• Nenhum resultado encontrado

ESPIRITUALIDADE E ESPACIALIDADE FRANCISCANA 1.1 A cidade

1.2. O eremitério e a floresta

Ao comentar sobre a tipologia de cidades percorridas por Francisco e seus seguidores, Le Goff cita um dístico medieval: “Bernardo amava os vales, Bento as montanhas, Francisco as aldeias, Domingos as cidades populosas.” (2013, p.177). O autor, assim, destaca a preferência dos franciscanos pelo estabelecimento de seus conventos em cidades menores.

A Crônica de Frei Salimbene de Parma, ao interpretar as profecias do abade Joaquim de Fiore22 que através de figurações teria anunciado a futura formação das Ordens

21“se estava transformando também em uma sociedade hierarquizada *...+. Se convertia em uma máquina de

fazer pregadores, sábios, prelados *...+”. (T.A.).

22

Joaquim de Fiore (1145-1202) foi um monge cisterciense e teórico milenarista nascido na Calábria. Segundo Bernhard Töpfer, sua visão da História guardava relações com a Santíssima Trindade: o Antigo Testamento teria sido a era do Pai, o Novo Testamento a era do Filho. Seguindo essa lógica, previu uma nova era da História em que o mundo e a Igreja seriam reinados pelo Espírito Santo, uma época ideal que antecederia o Juízo Final e que a Igreja corrompida seria purificada. A transição entre a segunda e terceira fases seria marcada por perseguições aos cristãos por potências anticristãs, mas que teriam importante papel na erradicação dos vícios da Igreja, contribuindo para o nascimento de uma nova Igreja espiritual. Ainda segundo o autor: “Joaquim atribui um papel decisivo na instauração desse novo estado a duas novas ordens monásticas, que acabarão por substituir a hierarquia religiosa até então em vigor. Elas contribuirão para converter a maior parte da humanidade à fé cristã naquela forma purificada.” (TÖPFER, 2002, p. 357).

dos dominicanos e dos franciscanos, coloca uma série de comparações entre os dois modelos religiosos, incluindo as ações destes dois grupos nas cidades e nas vilas:

Na Itália [os dominicanos] se escusam, quando não saem, pelo fato de que os cavaleiros, os poderosos e os nobres habitam nas cidades; e nas vilas e aldeias eles têm os eremitérios nos quais habitam os Frades Menores que podem satisfazer os seculares (Slb 19 in TEIXEIRA, 2008, p.1376).

A passagem pode sugerir duas razões para a ação dos frades menores estarem voltadas para as vilas e aldeias: o fato de preferirem realizar o apostolado junto às camadas mais populares e, além disso, os eremitérios, locais onde os franciscanos primitivos se recolhiam quando não exerciam seu apostolado urbano, estariam localizados nos arredores de vilas e aldeias, e não nos grandes centros.

Nesse sentido, os frades menores alternavam seus trabalhos no meio citadino com pausas nos eremitérios. O próprio Francisco intercalava entre o mundo urbano e o mundo eremítico e as fontes franciscanas mostram que frequentemente o santo se retirava à solidão desses recintos. Sarteano, Poggio, Greccio, Santo Urbano, Rieti, Monte Alverne são algumas das localidades que apresentavam eremitérios frequentados pelo santo segundo as fontes.

Jacques Le Goff utiliza o termo “respiração” para definir a função desses eremitérios: “Francisco busca a alternância entre a ação urbana e o retiro eremítico, a grande respiração entre o apostolado no meio dos homens e a regeneração na e pela solidão.” (LE GOFF, 2011, p.37). Por esse motivo, os eremitérios funcionarão como pontos de apoio para abrigo e nutrição espiritual dos primeiros frades: “os primeiros adeptos viviam como eremitas itinerantes, exercendo seu ministério e pedindo esmolas nas cidades durante o dia, passando a noite nas florestas e grutas fora das cidades.” (LITTLE, 2002, p.236).

O mundo das florestas, portanto, também será penetrado pelos frades menores através dos recintos eremíticos. Em tempos medievais, esse mundo adquire feições próprias que o diferem da cidade e do campo:

Além disso, a Idade Média acrescenta a essa oposição cidade-campo um terceiro termo: a floresta. [...] É também o lugar da solidão. A floresta é o equivalente, no Ocidente, do deserto no mundo oriental, e os monges que desejam viver em penitência dirigem-se para a floresta. (LE GOFF, 1998, p. 125)

Assim como o deserto, a floresta carrega a simbologia da solidão, da procura pelo eu interior, da busca por Deus, da penitência e também lugar propício a tentação. Cristo foi tentado no deserto, assim como São Francisco foi tentado em um eremitério em Sarteano.

