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O ensino de Física na perspectiva dos exames vestibulares

2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

2.4 O ensino de Física na perspectiva dos exames vestibulares

Sabemos o quanto o vestibular molda o ensino médio, principalmente nas escolas particulares que, com raras exceções, apregoam a sua eficácia fundamentada no sucesso dos seus alunos nos exames vestibulares. Por questões mercadológicas, isto acaba refletindo a abordagem dos livros didáticos, conforme veremos a seguir.

A Reforma Universitária de 1968 instituiu a unificação dos vestibulares oferecidos por uma mesma instituição de ensino superior, até então cada curso oferecia o seu próprio processo seletivo. Devido o grande número de candidatos inscritos, os vestibulares unificados passaram a utilizar unicamente questões de múltipla escolha e adotaram o uso do cartão resposta para acelerar o processo de correção das provas. Isto favoreceu o emprego de questões numéricas nas provas de Física. Este processo perdurou até os anos 90, quando algumas Universidades passaram a aplicar o vestibular em duas fases, em que as provas de segunda fase, também chamadas de específicas, contemplavam questões que exigiam um senso crítico mais elaborado.

Neste contexto, foi editada em 1975 a coleção Os Fundamentos da Física, mais conhecida como o livro do Ramalho16, sobrenome de um de seus autores, todos à época professores de cursos pré-vestibulares. Esta coleção não apenas dominou o mercado de livros didáticos de física nas últimas décadas, como influenciou várias outras que surgiram posteriormente que utilizam não apenas a mesma ordem de disposição dos conteúdos, mas, sobretudo a mesma sistemática de abordagem teórica, voltada para a habilidade de resolução de extensas listas de exercícios com a predominância de questões de vestibulares que contemplam a mera substituição de fórmulas, sem uma análise crítica dos conceitos físicos envolvidos.

avaliação das obras, o Ministério da Educação (MEC) publica o Guia de Livros Didáticos com resenhas das coleções consideradas aprovadas. O guia é encaminhado às escolas, que escolhem, entre os títulos disponíveis, aqueles que melhor atendem ao seu projeto político pedagógico. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?Itemid=668id=12391option=com_contentview=article – acesso em 21 jan. 2014.

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Na tentativa de analisar o efeito do livro do RAMALHO lançado em 1976 nas aulas de física, Chiquetto (2010) avalia os vestibulares dos últimos 20 anos, indicando que o livro parece ter uma perspectiva de uso pelos professores como um “manual” para as provas do vestibular. Alessandro A. L. Garcia e Cristina Leite. ATAS - Seminário Ensinar com Pesquisa

São raras as coleções que fogem a esse modelo tradicional do ensino de Física, pautado na resolução de problemas que valorizam a mera aplicação de fórmulas, dentre as quais destacamos a coleção Curso de Física, dos professores Antônio Máximo e Beatriz Alvarenga, mais conhecida como o “livro da Beatriz”, como apresentado anteriormente.

A maioria dessas obras não apresenta referências históricas, não relaciona a física com a vivência quotidiana, não traz aplicações tecnológicas, não aprofunda análises em casos particulares, nem aborda problemas mais elaborados. Quando refere-se a alguns desses pontos, fato ocasional, fá-lo de modo muito superficial, uma vez que o esquema geral dessas obras é a apresentação conceitual voltada à resolução de exercícios, mais para a aplicação de fórmulas do que para outros aspectos. Daí trazerem um número sempre elevado de exercícios propostos e modelos resolvidos, com ausência completa de problemas mais abrangentes. Muitos desses livros assemelham se às apostilas dos cursinhos pré-vestibulares da década de 70, um

pouco mais elaborados, é claro. Esse é o caso, por exemplo, do livro “clássico” de

Francisco Ramalho e outros, conhecido como livro do Ramalho, que foi muito utilizado em todo o país nas décadas de 70 e 80, cujos autores foram notáveis professores do Cursinho Universitário e de outros cursos preparatórios para vestibulares. (WUO, 2000, p. 53)

No início da década passada, surgiu um movimento, em algumas Universidades públicas brasileiras, principalmente nas mantidas pelo governo federal, de contemplar o programa de Física Moderna nos seus exames vestibulares. Na Universidade Federal do Ceará (UFC) isto ocorreu em 2001. Este fato repercutiu imediatamente nas escolas e no mercado editorial. No âmbito das escolas, os alunos se mostravam apreensivos em ter que compreender concepções absurdas para a sua intuição, muitos professores se mostravam apreensivos por nunca terem lecionado, e às vezes nem estudado, este tema.

As editoras apressaram-se em visitar as escolas, oferecendo apêndices aos livros já adotados e prometendo a inclusão do programa no próprio livro a partir do ano seguinte, o que se concretizou. Antes disso, os tópicos de Física Moderna eram exibidos timidamente em algumas coleções, como o Curso de Física, de autoria de Antônio Máximo Ribeiro da Luz e Beatriz Alvarenga Álvares, que destinava um pequeno espaço para destacar a limitação da mecânica newtoniana. Tudo transcorria normalmente, muitos alunos se apaixonaram pelo intrigante mundo da Física Quântica, quando, de repente, em meados de 2010, surge a notícia que o ENEM deveria substituir os exames vestibulares, o que se concretizou meses depois, em alguma Universidades federais, entre elas, a UFC.

Como o programa de Física do ENEM não contempla a Física Moderna, imediatamente todas as escolas suprimiram este item do programa de Física, até porque ele já não era exigido no vestibular da Universidade Estadual do Ceará (UECE). Como num passe de mágica, o ensino de Física Moderna perdeu o sentido para as escolas, e de nada adianta

você tentar convencer um diretor de escola que é importante oferecer um curso num horário extraordinário para os alunos que venham a ter interesse, porque a política da escola é voltada para resultados em vestibulares.

