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1. Música Viva, visão colonizadora e nacionalismo

2.4. O erudito e o popular

Sob certo aspecto, a concepção adorniana fundada no negativo, torna-se, paradoxalmente, afirmativa e positiva como veto estético que advém de sua concepção axiológica, ao interpretar a produção estética na contemporaneidade nomeando e distinguindo dois campos: o da “verdadeira arte” e o da “arte de massa”, o primeiro capaz de conter verdades, ou mesmo essências, e podendo de ser dito “rico” esteticamente: que estaria em um processo de perda de essencialidade; o segundo um campo de manipulações, enganações, enfeixados sob o epíteto do fetichismo, ou sítio da percepção estética inferida a partir da aplicação da fórmula marxista da alienação ou da divisão do trabalho, e agravada pela crítica da reprodutibilidade (Cf. por exemplo ADORNO 1980).

Um dos mais marcantes pontos da teoria adorniana aplicada à música talvez seja essa indigesta afirmação peremptória da existência de dois campos excludentes: o da “música séria” e o da “música popular”. Aqui parece afastar-se inclusive de si mesmo, ao não admitir uma relação dialética entre a arte como objeto no mundo e a arte como objeto do mundo, malgrado seja também explicitado como preocupação sua essa questão.

Isso contrapõe-se frontalmente à concepção de Koellreutter, que se coloca radicalmente contra essa bipartição, conforme se vê pela sua frase lapidar: “A música não pode ser erudita, o músico pode ser erudito”. (SGANZERLA 2003)

Uma das coisas notáveis no texto de Adorno é sua predisposição do que seja o objeto

analisável na consideração da música: quando se trata da “música séria” o objeto da análise é a

fenomenais e consistentes. Em seus ensaios sobre Berg, por exemplo, essa concepção parece estar explícita, quando afirma, por exemplo que “em arte, tudo depende do produto, do qual o artista é o instrumento” (ADORNO 2010, 97).

Já quando se trata de “música popular”, ou “ligeira”, ou qualquer outra que não caia na categoria de “séria”, parece que o objeto analisável se trata não mais da música, mas sim do ouvinte de música. Em Teoria Estética (T. W. ADORNO 1993, 11), por exemplo, a sua análise começa justamente pela consideração de que “entrou-se cada vez mais no turbilhão dos novos tabus; por toda a parte os artistas se alegravam menos do reino de liberdade recentemente adquirido do que aspiravam de novo a uma pretensa ordem, dificilmente mais sólida”. Ou ainda no seu “Fetichismo na música”, onde sintomaticamente Adorno começa apontando os fetichistas, para depois ponderar sobre o caráter fetichista na música: “o comportamento valorativo tornou-se uma ficção para quem se vê cercado de mercadorias musicais padronizadas” (ADORNO 1980, 66).

Problemas especificamente musicais não podem ser contornados, caso a sociologia da música não queira reduzir-se à intermediação de reações subjetivas, sem levar em conta o objeto. (T. ADORNO e HORKHEIMER 1986, 147)

No entanto, mais sintomático poderia ser sua consideração sobre as diferenças entre a “música séria” e a “música popular”: a primeira música é analisada a partir do “que é”, a segunda, a popular, a partir “do efeito que tem” sobre o ouvinte. Explicitamente Adorno dirá, por exemplo, que “na boa música séria, todo elemento musical, mesmo o mais simples, é ‘ele mesmo’”, enquanto que na música popular “[mesmo] o complicado não funciona por ele mesmo.” (T. W. ADORNO 1986, 119)

Por outro lado, quando fala em “música séria” parece que se esquece de que, também aí, a situação histórica, da época e dos costumes determinava a música enquanto música “séria”. Por que não dizer, por exemplo, que a relação entre “a totalidade e o detalhe em Beethoven” diz respeito à um ouvinte social que, ele próprio, pedia por esse encanto, antes e hoje? Por que seria isso mais verdadeiro ou mais substancial do que a “enganação” da música rápida ou da música popular?

2.4.1. Música funcional...

Como vimos, se Adorno vai postular a “redução da audição” como resultado da “cultura de massa” e do processo que chamará de fetichização dos valores estéticos e artísticos (ADORNO, 1980); Koellreutter vai colocar a esfera estética sob o patamar justamente de uma nova sociedade, a “sociedade de massa”, mas não lamentando que isso ocorra, mas exigindo do artista um novo

posicionamento diante de uma realidade nova que a experiência histórica do passado não tem como explicar ou dar sentido:

Falar música funcional não era muito bem visto por diversos setores da música de vanguarda, de diversas épocas: estruturalistas, serialistas, atonalistas, música total... No geral, parece que pensar a música era desvalorizar a sua função no mundo concreto dos homens e mulheres comuns. Por outro lado, os artistas engajados, sejam os realistas socialistas, ou a arte de protes, viam no conteúdo social um valor muito desproporcional à preocupação formal ou estrutural das obras, dando relevância ao seu conteúdo engajado.

Koellreutter, entretanto, coloca-se em uma posição bem diferente. Para ele a música, sendo comunicação humana, tem o papel de interferir através do que tem a dizer e da atividade simbólica que exerce. Tonalismo, dodecafonia, múica eletrônica, são ferramentas de um discurso que interfere ativamente na esfera humana, extrapolando sua própria linguagem e interferindo no imaginário mas, principalmente, na abertura da consciência.

Essas ferramentas musicais ao fazerem ouvir, fazem pensar, e a articulação de seus símbolos e de suas formas são ferramente humanas que permitem essa potencialidade, num projeto onde música faz parte do processo humano de significar.

São ferramentas que colocam a criatividade humana como instrumento de conscientização, ferramentas de construção de conceitos a partir de revelarem, a partir de seu processo e forma, espaços não falados de um discurso ideológico. Ou seja, constroem conceitos no que falam e também na forma em que falam. E a forma torna-se ferramenta de consciência histórica dentro de uma forma de vida, não pelas suas realizações ou seu modo produtivo, estando entretanto alinhada com ele: mas por colocar em evidências os jogos de linguagem da cultura de uma época, revelando- lhes a entrelinha, mostrando seus processos e questionando seus valores.