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O Estatuto do Desarmamento e sua constitucionalidade

3.1.3 Porte ilegal de arma de fogo de uso permitido

P ONTOS C ONTROVERTIDOS NO E STATUTO DO D ESARMAMENTO

4.1 O artigo 21 da Lei n.º 10.826/03 e o artigo 5º, inciso LXVI, da Constituição Federal

4.1.3 O Estatuto do Desarmamento e sua constitucionalidade

A Constituição brasileira garantiu a todos os cidadãos, já no seu preâmbulo, a ordem interna e a segurança. Os seus dispositivos iniciais tratam da cidadania, da construção de uma sociedade livre e justa, da erradicação da pobreza, marginalização e desigualdades sociais. No caput do conhecido art. 5º, que disciplina a garantia dos direitos fundamentais, está asseverado:

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Mais à frente, no inciso LXVI o referido dispositivo determina que “ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória,

com ou sem fiança.” (BRASIL, 1988)F@

Assim, está a demonstrar que foi conferida à Lei Ordinária a regulamentação das hipóteses e das limitações à liberdade provisória.

O constituinte originário, como se observou, colocou a segurança também

como direito social (art. 6º, ).

Toda esta preocupação com a segurança demonstra a importância que a matéria tem para toda a população.

Os centros urbanos do país, principalmente as capitais, têm vivido sob uma verdadeira guerra civil. A criminalidade provoca um clima de verdadeira tensão, temor e pavor, aterrorizando os habitantes e privando-os de sua liberdade, obrigando-os a se trancarem cada vez mais em casa.

O delito de posse ilegal de arma que constituía mera contravenção foi

promovido à condição de crime na antiga Lei do desarmamento75 (Lei nº 9.437/97).

73BRASIL. Constituição da República de 1988. 74BRASIL. Constituição da República de 1988.

O legislador verificou a necessidade de agravar, ainda mais, determinadas condutas para conter a criminalidade que, além dos danos pessoais, acarretam um enorme gasto público em hospitais, pronto-socorros e ambulatórios, que não dispõem de pessoal, equipamentos, medicamentos e leitos suficientes para atingir a demanda de gente lesada por arma de fogo.

Assim, vem a Lei n.º 10.826/03, na qual foi até prevista a realização de referendo sobre a proibição da venda de armas de fogo no país, e estabelece regras mais gravosas para a compra, o registro, a posse e o porte de armas de fogo. As penas passam a ser mais severas e também como medida coercitiva, e para atender a política criminal adequada à situação, foi inserida a proibição da concessão de liberdade provisória para os casos de comércio ilegal de armas e de tráfico internacional de armas.

Com intuito de ver seus objetivos atingidos, o Estatuto do Desarmamento vedou também a concessão de liberdade provisória para os agentes que fossem flagrados portando ou possuindo armas, munições e equipamentos de uso restrito, sem autorização legal. A norma equiparou a tais artefatos as armas de fogo com numeração raspada porque esse tipo de armamento foge do controle que o Estado pretende efetuar sobre todas as armas de fogo existentes no país.

É preciso frisar que as armas com numeração raspada são utilizadas principalmente por criminosos contra a população indefesa que, por suposto, não preenchem os requisitos para a obtenção regular de armas. É evidente o perigo que essas pessoas representam para a ordem pública e para a segurança do cidadão, de modo que a cautela do legislador - de manter a prisão em flagrante - para os acusados por esses crimes é bem pertinente.

Para a averiguação da constitucionalidade da norma legal em discussão, é preciso constatar o alcance daquilo que foi previsto no art. 5º, inciso LXVI, da Constituição Federal que concedeu ao legislador ordinário, na consecução das políticas públicas de proteção da população, a possibilidade de disciplinar as hipóteses em que a liberdade provisória não seria concedida aos autores de determinados fatos criminosos.

Foi com base nessa permissão que o art. 21 do Estatuto do Desarmamento corretamente determinou que nas hipóteses de tráfico interno ou internacional, de

75BRASIL. Lei 9.437 de 20 de fevereiro de 1997.

comércio ilegal ou de porte ou posse de arma de fogo, munição ou equipamento de uso restrito, não pode ser concedida à liberdade provisória aos imputados.

Esse dispositivo está em perfeita sintonia com o real sentido, o alcance, à

vontade e a efetiva abrangência da já mencionada norma constitucional e observa bem os fins sociais e o bem comum exigido no art. 5º da Lei de Introdução ao

Código Civil. (BRASIL, 1942)76

Neste prisma, muitos, ao interpretarem o Direito Penal, posicionam-se desproporcionalmente em favor do infrator, que muitas vezes é, de fato, uma pessoa despreparada culturalmente. Há, é verdade, quem sustente que a formulação de entendimento que restrinja a aplicação da Lei Penal é moderno, avançado, democrático e sempre a favor do povo. Essa visão torta e simplista é própria daqueles que desconhecem a realidade da violência que vem a ilhar o estado por culpa, muitas vezes dessa tolerância com a violência urbana.

