4 O ESTADO DA RAZÃO
4.1 O Estado civil
Estabelecida a fundamentação da necessidade do Estado, é possível caracterizar a forma
de governo (soberania) que Kant deriva dos conceitos puros do direito. No que se segue, procura-
se demonstrar a solução kantiana ao problema de como o poder deve ser exercido. O Estado civil,
cujo fim é possibilitar o exercício da liberdade externa dos homens de forma pacífica, está
revestido de poder de obrigá-los a agir de acordo com as leis que lhe são inerentes. Portanto, o
direito como coerção é o seu diferencial. Agora, ao contrário do que sucede no estado de
natureza, existe uma instância julgadora da justiça ou injustiça das ações dos homens, doravante
cidadãos. Algumas questões são imprescindíveis: qual o critério de justiça no estado civil? Qual o
fundamento objetivo da legitimidade das leis? Quem deve exercer o poder? E, o que é mais
importante, qual a melhor forma de governo?
Como já afirmado, Kant tem na “constituição republicana”, no republicanismo, a resposta
a todas essas questões. À correta compreensão do republicanismo kantiano é imprescindível a
distinção entre formas de soberania (Formen der Beherrschung) e formas de governo (Formen
der Regierung). Kant não apresenta um ideal constitucional no que concerne à letra da
constituição. Por isso, a expressão “constituição republicana”, que Kant utiliza largamente,
parece não realçar que se trata mais do espírito do governo do que à letra da constituição, o que
não acontece com o termo “republicanismo”. A distinção entre formas de soberania e formas de
governo, n’A Paz perpétua, é proposta com o escopo de evitar a confusão entre a “constituição
republicana” e a democrática.
4.1.1 Formas de soberania e formas de governo
Segundo Kant, as formas de um Estado (Formen eines Staats) são diferenciáveis ou
através do número das pessoas que têm o poder no Estado, ou segundo o modo de governar
(Regierungsart) o povo, independentemente de quem governa
153. Ele denomina a primeira
forma de soberania (Form der Beherrschung) e a segunda forma de governo (Form der
Regierung). A primeira está fundamentada num critério quantitativo, qual seja, “segundo a
diferença das pessoas que possuem o supremo poder do Estado”
154. A segunda, definida segundo
um critério qualitativo, diz respeito ao efetivo uso do poder. Assim,
[...] a primeira chama-se efetivamente a forma da soberania (forma imperii) e só há três formas possíveis, a saber, a soberania é possuída por um só, ou por alguns que entre si se religam, ou por todos conjuntamente, formando a sociedade civil (autocracia,
aristocracia e democracia; poder do príncipe, da nobreza e do povo). A segunda é forma
de governo (forma regiminis) e refere-se ao modo, baseado na constituição (no acto da vontade geral pela qual a massa se torna um povo), como o Estado faz uso da plenitude do seu poder: neste sentido, a constituição é ou republicana, ou despótica.155
O republicanismo kantiano é a idéia de um governo segundo os princípios puros do
direito. Fundamental, para Kant, é a forma de governo, a maneira como o governante do Estado
(aquele que detém efetivamente o poder no Estado – na respublica phaenomenon) exerce o seu
poder.
A forma republicana de governar está fundamentada na idéia de um ato da vontade geral
– o contrato social. Esse é o critério que permite avaliar se determinada constituição está ou não
de acordo com os princípios puros do direito. Ou se governa republicanamente, ou o governo é
despótico.
“O republicanismo é o princípio político da separação do poder executivo (governo) do
legislativo”
156; além disso, o fundamental, para Kant, é que o poder legislativo “pertença” ao
povo
157. Essa afirmação é inseparável da idéia do contrato originário, e, justamente por isso, a
república é a única forma de governo que o tem na sua essência. Em virtude do direito inalienável
de cada homem à liberdade, pelo simples fato de ser homem, é impossível outra forma de
governo que respeite esse princípio supremo, a não ser aquela na qual quem obedece é, ao mesmo
tempo, o legislador. É importante esclarecer que não se trata de uma legislação empírica dos
homens unidos em assembléia. O republicanismo é a forma de governo que respeita e governa
segundo os princípios racionais. O homem, devido a sua racionalidade, é legislador de um ponto
154 Ibid. 155 Ibid. 156 Ibid.
157 Por ora, isso é suficiente. Contudo, essa tese kantiana, tão explícita quanto problemática, será analisada mais
detalhadamente ao se tratar da Distinção dos poderes e do Conceito de soberania. (Cf. “4.3 A distinção dos poderes” e “4.3.1 O conceito de soberania”).