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O espaço educativo da feira e o ensino da africanidade e da afrodescendência

“Educar o olhar é aprender a decifrar códigos e compreender mais do que a aparência do mundo, mas seu movimento. A compreensão do mundo é tão somente uma leitura do mundo”

(Oliveira, 2007, p. 260).

Dentro da perspectiva africana e afrodescendente temos a compreensão de o espaço socialmente construído faz intervenções na cultura e na sua transmissão, reprodução e transformação. Dessa forma temos que pensar os processos educativos como constitutivos do território (OLIVEIRA, 2007). É assim que percebemos a feira em sua dinâmica espacial e cultural de relações diversas onde de maneira consciente ou inconsciente a educação erigida e praticada nesse espaço permite o recompor e o reconstituir as heranças africanas em terras brasileiras, por que não dizer em Bodocó, Pernambuco. A impressão e o transmitir as falas e as lembranças dentro desse espaço que investigamos nos permite dizer que as memórias negras do além-mar foram refeitos e reproduzidas no município de Bodocó, estiveram e estão na feira. Esta educação age semelhantemente ao colocado pelos atores estudados, pois:

quais os membros de uma sociedade assimilam saberes, habilidades, técnicas, atitudes, valores existentes no meio cultural organizado e, com isso, ganham o patamar necessário para produzir outros saberes, técnicas e valores etc. É intrínseco ao ato educativo seu caráter de mediação que favorece o desenvolvimento dos indivíduos na dinâmica sociocultural de seu grupo, sendo que o conteúdo dessa mediação são os saberes e modos

de ação [...] (LIBÂNEO, 2002, p. 32-33).

A educação exercida no espaço da feira tem a funcionalidade de manter a continuidade do fazer cultural de base africana, funciona como lugar de memória cultural. Refúgio para preservação da existência dos mundos africanos trazidos pela diáspora forçada. A feira possibilita a continuação dos fazeres e saberes vindos da África e reelaborados no Brasil. No cotidiano da feira são mantidas e reproduzidas algumas dessas práticas culturais. O potencial de transmissão e perpetuação ocorre no espaço da feira livre. O simbólico e o material são transferidos pelos agentes sociais e educativos que nela frequentam. Nela se concretiza a cosmovisão africana nos dizeres e no poder da fala daqueles que reproduzem pela oralidade seus conhecimentos africanos, assim se dá a difusão. Por interferência da fala, da educação informal legitima-se o saber ancestral. Assim, o fazer cultural feito em África reconduzidos e reelaborados no espaço da feira vem ocorrendo através, por exemplo, da produção em couro que ao tratarmos dela sempre ouvimos falar do mestre Casemiro, o mestre negro que tinha uma oficina onde produzia e comercializava calçados. Ele transmitiu seus conhecimentos para Seu Dim e Seu Chico, dois irmãos sapateiros que ainda mantém a tradição em Bodocó (OLIVEIRA, 2014). Ao lembrar-se da feira e desses produtos Seu Cícero Rodrigues (06/02/15) nos conta que:

Calçado também tinha [...] Tinha seu Casemiro e no momento só me lembro dele de Casemiro... Ele era quem fazia sapato, botina, fazia chinela... Tinha um pessoal que fazia também ele deixou o oficio e a tradição. Ele não era de Bodocó, não, era do Exu, mas veio pra cá. Esse pessoal que trabalhava era tudo moreno. Esse povo que trabalhava com couro a maioria era morena. Tinha gente de todo tipo, mas a maioria era morena.

Assim, também se lembra Seu José Bezerra (06/02/15) ao tratar do couro:

De sela, arreio, tinha e ainda tem os Simião, a família deles é de tradição trabalhar com isso. Agora calçado era Dim e Chico da Várzea do meio, eles que produziam muito chinelo, alpargata essas coisas tudo... Mas, antes deles tinha um homem do Exu que tinha uma oficina aqui e foi

onde eles trabalharam. Era Casemiro, mestre Casemiro chamavam ele. Era um homem bem moreno, os Simião também são um povo moreno.

As memórias nos mostram como é forte a marca do mestre Casemiro ao tratar da história dos calçados em couro. Mas também como era recorrente encontrar uma maioria negra nessas atividades. A feira traz à tona a forte presença negra nesses trabalhos pois seja enquanto memória de uma feira da juventude de Seu José Bezerra e de Seu Cícero Rodrigues ou da atualidade são sempre notados como maioria. Seu Paulo (16/02/15) nos colocou que compra artigos de couro “a esse rapaz que o pai é moreno e produz, mas tem também outros [...]” Já Mateus (16/02/15), filho de Seu Paulo, também tem essa percepção, ou seja, ele sabe que os produtores de couro são de maioria negra ou como ele coloca “a maioria é moreno, moreno assim como nós”.

No movimento da vida e da história a feira foi mostrando que a tradição da produção de artigos de montaria e de calçados em couro é de famílias negras, ou morenas como se fala no senso comum. Os ancestrais dessa atividade são sempre lembrados e conhecidos. Esse é um ensinamento que a feira traz, trouxe para Seu Cícero Rodrigues e Seu José Bezerra, assim como trouxe e traz para Mateus jovem de 11 anos que já aprendeu ao frequentar a feira que, em Bodocó, o trabalho com couro é de maioria negra.