Tomás de Celano relata uma passagem sobre os irmãos que viviam mal nos eremitérios, em que destaca a função desses espaços:

[...] cremos que foram não pouco repreendidos aqueles que vivem nos eremitérios de maneira contrária. Pois muitos transformam o lugar da contemplação em lugar do ócio e convertem o modo eremítico de viver, que foi inventado para aperfeiçoar as almas, em sentina das paixões. (2Cel 179 in TEIXEIRA, 2008, p.412).

Celano apresenta os eremitérios como locais de contemplação e aperfeiçoamento, onde se poderia atingir às coisas celestes e a elevação espiritual. Se as cidades se apresentavam como locais onde o trabalho evangelizador franciscano era colocado em teste, os eremitérios nas florestas ofereciam aos frades a privacidade para a oração e amadurecimento do espírito, essenciais para o desenvolvimento da vida religiosa.

Nota-se que as fontes, em geral, se utilizam do termo eremitério para designar os espaços construídos dos frades, evocando a mais uma dicotomia na vida da fraternidade primitiva. Se por um lado, pelo apostolado deveriam buscar as cidades e as multidões, por outro sua moradia assentada em eremitérios afastados oferecia melhor condição para dedicarem-se à oração e contemplação.

Nestes recintos, os frades obtinham o alimento espiritual que davam forças as suas atividades urbanas. Vale lembrar que foi em um eremitério no monte Alverne, “onde se envolvia em devota contemplação” (3Cel 4 in TEIXEIRA, 2008, p.445), que Francisco recebeu os estigmas de Cristo – prevalecendo como o episódio mais emblemático da vida do santo - e que Francisco igualmente se retirou a um eremitério para escrever a nova Regra da Ordem (Regra não bulada), reconhecida no Capítulo de 1221. A importância desses pontos de apoio solitários também é evidenciada na existência de uma Regra para os eremitérios cuja autoria é atribuída a São Francisco. Segue trecho da Regra:

Aqueles que querem viver religiosamente nos eremitérios sejam três irmãos ou no máximo quatro; dois deles sejam as mães e tenham dois filhos, ou um pelo menos. Esses dois, que são as mães, levem a vida de Marta, e os dois filhos levem a vida de Maria e tenham um claustro em que cada uma tenha sua pequena cela para rezar e dormir. E rezem sempre as Completas do dia logo após o pôr-do-sol; e esforcem-se por manter o silêncio; e rezem suas horas [canônicas]. [...] E quando lhes aprouver, podem pedir-lhes esmola, como os pobrezinhos, por amor do Senhor Deus. [...] E não permitam que alguma pessoa entre no claustro onde moram e nem que coma aí. (RE 1-7 in TEIXEIRA, 2008, p.186).

A regra reforça o espaço dos eremitérios como refúgio para os frades, locais de oração e meditação, e também de isolamento, uma vez que o contato externo é inibido ao proibirem a entrada de terceiros. Destaca-se também as relações familiares entre os irmãos que devem conduzir a conduta cotidiana no interior destes espaços. Também o eremitério foi reportado por Giotto em afresco que retrata o momento em que o santo recebe os estigmas durante reclusão em um desses espaços.

Imagem 21 - Recebimento dos estigmas. Afresco de Giotto (depois de 1296). Assis, Basílica de São Francisco. Fonte: MALAFARINA (ed.), 2005, p.174.

1.3. A casa

É possível que a conduta frente ao espaço arquitetônico tenha sido um dos aspectos mais conflituosos dentro do franciscanismo e para o próprio São Francisco quando a discussão se move para o tema da moradia. A ideia de convento ou “casa de frades” foi rechaçada por ele e seus primeiros seguidores. Por outro lado, o suporte material não foi completamente ignorado pela fraternidade primitiva, já que os frades necessitavam de aparatos para o recolhimento e o próprio Francisco, como se verá, prezava a manutenção física das igrejas. Os espaços de permanência, porém, deveriam adquirir caráter provisório, não constituir-se em bens pessoais e deveriam assumir a característica da simplicidade.

A esta simplicidade Tomás de Celano atribui a ausência de excessos e a busca pelo essencial:

Esta é a que, em todas as leis divinas, deixando aos que hão de perecer os circunlóquios prolixos, o ornato e preciosismos de estilo, ostentações e curiosidades, busca não a casca, mas a medula, não o invólucro, mas o núcleo, não muitas coisas, mas o muito, o sumo e estável bem. (2Cel 189 in TEIXEIRA, 2008, p.418).

A vida dos primeiros frades teria sido caracterizada, de acordo com as narrativas de época, pela ausência total de um espaço construído, o que os levava a se utilizarem de abrigos naturais, como grutas e cavernas, para o recolhimento. Tomás de Celano ainda destaca a condição de segurança que envolvia os frades que não era oferecida pelo aparato físico, mas justamente pela ausência das posses materiais e de fixação de raízes.

