3 A FUNDAMENTAÇÃO RACIONAL DO ESTADO
3.1 O estado de natureza
3.1.1 O direito privado no estado de natureza
3.1.1.2 A posse comum inata do solo
A dedução da posse (ou do meu e do teu externos) feita por Kant através do postulado
jurídico da razão prática demonstrou que os homens têm direito às coisas externas. Cabe
responder como são produzidos os títulos externos de propriedade. Como alguém pode dizer, por
exemplo, que determinado pedaço de terra é seu e “proibir” outro indivíduo de usá-lo? Kant
responde:
75 Ibid., p. 54. 76 Ibid., p. 60. 77 TERRA, 1995, p. 102. 78 HÖFFE, 2005, p. 246.
Deste modo, por exemplo, a posse de um terreno particular é um acto do arbítrio privado, sem todavia ser arbitrário. O possuidor funda-se na posse comum inata do solo e na vontade universal, que a priori lhe corresponde, de permitir uma posse privada do mesmo (porque, de outro modo, as coisas desocupadas ter-se-iam convertido em si, e segundo uma lei, em coisas sem dono) e adquire originariamente, mediante a primeira posse, um determinado terreno, ao opor-se com direito (iure) a qualquer outro que o impedisse no seu uso privado, embora no estado de natureza não o faça em virtude do direito (de iure), porque no mesmo ainda não existe nenhuma lei pública.79
Esse excerto apresenta, em síntese, os conceitos indispensáveis à compreensão da
fundamentação kantiana da aquisição de um determinado terreno, aquilo que hodiernamente se
denomina propriedade privada. Kant trata das condições de possibilidade da propriedade em
geral. A primeira coisa a ser esclarecida é que um ato do arbítrio – no presente caso a tomada de
posse empírica –, a ocupação de um determinado pedaço de terra não fundamenta direito algum.
Qual, então, o sentido de Kant se utilizar desse argumento da posse comum inata do solo para
“fundamentar” a propriedade privada? O filósofo intitula o § 6 da Doutrina do direito como
“Dedução do conceito da posse simplesmente jurídica de um objeto externo (possessio
noumenon)”. O argumento principal desse parágrafo é, justamente, a idéia da comunidade
originária da terra. A fundamentação da propriedade não pode ser desvinculada do postulado da
razão prática, da posse comum originária e da vontade universal.
A melhor definição da idéia da posse comum inata do solo é dada por Kant no § 13 da
Doutrina do direito:
Todos os homens estão originariamente (isto é, antes de todo acto jurídico do arbítrio) na posse legítima do solo, ou seja, têm direito a existir onde a natureza ou o acaso os colocou (sem vontade sua). Essa posse (possessio) (...) é uma posse comum, em virtude da unidade de todos os lugares sobre a superfície da terra como superfície esférica: porque, se fosse um plano infinito, os homens poderiam disseminar-se de tal modo que jamais chegariam a comunidade alguma entre si, portanto, esta não seria uma conseqüência necessária da sua existência sobre a terra.80
O fundamental é que do fato de a terra ser esférica resulta a comunidade originária; os
homens são obrigados a possuí-la em comum. Isso implica uma comunidade naturalmente
79 KANT, 2004a, p. 58. 80 Ibid., p. 71-72.
imposta, antes de qualquer aquisição da primeira gleba de terra por quem quer que seja
81. No § 6,
Kant esclarece que essa comunidade originária é uma idéia da razão:
Esta comunidade originária do solo e, portanto, também das coisas que nele há (communio fundi originaria), é uma idéia que tem realidade prática objectiva (prático- juridicamente), distingue-se totalmente da comunidade primordial (communnio
primaeva), que é uma ficção; pois esta deveria ter sido uma comunidade instituída e
resultante de um contrato mediante o qual todos renunciaram à posse privada, e cada um teria transformado aquela numa posse comum, unindo a sua posse às dos outros, e a história deveria de tal fornecer-nos uma prova. Mas é uma contradição encarar semelhante procedimento como tomada de posse originária e afirmar que nisso se tenha podido e devido fundar a posse particular de cada homem.82
A posse comum originária é uma idéia da razão prática; não se trata de algo que pode ser
demonstrado na experiência, pois não depende de condições temporais. É uma idéia da razão de
caráter prático-jurídico e não um fato histórico. A fundamentação kantiana, é importante reiterar,
é racional, a priori
83.