Neste rumo, a estimativa do resultado provável de cada interpretação integra o processo hermenêutico. Na interpretação e aplicação do Direito, é inevitável a ponderação das conseqüências, com as quais o intérprete se preocupa, preferindo, quanto possível, o sentido conducente ao resultado mais razoável, que melhor corresponda às necessidades da prática. Adverte Carlos Maximiliano que:

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A sociedade não quer do estado maior paternalismo na aplicação da lei penal. Pelo contrário, o que se pretende é diminuir a tolerância com a delinqüência, já exagerada e destoante do sentimento francamente majoritário da nação.

Nota-se, porém que, grande parte da doutrina - e hoje já está assentado na jurisprudência – admite que a Lei Ordinária possa definir as situações em que fica vedada a concessão do benefício da liberdade provisória. Assim, por mera interpretação declarativa chega-se à conclusão de que o inciso LXVI do art. 5º da

76BRASIL. Decreto-Lei 4.657 de 04 de setembro de 1942.

Carta Magna quis deixar a critério do legislador ordinário, na consecução de sua política criminal, a disciplina dos requisitos do cabimento do benefício e da previsão dos casos em que ele não é cabível. O alcance da garantia encontra assim os limites impostos pela Lei: quando esta não admite a liberdade provisória para aqueles agentes que possuem determinadas características e que pratica certos tipos de crimes, não pode haver dúvidas de que deve esse indivíduo permanecer preso até a sentença de mérito, respeitando-se os prazos prossessuais.

O estudo histórico da legislação sobre o instituto e sobre o assunto vão no mesmo sentido. A verificação sistemática da norma, de acordo com a jurisprudência das Cortes Superiores – que declararam a constitucionalidade do art. 7º da Lei nº 9.034/95 e do art. 3º da Lei n.º 9.613/98, normas jurídicas que, na mesma esteira da Lei nº 8.072/90, proíbem a concessão de liberdade provisória, evidencia também que o Legislador Ordinário pode impor regras que venham a impedir a concessão da liberdade provisória.

Pela leitura da Lei em comento vê-se que houve respeito até à questão da excepcionalidade da prisão provisória porquanto, dentre todas as modalidades de condutas criminosas nela previstas, apenas as descritas nos artigos 16, 17 e 18, dada à vulnerabilidade social que provocam, tiveram a proibição do benefício, de modo que até sob esse aspecto o art. 21 da Lei 10.826/03 é absolutamente compatível com o sistema.

A análise do instituto sob o aspecto lógico/teleológico também leva ao mesmo resultado. O legislador efetuou a justa proporção entre a vedação legal - que se dá até o encerramento da instrução (que é bastante célere ante a prioridade dos processos de réus presos) - e a possibilidade conferida ao juiz de direito de, depois de conhecer os fatos, efetuar a devida medida da pena. Não é justificável para um cidadão ter em casa ou sair pela rua portando uma arma de grosso calibre, nem mesmo para, nas mesmas circunstâncias, ter uma arma com a numeração raspada.

Todavia, mesmo assim, a Lei nº 10.826/03 não repetiu a criticada imposição de regime fechado integral para o cumprimento da pena. Nela não houve restrição a que o magistrado pudesse, verificado o caso concreto, conceder na sentença de mérito a possibilidade do apelo em liberdade ou até mesmo impor regime diverso do fechado, mais adequado de cumprimento da pena (é preciso observar neste ponto que o próprio regime integral fechado da Lei dos Crimes Hediondos foi declarado constitucional).

Se o magistrado sentenciante concluir pela prova dos autos que, naquele caso específico, o agente do crime não representa um perigo social, poderá até substituir a pena corporal, circunstância que está a mostrar que o legislador agiu com a devida ponderação.

Os argumentos de que dispositivos na Lei dos Crimes Hediondos78

constituiriam verdadeiro contra senso, um impedindo a liberdade provisória e outro permitindo o apelo em liberdade, não vingou no Supremo Tribunal Federal que não decidiu pela inconstitucionalidade de qualquer dos seus ditames. É verdade que, a proibição contida no chamado Estatuto do Desarmamento se constitui em um verdadeiro e claro alerta às pessoas: não tenham nem andem, nem trafiquem ou comercializem armas e artefatos de uso restrito. Mais uma vez aqui o interesse público prevalece sobre o privado.

Realmente, a discussão da justiça da lei - nesse nível - tem outra sede. São os representantes do povo, na busca do bem comum que formulam as hipóteses normativas genéricas no desenrolar do processo legislativo. Consiste em inaceitável ferida à independência dos Poderes a intromissão do Poder Judiciário nas atividades do Poder Legislativo, que é quem por meio do Congresso Nacional, com o crivo do Presidente da República edita as leis.

