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2. O TEATRO E O PODER: AUTORITARISMO, SILENCIAMENTO E

2.7. O Estado Republicano: o maior provedor da censura

Os corolários de todo debate travado até aqui são os que agregam à ação da censura alguns dos valores que ela, como fenômeno estritamente político e ideológico, preconizava: sua visão frequentemente paternalista acerca da produção cultural e seu autoentendimento como tutora das diversões públicas atestam esse fato. Esses fatores estão diretamente relacionados ao papel que os órgãos censores assumiram em praticamente todo o período de sua atuação no Brasil, segundo o qual cabia a eles julgar as obras que lhes eram conferidas, não apenas esteticamente (como a princípio se cogitou) mas também – e sobretudo durante o atordoado século XX – ideologicamente. Essas consequências associadas à crucial moralidade de parte da sociedade que naturalizou as ações de tolhimento criativo, possibilitaram o desenvolvimento de um projeto de censura como Aparelho Repressivo de Estado (KHÉDE, 1981), cuja força de ação coercitiva chegou aos arbítrios policialescos praticados durante a ditadura militar pós-1964.

O regime militar brasileiro chegou ao fim após 21 longos anos de existência. O desejo de reabertura política aliado ao insustentável desgaste ideológico da ditadura levou, no final da década de 1970, aos debates em torno do modelo de reabertura a ser adotado na transição democrática. Este evento envolveu, entre outros temas, a anistia de inúmeros intelectuais e artistas que encontraram no exílio o único modo de conseguir expressar suas ideias sem colocar em risco suas vidas. Diante de todo movimento em torno da democracia de fato, em 1983 foi extinto o DOPS, ação premente diante do contexto histórico de revalorização do diálogo com diferentes forças políticas da sociedade. Nesse sentido, o papel que o Estado republicano teve no desenvolvimento de políticas voltadas à coerção foi preponderante para que a censura lograsse êxito. Segundo Carneiro (2002), foi justamente esse Estado, “censor por excelência”,

[...] o responsável pela mutilação da cultura nacional interferindo, negativamente, na construção do conceito de cidadania. O aparato policial, organizado durante décadas de modo a perseguir os “homens de ideias”, deve ser considerado como um dos promotores da barbárie, da violência, da segregação e da intolerância, marcas registradas deste século XX. O Estado tem aqui a sua responsabilidade enquanto gerenciador e legitimador da brutalidade, promotor do medo e da autocensura (CARNEIRO, 2002, P.167).

77 Como dito anteriormente, em certos momentos de arrocho repressor foi necessário ao teatro e aos artistas arrefecerem. No entanto, reafirmo essa noção que é uma das hipóteses do presente trabalho: se há diversas formas de tolher, há diversas formas de resistir. Inúmeros intelectuais e artistas, entre os quais destaco o dramaturgo Plínio Marcos, conseguiram, pelas brechas e nos subterrâneos da resistência, colaborar com o aprofundamento da reflexão acerca do tempo em que viveram, desejosos de uma transformação da sociedade. Arrefecer, dentro desse viés, pode ser interpretado como encontrar outras formas de resistir à ditadura, superando sua condição de meros espectadores diante do caos político e ideológico que passava diante dos olhos. A um intelectual ativo como Plínio Marcos, entre tantos outros de reconhecida importância, coube a alcunha de autor maldito por “ultrapassar os limites entre o permitido e o proibido” (CARNEIRO, 2002, p.22). O comportamento desviante da ordem estabelecida servia como testemunho de sua atuação subversiva, corroborada pelas suas ideias publicadas em forma de textos dramáticos, sobretudo. Maldito ou bendito, o fato é que foi a partir da exploração desta faceta de sua subjetividade que se tornou possível ao dramaturgo colocar-se como artista diante de um contexto histórico de ditadura como o que aqui foi relatado (e que será aprofundado na seção a seguir).

A censura, dentro dos moldes aqui estudados, chegou ao seu derradeiro dia, no Brasil, com a promulgação do documento que colocaria o país perfilado junto às nações modernas do ponto de vista dos direitos à cidadania. Refiro-me à Constituição Federal de 1988 que, definitivamente, deu ao Brasil estofo do ponto de vista dos direitos e deveres dos cidadãos, de modo claro e juridicamente seguro. A Carta Magna veio selar a liberdade de manifestação de pensamento, a livre expressão intelectual, artística e científica dispensando a necessidade de licença prévia. A única restrição prevista na Constituição diz respeito a uma censura de caráter classificatório, indicativa do público-alvo preferencial para as atividades ligadas as diversões públicas, rádio e TV, modelo que até o presente momento tem se sustentado, sem maiores desgastes.

À guisa de conclusão, é importante lembrar que há fatos históricos que fazem do Brasil um país com evidentes bases autoritárias em sua formação, em especial os mitos em torno da superioridade de determinadas classes, mais empoderadas cultural e financeiramente, corriqueiros em nossa sociedade. Por este motivo, a censura, em maior ou menor medida, ronda as nossas ações cotidianas, muitas vezes de modo velado e pouco notada como tal. A censura institucionalizada como política de Estado, muitas vezes, se dá como reflexo de uma prática que possui legado junto ao corpo social, ou seja, é uma realidade que ele já conhece.

78 Assim, o autoritarismo não se estabelece em momentos historicamente marcados ou pontualmente; por vezes ele nos ronda quase que como um desejo de devoção eterna diante do qual nos curvamos. Diante de uma onda neoconservadora que sofre o país – cujo reflexo pôde ser conferido nas reações de determinados grupos sociais após o resultado das eleições presidenciais em 2014 e a reeleição de Dilma Rousseff –, discursos autoritários travestidos de populismo podem abrir brechas para um poder autoritário se estabelecer. Por exemplo: é fato reconhecido pela imprensa nacional que elegemos, em 2014, o congresso mais conservador desde o golpe de 1964. Como exemplo não menos importante, recentemente o Brasil assistiu à chamada “polêmica das biografias”, capitaneada por um grupo de grandes artistas da música brasileira, associados junto à “Procure Saber”. O grupo reivindicou a necessidade de autorização prévia para a publicação de biografias dos seus componentes, dentre eles Gilberto Gil, Caetano Veloso e Chico Buarque de Holanda. A ação da associação foi considerada por muitos jornalistas e pesquisadores como censura prévia, portanto, anticonstitucional.

O presente trabalho reflete o papel de um resistente contra o tolhimento da liberdade de expressão: o dramaturgo Plínio Marcos. Pretende ser uma contribuição para o pensamento crítico em torno da censura, pautada na obra do dramaturgo e sua relação com os órgãos de censura antes e durante os difíceis 21 anos de ditadura militar brasileira. Como refletido aqui, o poder instituído pretende, sempre, criar homens dóceis e, portanto, despolitizados e des- historicizados. Em tempos de democracia participativa, é preciso estar ainda mais atento aos elementos autoritários ao nosso entorno, sob pena de reproduzirmos, adestradamente, um pensamento que pode nos fazer andar para trás, em direção ao atraso.

A próxima seção deste trabalho é dedicada ao aprofundamento acerca da vida e da obra de Plínio Marcos, tendo como fio condutor a censura que sofreu sua obra. Retomarei episódios importantes de sua trajetória, enfatizando aqueles em que o dramaturgo se destacou como sujeito rebelde e militante da liberdade de expressão. É meu interesse refletir acerca das possíveis leituras da censura como fenômeno histórico e repressivo e o seu entrechoque com um artista do calibre de Plínio Marcos e seu incontestável temperamento rebelde.

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