo de constituição de uma psicologia legitimamente científica, e não como o aparecimento de mais uma entre as correntes existentes nessa área. Porém, tal Psicologia científica não seria construída, através da justaposição de citações extraídas dos clássicos do marxismo e achados de pesquisas empíricas desenvolvidas com métodos baseados em pressupostos filosóficos, contraditórios ao marxismo. Seria preciso, no seu entender, uma teoria que fizesse a mediação entre o materialismo dialético, enquanto filosofia de alto grau de alcance e universalidade, e os estudos sobre os fenômenos psíquicos concretos. Esse estudioso estabelecia um paralelo entre essa teoria psicológica mediadora e o materialismo histórico, uma vez que este também tem a função de determinar as mediações precisas entre o materialismo dialético e a análise das questões concretas.

Essas questões concretas a que Vigotski se refere, dizem respeito às questões concretas da história das sociedades e de cada formação social específica, nesse caso, o capitalismo, estudado cientificamente por Karl Marx.

Foi esse motivo que o levou a afirmar a necessidade de uma teoria que cumprisse para a Psicologia a mesma função que a obra O capital, de Karl Marx, cumpre para a análise do capitalismo. Afinal, ao constituir a Psicologia Histórico- Cultural, o psicólogo soviético parte das categorias fundamentais do materialismo histórico e dialético e as aplica, dialeticamente, às questões da Psicologia.

Nesse sentido, construir uma Psicologia compatível com as mudanças históricas implicava em deixar de lado o determinismo biológico e tornar o homem sujeito dessas transformações. Abandonar o determinismo biológico representava, acima de tudo, criar a consciência da transformação da qual o homem é sujeito e objeto. Para atingir esse objetivo, o pesquisador russo buscou traçar uma linha divisória entre o homem e o animal, apontando seus pontos convergentes e divergentes, contrapondo-se à Psicologia fisiológica que restringia o comportamento de ambos a reações instintivas e reflexas.

Uma concepção primordial que Vigotski traz à reflexão é a idéia de que o conhecimento não se dá a partir da interação direta sujeito-objeto. Essa interação é, em essência, mediada. Ele sugere o conceito de mediação, fundamentado na concepção de Marx e Engels (1978), realizada por instrumentos e signos. Os instrumentos se referem a objetos do mundo físico, que são mediadores da ação (e transformação) do homem sobre a natureza. As alternativas de transformação da natureza pelo homem seriam infinitamente menores se ele não tivesse desenvolvido e aprimorado os instrumentos que auxiliariam a sua intervenção no mundo. Os signos surgem como os instrumentos psicológicos, como mediadores do próprio pensamento.

De acordo com Engels (1979, p. 26), a especialização da mão humana encontra- se relacionada ao uso de ferramentas, as quais foram criadas, em conseqüência das

necessidades da prática coletiva humana, de transformação da natureza. Porém, “a mão,

por si mesma, não teria jamais realizado a máquina a vapor se o cérebro do homem não tivesse desenvolvido qualitativamente, com ela, ao lado dela e, até certo ponto, por meio

dela”. O cérebro também se desenvolveu paralelamente ao desenvolvimento da mão,

permitindo o desenvolvimento da consciência. Vigotski compartilha dessas idéias sobre o trabalho humano e o uso de instrumentos, como recursos pelos quais o homem, transformando a natureza, transforma-se a si mesmo.

Partindo de sua base marxista, o autor russo aborda o desenvolvimento das formas superiores de comportamento como um processo estreitamente ligado ao desenvolvimento sócio-histórico do homem.

Vigotski opera a objetivação dos processos psicológicos, analisando- os a partir de condições reais de vida do sujeito, ou seja, a partir de uma base material. Seus pressupostos elucidam os caminhos através dos quais a natureza do comportamento se transforma de biológica em sócio-histórica. (PALANGANA, 1994, p. 98).

Portanto, os processos psicológicos superiores mudam de acordo com as transformações histórico-sociais, pois se encontram sujeitos às leis que orientam a evolução da cultura humana.

Em A ideologia alemã, Marx e Engels (1996) destacam como a consciência humana é determinada pelas condições materiais de vida e as relações sociais de produção. Para o pensamento marxista, as mudanças históricas na sociedade e na vida material produzem transformações na natureza humana, ou seja, na consciência e no comportamento humano. No que se refere à linguagem, para esses estudiosos, ela representa a consciência real, prática, que existe para todos os homens. A linguagem, assim como a consciência, nasce da necessidade de inter-relação com outros homens. Portanto, a consciência é, e sempre será, um produto social, enquanto existirem seres humanos.

Ao analisar o desenvolvimento da linguagem, Vigotski (2001, p.43) tem como referência essas idéias. A linguagem e a consciência humana nascem e se desenvolvem, a partir do e no processo de trabalho. Para esse teórico, desde que o trabalho se tornou

possível “na acepção humana da palavra, ou seja, a intervenção planejada e racional do

homem nos processos naturais com o fim de reagir e controlar os processos vitais do

homem e a natureza, desde então a humanidade se projetou um novo degrau biológico”,

que a diferencia dos animais.

É pelo trabalho que o homem, ao transformar a natureza, constitui-se enquanto ser humano, construindo a sociedade e fazendo história. Trabalhando, os homens produzem a sua história. Ao satisfazer essa primeira necessidade de subsistência, o próprio ato de satisfação e o instrumento dessa satisfação já alcançado, conduzem a outras necessidades. Nesse sentido, o homem está permanentemente transformando a natureza e a si próprio, criando continuamente novas necessidades materiais e intelectuais, em conformidade com o processo histórico.

Para Vigotski (1998), a linguagem se constitui como o signo fundamental, podendo representar simbolicamente objetos e eventos. Na ausência de um objeto, ele pode ser representado por meio da linguagem sem que seja preciso tê-lo concretamente ao alcance das mãos. Logo, a linguagem teria uma dupla função: a de "intercâmbio

social" e a de "pensamento generalizante". Portanto, ele atribui um papel fundamental à linguagem na formação das funções mentais superiores. Mais do que comunicar o pensamento, a linguagem tem a função de organizá-lo e estruturá-lo.

A escola representa um elemento mediador na apropriação, pelo indivíduo, do saber historicamente acumulado ao longo do desenvolvimento da humanidade. Nessa perspectiva teórica, assume um papel primordial. A linguagem, enquanto instrumento estruturante do pensamento, precisa ser explorada, nesse contexto, como forma de representação e organização interna do mundo externo. Porém, não pode ser compreendida apenas como expressão verbal. Diversas formas de linguagem podem ser exploradas no contexto escolar: verbal, escrita, gráfica, pictórica, numérica etc. Um único instrumento e forma de expressão lingüística não são capazes de dar conta do quanto o aluno aprendeu do saber do qual se apropriou, durante um período letivo. Esse saber científico, apropriado no contexto escolar, não pode prescindir das experiências cotidianas do indivíduo e do acervo de conhecimento que ele acumulou, ao longo de suas vivências, no cotidiano escolar e extra-escolar. Isso nos remete à outra análise muito fértil da teoria de Vigotski, a relação entre conceitos cotidianos e conceitos científicos no processo de formação de conceitos, conforme veremos ao tratar dos pressupostos da Psicologia Histórico-Cultural, no próximo item.