Se uma lei não é boa o bastante para regular a vida em sociedade, em um determinado momento histórico, deve ser revogada. Se o julgador puder no âmbito de sua independência funcional revogar as leis por interpretação sistêmica generalizante, fluídica; baseada em critérios personalíssimos de justiça, promovendo, ainda mais, o enfraquecimento do combate à criminalidade mais grave. Atuando dessa forma o Judiciário poderá quebrar a harmonia entre os poderes da República, pois ele se concederia poderes, usurpando a autoridade legislativa, para decidir se determinada lei federal é injusta ou incongruente, calcada a decisão em casuísticas do enfoque pessoal de justiça: é injusta, então não deve ser cumprida. Haveria aí o primado de um “direito alternativo” que destrói o Estado Democrático de Direito e também um estímulo para os outros poderes simplesmente deixarem de obedecer às emanações do Judiciário.

A interpretação abrogante pelo julgador, ou seja, aquela que elimina a norma, não pode ser consagrada. Ela serviria apenas como forma de interpretação a ser

tolerada em casos extremos e teratológicos, respeitado o primado da lei, se verificada a antinomia real entre dispositivos legais de uma mesma hierarquia, ambos vigentes ao mesmo tempo e absolutamente inconciliáveis, de acordo com todos os outros métodos de exegese existentes e tentados como se pode verificar pelo julgado: P + /I -= , I/ =F9 9C ! -..= D \ 8 % % M & 5 > > 1 % % % & % $ % K $ % ' ^ ^ % % ( D 0 8 ( D 0 5 M D 8 " D % ! ! D & 1 % 8 D /I , I/ =F9N.= > -= , -@ , IA <A/NFA D D D " & D 8 8 & & 8 8 " ^P ^ (*J? D P A/F.<N)QD ) N 2 L ; -]J D : 2 Q 9FD=AD.F D<=9/F ; # D =-/F9D=< CA/D 2 P F@.9CN.FD)Q6 P FC<C=N.FD*:0F.

Quando julga uma causa, verificando a presença de vício na norma jurídica, o magistrado funciona apenas como legislador negativo sendo-lhe dado, somente, declarar a inconstitucionalidade da Lei. A ele é proibido exercer as funções atribuídas ao legislador positivo, com poder criador, de modo a quebrar a independência e a harmonia entre os poderes da República. Se há

inconstitucionalidade, atuando como legislador negativo, ele declara a invalidade da lei, pois, como legislador positivo, usurparia a competência do legislador e, no caso, promoveria, ainda mais, o enfraquecimento do combate à criminalidade mais grave.

A necessidade da prisão provisória do flagrado a cometer crime definido no Estatuto do Desarmamento (arts. 16, 17 e 18) foi fixada abstratamente pelo próprio legislador no regular exercício de sua competência constitucional. Segundo Damásio, a legislação proíbe o benefício in abstrato e juiz, no uso de seus poderes, in concreto. O ilustre doutrinador disserta que:

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A liberdade provisória proibida, ora discutida, constante do artigo 21, da Lei n.º 10.826/03, não revela antinomia, nem sequer aparente, em contraste com os demais dispositivos legais da dogmática jurídica brasileira, inclusive com aqueles que permitem, em tese, penas alternativas ao réu e fixação do regime prisional aberto, em caso de condenação.

A prisão provisória, cautelar, processual, antecede a condenação e sua finalidade é limitar, de forma mais ou menos intensa, a liberdade física de uma pessoa natural com o fim precípuo de assegurar o império da lei penal, evitando que o ordenamento jurídico seja violado e burlado.

Ao contrário, a prisão-pena é imposta pelo Estado apenas em execução de uma sentença penal condenatória ao réu que foi definitivamente julgado culpado de uma infração penal. O fundamento da prisão provisória difere, do da prisão-pena, conquanto a primeira não dispense, de forma absoluta, a perspectiva de vir

efetivamente ocorrer restrição ao do acusado ao término do

processo penal, perspectiva legal essa existente na questão ora tratada na modalidade mais severa, possível regime inicial fechado com negativa de qualquer benefício.

O direito à liberdade provisória não é absoluto e, se há preceito constitucional a ditar que ninguém será privado da liberdade sem o devido processo legal (art. 5°, inciso LIV), também é certo que as prisões em flagrante, temporária e preventiva estão constitucionalmente permitidas (art. 5°, inciso LXI).

É importante lembrar os ensinamentos do eminente Ministro Carlos Maximiliano, para quem a aplicação do Direito consiste em enquadrar um caso concreto em uma norma jurídica adequada; no submeter às prescrições da lei uma relação da vida real; na procura e na indicação do dispositivo adaptável a um fato determinado. B D % + 8 G M & % 8 8 6 " 81

Em sentido contrário, ensina Gustavo Octaviano Diniz Junqueira que ”[...] nos casos do Estatuto do Desarmamento, que, aliás, sequer excepciona a possibilidade de apelo em liberdade desde que em decisão fundamentada, como faz a Lei dos

crimes hediondos”.82

Analisando neste contexto, não parece haver inconstitucionalidade na Lei n.º 10.826/03 que respeita Constituição Federal no tocante a vedação da liberdade provisória e nos termos do art. 5º, inciso LXVI de nossa carta maior.

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