Como consequência, a inserção de Física Moderna nas coleções didáticas também perdeu o significado. A continuar a adoção do ENEM como processo seletivo das nossas Universidades federais, a tendência é o programa de Física Moderna perder espaço nestas coleções, em troca de situações que contemplem as competências exigidas pelo processo seletivo vigente.

Como se vê, o processo seletivo utilizado pelas Universidades, principalmente as federais, exerce grande influência no ensino médio, especialmente nas escolas particulares, e infelizmente o ensino de Física Moderna, que demorou muito tempo para ser valorizado pelos alunos, perdeu completamente o sentido nos dias de hoje.

Pela mesma razão, exceto a coleção elaborada pelo GREF, os livros didáticos de ensino médio não comentam, mesmo superficialmente, nada sobre a dinâmica do corpo rígido, apesar dos seus conceitos possibilitarem a discussão de inúmeros exemplos de ordem prática como o equilíbrio de uma bicicleta e o encolhimento do corpo, utilizado por uma bailarina quando deseja girar com maior frequência, recurso também utilizado pelos atletas de ginástica artística e saltos ornamentais ao executarem saltos mortais.

O mesmo acontece com o estudo de hidrodinâmica, que raramente é citado nos livros didáticos, por não ser contemplado pelos programas dos exames vestibulares, embora ele explique a sustentação de uma aeronave. Por esta razão, poucos são os alunos que sabem diferenciar as razões da sustentação de um helicóptero e de uma aeronave, ou ainda, o que é mais grave, de um dirigível e de uma aeronave. A asa utilizada por um carro de corrida, tão propalada nas narrações esportivas, tem o mesmo princípio do funcionamento da asa de um avião, como se esta estivesse de cabeça para baixo. Enquanto na aeronave a passagem do ar pela asa causa uma força ascendente, no carro de corrida, a função da asa é criar uma força descendente, empurrando o carro contra o solo. E qual é a vantagem prática do ar empurrar o carro contra o solo? Isto faz aumentar a força normal o que favorece o aumento da força de atrito que traciona o carro.

Outra aplicação dos princípios de hidrodinâmica, que certamente seria muito interessante para ser discutida em sala de aula, é a curva realizada por uma bola de futebol quando esta é chutada com o lado interno ou o externo do pé, o chamado chute de três dedos, que ficou imortalizado como a “folha seca” por um jogador brasileiro que disputou a Copa de 1950. São tantos os alunos que correm para a quadra para jogar futebol no intervalo, por que

não se pode discutir o efeito Magnus, que um dia foi ignorado por um famoso narrador esportivo, ao falar com toda a autoridade que a bola não poderia fazer uma curva, pois violaria as leis da Física?

Os cobradores de falta abusam deste recurso para enganar o goleiro adversário. O vídeo mais impressionante sobre este efeito é de um gol de uma falta feito pelo Brasil, num amistoso contra a França, em 1997. A bola foi chutada numa direção tão distante da direção do gol, que o goleiro francês não acreditou que a bola tomasse o rumo da rede. De repente, a bola fez uma curva acentuada e ainda bateu na trave antes de cruzar a linha do gol. Vale salientar que este efeito é utilizado não apenas no futebol, mas também nos demais esportes que utilizam bola, como o vôlei, o basquete, o tênis e até mesmo no jogo de sinuca, quando se deseja aplicar um efeito sobre a bola.

Muitos comentaristas chamavam a jogada de "o gol que desafia a física", mas o estudo mostra que uma equação matemática pode descrever perfeitamente a trajetória da bola. "Nós mostramos que a trajetória natural de uma esfera quando ela gira é em espiral", disse à BBC o físico Christophe Clanet, da Ecole Polytechnique de Paris. Fonte: http://noticias.sangari.com/pages/201009/Cientistas-desvendam- segredo-de-famoso-gol-de-falta-de-Roberto-Carlos-15260.html

Assim o engessamento despropositado do ensino médio pelos exames vestibulares como tudo na vida tem um lado bom e outro ruim. O bom é que ele assegura um mecanismo de cobrança por parte do aluno para que o professor não deixe de lado assuntos com os quais não possua empatia, o que comumente ocorre em turmas de 1º e 2º ano, devido à falta de um programa comum a todas as escolas. No 3º ano do ensino médio, o próprio aluno é vigilante ao cumprimento do programa por parte do professor, devido à ânsia de lograr aprovação no vestibular.

Por outro lado, este engessamento do ensino, não apenas de Física, mas também de outras áreas, contribui para a exclusão de assuntos que propiciam discussões pertinentes ao dia-a-dia do aluno, tornando o convívio da sala de aula cada vez mais distante das suas necessidades diárias de dialogar com um mundo em que as mudanças tecnológicas ocorrem muito rapidamente.

O apelo do vestibular está tão fortemente enraizado na cultura dos nossos alunos que até mesmo no 1º e 2º anos do ensino médio eles abominam a discussão de assuntos que não sejam contemplados pelo programa dos exames vestibulares.

Infelizmente, quase todos os alunos e muitos dos pais têm como principal expectativa do ensino médio, a promoção ao ensino superior, prioritariamente numa

instituição pública, como se esta etapa de ensino não tivesse nenhum significado, caso não fosse necessária à aplicação de um processo de seleção para o aluno ter acesso ao ensino superior. Este fato tem gerado sérias distorções entre o ensino de Física escolar e a Física dos recursos tecnológicos modernos.

A exclusão do estudo de Física Moderna, devido à adoção do ENEM como processo seletivo às Universidades, priva os alunos de qualquer significado dos recursos tecnológicos do mundo moderno.