• Nenhum resultado encontrado

O ESTÉTICO E O ORDINÁRIO (QUANDO SE ENCONTRAM FILISTEU E ESTETA)

No documento Entre a comunicação e a arte: (páginas 88-94)

Deslocamento e ação

PARA ALÉM DA CONSIDERAÇÃO DA ARTE COMO EXPERIÊNCIA EM SI, INTERESSA-NOS AQUI ENTENDER A MANEIRA COMO A RELAÇÃO COM A ARTE,

3.4. O ESTÉTICO E O ORDINÁRIO (QUANDO SE ENCONTRAM FILISTEU E ESTETA)

Prossigamos na investigação de uma possível aproximação entre a experiência estética e a experiência cotidiana, desta vez como faz Martin Seel (1991) , ao sugerir a

existência de uma racionalidade estética e, mais do que isso, sua concorrência e conflito com os outros tipos de racionalidade. Para nós, mais importante do que a discussão sobre a racionalidade, será a maneira como Seel julgará inseparáveis o mundo da vida e a estética (entendida em sua dimensão ontológica e filosófica). Também na contramão das perspectivas que vinculam a experiência estética estritamente ao campo institucionalizado da arte, o autor questiona a necessária presença da utopia na estética (típica do pensamento adorniano), para propor em seu lugar a coexistência de diversas “regiões da experiência” (cognitiva, afetiva, prática). Ou, como quer Shaeffer, seria necessário fazer diminuir a oposição ontológica entre “a condição humana efetivamente vivida e um modo de ser que, sob uma forma ou outra (acesso a um estado contemplativo universalmente compartilhado, a uma plenitude do ser ou a uma verdade extática), é suposto como capaz de escapar a essa condição” (SCHAEFFER apud GUIMARÃES, 2005, p. 5-6). Para propor o diálogo entre o mundo da vida e o da estética, Seel metaforicamente descreve o encontro entre o esteta e o filisteu. Em dezoito tópicos, dentre os quais reproduzimos quatro, o filósofo cria duplas de afirmativas (quase aforismos) que colocam em tensão dois comportamentos, antecipa-nos Seel, “esteticamente pouco [ideais]”. Vejamos.

“I – Esteta é aquele que, ao agir, não admite outras razões que não sejam, em última análise, as razões estéticas (...). Filisteu é aquele que admite tudo e mais alguma coisa, menos um argumento estético.” (SEEL, 1991, p. 10). A separação e diferença está dada: à estética coube um distanciamento em relação a tudo aquilo que não fosse digno de representação, e que não pudesse ser sublimado. A arte deverá dizer algo, revelar, fazer ver o que ainda não vimos, fornecer-nos um acesso à verdade do mundo, “ou não será arte” (CRUZ, 1991b).

“II – O esteta elegeu o filisteu como adversário. O filisteu não dá a mínima importância a esta inimizade. Ao esteta isto causa um imenso sofrimento.” (SEEL, 1991, p. 10). E não é de hoje que a arte tem tentado aproximar-se do mundo banal, para além da representação, dos pedaços de realidade cubistas, das caixas de sabão em pó, do espaço das ruas, terminando por ser perfeitamente digerida pela instituição, fixada como registro nas paredes das galerias. E a vida ordinária, como vimos em Certeau, ocupa o lugar da universalidade, da riqueza e da diversidade que o discurso esclarecido quer capturar. O filósofo explica que a fala ordinária manifesta complexidades lógicas, armazenadas todos os dias, que não possuem equivalência e

não podem ser traduzidas pelo discurso filosófico, porque contêm mais coisas que este.

“V – Aos estetas interessa a forma enigmática. O filisteu vibra com os assuntos da sua vida singular.” (SEEL, 1991, p. 10). Aqui está presente a figura da utopia e da negatividade adorniana. Seel é enfático e defende que a experiência estética não deve ser lançada a uma impossibilidade, mas experimentada no aqui e agora da percepção estética. A compreensão de qualquer das significações do objeto estético tem a ver com as relações sensíveis que determinam a experiência presente. Se o esteta deseja a experiência completa, o filisteu vibra porque sua experiência já está enraizada no seu próprio existir, ele não necessita de uma promessa para a sua felicidade. Seel argumenta: do estético, “diz-se do comportamento que procura agir experienciando relativamente ao mundo da sua experiência” (SEEL, 1991, p.9). Da crítica estética, ele vai dizer que torna-se estéril quando se limita a examinar a percepção de costas para o mundo. À utopia faltam as práticas do mundo da vida.

Seel afirma que o papel da experiência estética consiste em motivar-se em relação à própria experiência, uma experiência – pode parecer redundante, mas é transformador – com a própria experiência, confrontando a praxis cotidiana com as possibilidades e fronteiras da experiência estética. Afirma o autor:

Esta reflexão efectua-se em virtude de uma experiência com a própria experiência. Essa experiência transpõe as projecções do agir prático do quotidiano, não para desmentir, em princípio, as suas limitações e visões, mas para se confrontar, transformando-as, com as possibilidades e fronteiras desta praxis que transpõe estas orientações, porque o comportamento que conduz a esta experiência se orienta tão somente pelas oportunidades da experiência ludicamente experienciável. (SEEL, 1991, p. 20)