Os ancestrais são órgãos chaves no transmitir o conhecimento dentro da feira, a educação só o é possível pelo fato da ancestralidade se manter nas memórias de cada sujeito que traz em si o conhecimento dos ensinamentos africanos. Saber fazer e o saber transmitir permite a perpetuação do que se diz práticas culturais africanas. Pois: “é preciso recuar longe, memórias de um passado remoto, para conhecermos como o saber terá emergido à vida e, circulando entre tipos de pessoas, terá diferenciado uma região de si mesmo como educação” (BRANDÃO, 1984, p. 14).

O ancestral se manifesta no ato em que aquele que sabe o transmite para aqueles que não sabem, independente de sua compreensão da origem do conhecimento daquele que age pelo ato de educar, isto é aquele que educa não precisa ter a certeza da origem do conhecimento, este o é transmitido pelo educador pela ação do ancestral que se manifesta e faz o saber se perpetuar. Pois a memória como ferramenta de transmissão transfere para outras memórias o seu conhecer. Como nos é pertinente o Oliveira (2007) quando da afirmativa: “assim, a Ancestralidade converte-se no princípio máximo da educação, por isso, a Pedagogia do Baobá é uma pedagogia que tem na ancestralidade sua fonte e fundamento” (OLIVEIRA, 2007, p. 328).

observamos a presença da ancestralidade negra que Dona Emília (10/11/14) evoca quando se lembra das farinhadas de que participou e daqueles que sempre viu “aqui na rua da farinha vendendo, sempre gente morena que nem eu”, assim ela, mulher “morena” também representa essa ancestralidade que traz o saber fazer e vender farinha na feira.

Para Seu Miguelzinho (16/02/15), que sempre viveu no centro comercial de Bodocó e, por tanto, em meio a feira, há muitas coisas marcantes, mas destacamos uma, a que faz referência a produção de farinha. Em suas palavras coloca que os comboieiros:

[...] Eram pessoas simples mesmo, pessoas simples. Trabalhadores, as pessoas fabricantes mesmo que fabricavam a farinha lá na serra. Eles trabalhavam [...] agora era bem diversificado o tipo de gente, mas predominavam as pessoas negras, mais morenas. Eu me lembro do detalhe dessa coisa do comboio eles andavam em grupo todos eles vinham com um chicote. Um chicote de couro trançado bem feito, bem feitinho. E eu me lembro muito bem do estalo do chicote [...] esse chicote era, anunciava a, realmente, a chegada deles [...]

Ao ouvir esse relato questionamos quantos anos ele tinha quando isso ocorria e ele colocou que “desde muito criança com uns sete oito anos”, depois então perguntamos se Seu Miguelzinho tinha ido até a serra de onde esses comboieiros traziam a farinha e ele respondeu que não. Assim, como ele sabe que os produtores assim como os transportadores em comboio eram negros? A feira ensinou pra ele. Ali, ele aprendeu como era transportada a farinha, como era comercializada e quem a fabricava. Aprendeu no cotidiano, na observação, na vivência na e com a feira.

Cogitar a educação na feira livre é perpassar a compreensão de uma educação que perpetua e mantém os conhecimentos de base africana, mesmo que não seja, muitas vezes, de forma consciente. Analisar a educação nesse lugar é estar para além dos conceitos mais tradicionais do que se entende por educação, é escapar aos modelos de educação formai, é repensar o fazer educacional, é reorganizar e alterar os modelos dados. Portanto, é dessa forma que podemos ver a educação na feira livre de Bodocó, possuidora de uma dinâmica que extrapola a compreensão mais comum do que seja educação alcançando uma compreensão de que o viver por si só ensina, o conviver, conversar, observar, ouvir o flanar em um espaço múltiplo e multiplicador como a feira também ensina. Só assim é possível ver o espaço da feira como lugar de fazer educação.

Por fim, a educação na feira livre de Bodocó é, entre outras coisas, a produção, reinterpretação e transmissão das culturas africanas pelas memórias daqueles que lá estão presentes, dos olhares atentos, dos artigos postos a venda, entre outra infinidade de coisas que poderíamos enumerar. A feira é difusão dos conhecimentos da produção dos artefatos e produtos feitos em barro, couro, é a produção e a transmissão das maneiras que se produz a farinha; é recriação dos ensinamentos dos antepassados das suas produções; é rememoração, é o relembrar dos métodos de produção, feitos em tempos passados, de produtos elaborados e pensados pelos ancestrais. Dessa maneira, podemos afirmar também que é uma reprodução de território e de identidades culturais; é o reafirmar as memórias da ancestralidade. É a educação para a perpetuação do que se entende por produção e reprodução das origens africanas e afro-brasileiras.