Cingidos por uma corda, trajavam calções baratos e tinham o piedoso propósito de permanecer em todas estas coisas e de nada mais possuir. Por esta razão, estavam seguros em toda parte, não apreensivos por temor algum, não distraídos por qualquer cuidado, sem qualquer preocupação esperavam o dia seguinte e, colocados frequentemente em grande perigo de viagem, não ansiavam sobretudo com relação à hospedagem da noite. Pois, como muitas vezes não tivessem a hospedagem necessária nos frios mais rigorosos, de noite um forno os acolhia ou eles se escondiam humildemente em grutas ou cavernas. (1Cel 39 in TEIXEIRA et. al., 2008, p.224).

A posse de bens extinguiria a liberdade e segurança de Francisco e seus irmãos, além de estimularem desavenças entre os homens, representando barreiras para as relações fraternas. Francisco justifica essa rejeição em um diálogo, trazido pela Legenda dos Três Companheiros, entre ele e o bispo de Assis. Este o indaga sobre a escolha de nada possuir no mundo, ao que o santo responde: “Senhor, se tivermos qualquer propriedade, ser-nos-ão necessárias armas para nossa proteção. Pois daí se originam questões e muitas desavenças, e a partir disso costuma ser estorvado, de muitas maneiras o amor a Deus e ao próximo.” (LTC 35 in TEIXEIRA, 2008, p.814).

Uma vez que Francisco e seus companheiros vivem em missão nos caminhos do mundo, a morada dos primeiros menores se amplia para qualquer lugar onde há homens. Da mesma forma que os espaços das cidades são palcos do apostolado franciscano, as casas dos próprios leigos também representam extensões da área de atuação dos frades. Essa ideia é colocada por Le Goff quando explica a atitude dos primeiros franciscanos sobre o significado da casa: “O apostolado dos Franciscanos, no início, não espera que os leigos vão a eles, mas eles vão aos leigos no lugar por excelência de sua permanência: a casa.” (LE GOFF, 2011, p.191).

O autor ainda ressalta que estas casas eram frequentadas pelos frades para a evangelização, mas também serviam de hospedagem para os irmãos suprindo a falta da casa. Estas afirmativas são confirmadas pelas fontes franciscanas que citam passagens em que os irmãos se utilizam de habitações alheias, ou até mesmo dos pórticos de residências, quando não conseguem abrigo no interior destas, a exemplo do relato da Legenda dos Três Companheiros que aborda a mendicância de dois irmãos em Florença.23

Neste sentido, a casa estava relacionada sempre ao outro, nunca própria, ideia que condizia com o espírito itinerante da fraternidade primitiva. Assumia o significado não de lugar de permanência, mas sim de passagem. Se utilizar de residências alheias era lei para

23A Legenda dos Três Companheiros traz o seguinte relato: “Nesse mesmo tempo, estavam em Florença dois

deles que, mendigando pela cidade, não puderam encontrar hospedagem. Chegando, então, a uma casa que tinha um pórtico e no pórtico um forno, disseram um ao outro: ‘Poderíamos hospedar-nos aqui’. Pedindo, portanto, à dona da casa que os acolhesse dentro de casa e recusando ela a fazer isto, disseram-lhe humildemente que, pelo menos, lhes permitisse descansarem naquela noite perto do forno.” (LTC 38 in TEIXEIRA, 2008, p.816).

os viajantes, conforme atesta São Boaventura: “Pois [Francisco] dizia que a lei dos peregrinos era hospedar-se sob teto alheio, ansiar pela pátria, andar pacificamente de um lugar a outro” (LM 7 in TEIXEIRA, 2008, p.593).

A casa dos primeiros franciscanos é, portanto, uma casa itinerante. Até mesmo a retirada de Francisco aos eremitérios se realiza desta forma, como frequentemente relatam as fontes. A posse desses locais deveria ser atestada: “Não queria que os irmãos habitassem qualquer eremiteriozinho, se não constasse certo o dono a quem pertencia a propriedade” (2Cel 59 in TEIXEIRA, 2008, p.340). Nesse âmbito, os eremitérios se apresentam muito mais como lugar de recolhimento que de morada.

A recusa de posse de bens materiais, porém, não impediu que os primeiros franciscanos se fixassem em alguns pontos de moradia, ainda que estes, a princípio, estivessem distantes da imagem dos grandes conventos e mais se assemelhassem à simples abrigos. Dessa forma, a casa alheia e itinerante da fraternidade primitiva será, primeiramente, substituída por modestas casas, e logo depois pela segurança dos conventos.