A posse comum originária contém a priori o fundamento da possibilidade da posse
privada
84. O modo de apropriação de algo externo, no estado de natureza, é a aquisição
(Erwerbung). É oportuno destacar que Kant divide o direito racional/natural em inato e adquirido.
O direito inato, o meu e o teu interiores, é um só: a liberdade. Por ser inato, não há problema
quanto a sua fundamentação
85. O direito adquirido, o meu e o teu exteriores, consiste justamente
no que se está procurando esclarecer. O meu e o teu externos, no estado de natureza, só são
possíveis pela aquisição. “Nada de externo é originariamente meu; mas pode, decerto, ser
originariamente adquirido, isto é, sem o derivar do seu de outrem”
86. Kant define o princípio da
aquisição exterior (Prinzip der äuβeren Erwerbung): “[...] o que (segundo a lei da liberdade
externa), submeto ao meu poder e tenho a faculdade de usar como objecto do meu arbítrio (de
81 Cf. HECK, J. N. Da razão prática ao Kant tardio. Porto Alegre: Edipucrs, 2007, p. 154. 82 KANT, 2004a, p. 59.
83 Cf. TERRA, 1995, p. 118-119. 84 Cf. KANT, 2004a, p. 59.
85 “Este direito é inato porque cada pessoa o tem simplesmente em virtude de sua existência, não necessitando de
qualquer ato para estabelecê-lo. O direito inato é meu não em virtude de alguma aquisição, mas é o que é internamente meu, contrastando com o que é externamente meu que sempre precisa ser adquirido”. DUTRA, D. J. V. “Propriedade e ajuda aos pobres na doutrina do direito de Kant”. In: BORGES, M. L. & HECK, J. N. (Orgs). Kant: liberdade e natureza. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2005, p. 73.
acordo com o postulado da razão prática), por fim, o que quero (de harmonia com a idéia de uma
possível vontade unificada), que seja meu, é meu.
87É a idéia da posse comum da terra que fundamenta o direito de se adquirir originariamente
algo externo como seu, ou seja, sem essa idéia da razão prática não se entende como alguém pode
reivindicar a posse de algo que não detém
88. A posse comum originária garante o direito de
adquirir qualquer pedaço de terra sobre a superfície do planeta, do tamanho proporcional à força
que se tem para defendê-lo
89.
A aquisição originária se dá em três momentos: 1) a apreensão de um objeto “sem dono”
no espaço e no tempo consistindo numa possessio phaenomenon; 2) a declaração da posse; 3) a
apropriação como um ato em acordo com a idéia da vontade universal. Essa aquisição originária
chama-se ocupação (Bemächtigung). O critério da legitimidade da ocupação é a prioridade
temporal: “Onde, pois, uma destas se leva a cabo, ela precisa, como condição para a posse
empírica, da prioridade temporal sobre qualquer outro que pretenda assenhorear-se da coisa (qui
prior tempore potior jure)”
90. A ocupação é o ato jurídico dessa aquisição. A tomada de posse
(ocupação), enquanto início da detenção de algo externo, se obedecer à prioridade temporal, ou
seja, se ela for a primeira tomada de posse do objeto em questão, concorda com a lei da liberdade
externa de qualquer um
91. Kant assevera:
A primeira tomada de posse tem, pois, para si um fundamento jurídico (titulus
possessionis), que é a possessão comum originária; e a proposição “ditoso o que possui
(beati possidentes)!”, porque ninguém está obrigado a provar a sua posse, é um princípio do direito natural, que institui a primeira tomada de posse como fundamento jurídico para a aquisição, no qual pode se fundar todo primeiro possuidor.92