Entendendo, portanto, que o processo educacional erigido na feira tem objetivo, mesmo que os sujeitos presentes nela não tenham consciência plena, de que esse processo de formação age como método de perpetuação das práticas culturais africanas e afro- brasileiras. Assim, formando sujeitos sabedores e guardiões da cultura de base africana, sem que eles tenham a alta compreensão. A feira pode ser espaço de transformação e atuação no grupo no que se refere à preservação, continuação e obstinação da cultura africana. Pois, como lugar de produção da educação, esta “[...] é, como outras, uma fração do modo de vida dos grupos sociais que a criam e recriam, entre tantas outras invenções de sua cultura, em sua sociedade” (BRADÃO, 2007, p.10).

Portanto, este anseio pela perpetuação do social e cultural, de um determinado grupo, pela educação é compreendido como parte intrínseca do fazer pedagógico educacional. Assim, também é notável no processo de fazer a educação na feira quando os agentes que a compõem, que lá se encontram e transmitem seus conhecimentos e saberes afrodescendentes, mesmo sem ter a certeza de onde vêm, pois a ausência da certeza do conhecimento transmitido na feira ser de base africana é consequência de um racismo perpetrado e perpetuado pelo modelo escravista e racista que nega os fazeres os e saberes dos negros no Brasil colônia e refletida nos dias atuais.

Percebemos e fazemos tais afirmativas quando das entrevistas dos sujeitos estes não sabem muitas vezes de onde vêm tais conhecimentos, mas ressaltam que são atividades tradicionais de pessoas ou de famílias negras, ou morenas como costumam falar. Ressaltamos algumas falas a esse respeito:

Agora antes deles teve o mestre Casemiro, o pioneiro a trabalhar com couro pra calçado [...] era negro o mestre Casemiro (MIGUELZINHO, 16/02/15).

Pronto, agora você tocou num assunto que aqui produzia era muito. Corda, borná, cabresto [...] vassoura, chapéu até tecido chegou a ter de caroá. [Quem trabalhava na produção?] Era um povo humilde que não tinha outro recurso que não o caroá [...] era um povo sempre moreno (CICERO RODRIGUES, 16/02/15).

A feira da farinha tem muita gente, é importante. [Como são as pessoas que vendem lá?] Ah, é gente de todo tipo, mas agente vê muito moreno... na venda de farinha tem muito moreno, assim preto [...] (MATEUS, 16/02/15).

Tinha homens de todo tipo na farinha. Lembro de Antônio de Góis que vinha serra e era um homem alvo. [Todos eram assim como ele?] Não, tinha de toda qualidade, homens morenos, homens pretos que produziam a farinha e vinham vender em Bodocó, na feira de Bodocó. Esses eram sempre mais [...] (CICERO RODRIGUES, 16/02/15).

Quem vendia eram sempre mulheres, a maioria mulheres. Mulheres simples mesmo, morenas de vestido aquela coisa. Sei que estava sob o comando dessas mulheres essa coisa de trabalhar com barro (MIGUELZINHO, 16/02/15).

Dessa forma, nota-se que o educar para continuar é resistência de uma memória negra que se perpetua nos dizeres dos mestres, comerciantes e frequentadores da feira. Assim, a continuação da cultura, pelo ato de educar, é mais que simples fato de ter certeza de onde vêm as práticas culturais, estas são inconscientemente reproduzidas e repassadas, por uma educação cotidiana, dentro do espaço da feira seja por frequentadores que recebem dos mestres produtores, dos artesãos, seja pelos filhos dos artesãos que recebem de seus pais, sejam pelos parentes dos mestres que também perpetuam as práticas de seus parentes/mestres. Isso porque “exatamente por impregnar assim tão profundamente a existência dos homens, a educação é mais vivenciada do que pensada. Quase se autobastando parece dispensar a tarefa esclarecedora e norteadora do pensamento” (SEVERINO apud GADOTTI, 2003, p. 11).

Seja na percepção e apreensão daquele que frequenta quando chegam à feira que vendo os produtos perguntam para os comerciantes a origem, como foi produzido e quem as produziram e, em seguida, levam para seus lares tais conhecimentos no processo de perpetuação inconsciente do fazer cultural de matriz africana. Assim, se mantém o resistir e o continuar da cultura africana e afrodescendente que está aquém dos princípios básicos

do que se compreendem sobre a educação, assim se encontra um fazer educacional que perpetua o fazer cultural de base africana.

O intuito analítico colocado no uso da educação não se limita apenas a um grupo de códigos e não se reduz a normas formais, pelo contrário pretende se direcionar o cotidiano na sociedade. A atuação da educação volta-se a transformação do potencial humana no intuito da perpetuação dos conhecimentos tradicionais e manutenção da cultura e história de um povo. Isto permitirá cogitar apreensão e continuidade de história de grupos sociais que foram esquecidos ou negados. Tornará possível uma organização de mundo, este ditado por divergências, mais equitativo no que se refere às questões sociais, culturais e políticos; e, particularmente, a continuação das práticas e tradições culturais afrodescendentes e afro-brasileiras nas mentalidades do povo que frequentam a feira de Bodocó. Esta é a finalidade da educação da e na feira, instrução e transferência de conhecimento, mesmo que inconscientemente.