E por último, citamos: “XV – O esteta conquista o mundo, perdendo-o. O filisteu aniquila o mundo, conquistando-o” (SEEL, 1991, p. 11). O filisteu deve ser o ingênuo de que fala Seel, que vive mais livremente do que o cismático, que está sempre a questionar. E tal liberdade parece estar bem próxima de nós, e não no buraco negro da utopia ou acima da praxis. Está em jogo novamente o perene entrelaçamento entre arte e vida. Para o esteta, é um bárbaro aquele que pretende confundir essas duas esferas. No entanto, Seel expõe-nos a doutrina bárbara: “Vós perdeis a vossa liberdade, se transformardes tudo numa forma de experiência. O homem tem várias

vidas numa só. Ele só é inteiramente homem quando renuncia a desempenhar o papel de homem total. A ilusão pura é sempre a ilusão da pureza.” (SEEL, 1991, p. 11)

Se aqui liberdade e experiência estão confrontadas – fazendo parecer que a experiência que está posta em jogo assemelha-se a uma experimentação empírica46 –, fica claro que ao homem só é possível ter várias vidas em uma só quando exercita sua capacidade imaginativa e transfigura, a partir de sua realidade mesmo, o seu lugar. Como em De Certeau, que afirma: “o enfoque da cultura começa quando o homem ordinário se torna narrador, quando define o lugar (comum) do discurso e o espaço (anônimo) de seu desenvolvimento” (CERTEAU, 2002, p. 63). A ilusão da pureza e do homem total são negadas quando se tenta compreender que o fundamento da dimensão estética está mesmo no aqui e agora da experiência ordinária.

Lembramo-nos aqui de Arthur Danto, que conta uma história da doutrina budista de Diamond Sutra, expressa em uma passagem de Ch’ing Yuan:

Antes de estudar Zen durante trinta anos, via as montanhas como montanhas e as águas como águas. Quando cheguei a um conhecimento mais íntimo, cheguei ao ponto em que via que as montanhas não eram as montanhas, e as águas não eram as águas. Mas agora que cheguei à mesma essência, estou em paz. Porque de novo vejo as montanhas unicamente como montanhas e as águas de novo como águas. (DANTO, 2002, p. 196)

De acordo com esse ensinamento, o mundo não seria menosprezado em favor de um outro mais elevado, mas sim já seria dotado das qualidades desse mundo mais elevado. É essa sobreposição – a potência estética contida na experiência da vida ou a maneira semelhante com que operam a experiência da vida e a experiência estética – que Adriano Rodrigues está investigando quando destaca a ambivalência originária da vida comum. Para o autor, o movimento de autonomização das artes da vanguarda deixou de lado a relação que toda experiência artística estabelece com a experiência de vida, o que ele trata nos termos de um “enraizamento vital originário da experiência estética” (RODRIGUES, 1991, p. 25).

46

Para Adriano Rodrigues, há uma diferença entre experiência e experimentação: a primeira diz de uma generalidade do sentido; a segunda esgota-se na percepção singular dos objetos. (RODRIGUES, 1991, p. 29)

O que a arte coloca em jogo é um alargamento das fronteiras do sentido, mas dos sentidos que estão encarnados na própria vida, quando consideramos que não podemos reduzi-la a uma dimensão biológica ou racional. Com perspectiva semelhante à de Martin Seel, Rodrigues dirá que a arte compõe a mistura entre a

arché (o instante originário da percepção do mundo) e o telos (a experiência revivida, reatualizada). Se, como afirmou Seel, trata-se de experimentar a experiência, é importante lembrar que esta experiência relaciona-se com a aquisição da generalidade do sentido do mundo vivido. Se também para Rodrigues não podemos confundir a experiência estética com a experiência artística – estando a primeira diluida em todos os domínios da experiência do mundo –, o objeto artístico ao menos passa a ocupar o lugar de algo que joga “livremente com as regras e com as fronteiras que delimitam o seu mundo” (RODRIGUES, 1991, p. 31).

Importa lembrar que isto é algo que se dá não apenas no momento da recepção, mas em todo o processo das obras de Sophie e Mau-Wal, que são rearranjadas com a enunciação de cada fala, de cada outro. Mais do que promover um compartilhamento de experiências, o dispositivo elaborado em Mera Vista Point, por exemplo, possibilita a cada um dos atores do processo experimentar suas próprias experiências, se pensarmos nos termos de Seel. Assim o fazem os camelôs nessas quase-propagandas, ao mediatizar suas falas, lançá-las a esse jogo e terem a oportunidade de perceber a sua e outras vozes. Ocupam também o papel de espectadores, pois é a partir desse confronto com sua própria imagem que são capazes de transfigurar seu próprio mundo.

Ainda assim, há que se fazer uma pergunta: Se a potência política e poética está na própria existência, como impedir que ela desapareça, que se esgote na experiência do sujeito? Trata-se de uma questão de difícil resolução, ainda mais quando essas duas dimensões parecem confundir-se – como é o caso das obras de Mau-Wal e Sophie Calle – e terminamos por não saber onde começa a experiência estética e termina a experiência vivida. Se estamos tratando de uma potencialização recíproca entre essas duas dimensões da experiência, seria interessante tentar identificar dois movimentos: 1) aquele que dá forma e ilumina as conformações da experiência ordinária, revelando a complexidade de sua natureza, e 2) um outro que converte essa experiência em experiência estética, antes mesmo de conformar-se como objeto da arte. Só depois de constituírem-se enquanto experiência comum e, em seguida, converterem-se em experiência estética, esses processos dão a ver-se como

obra. E este último, se é arriscado dizer que nos interessa menos, ao menos prontifica-se a administrar todas as potencialidades implicadas nos dois primeiros e, por conseguinte, provocar experiência estética nos espectadores.

A partir daqui abrimos caminho para observar como materializaram-se esses dois movimentos nas obras de Sophie e Mau-Wal.

No documento Entre a comunicação e a arte: (páginas 88-94)